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Migalhas – Artigo: O planejamento urbano e a regularização fundiária – Por Érika Silvana Saquetti Martins e Robson Martins
O direito à moradia é um conceito complexo, que não demanda apenas e tão somente uma proteção contra o clima ou um local no espaço que sirva de ponto de referência, tendo em vista que a regularidade imobiliária a integra de forma inexorável, tornando a Reurb um instrumento essencial à própria dignidade.
A Reurb deve ser obrigatoriamente incluída dentre as políticas públicas habitacionais da União, Estados, DF e Municípios, por ser indispensável à concretização plena do direito fundamental à moradia, permitindo ao proprietário, inclusive, certas operações contratuais e registrais, a exemplo da alienação.
Os assentamentos informais existem há muito tempo, sendo que seu crescimento se associa “[…] a um processo excludente de desenvolvimento, planejamento, regulação e gestão das áreas urbanas, acentuando condições sociais de desigualdade” (FREITAS; GONÇALVES; RIBEIRO, 2013).
Grande parte do tecido urbano, na maior parte dos países da América Latina, rolorigina-se de processos ilegais de parcelamento, situação que explica a recorrente ocupação de espaços indevidos, o alto grau de precariedade e as dificuldades de efetivar ações de planejamento (FREITAS; GONÇALVES; RIBEIRO, 2013).
Deveras, “[…] as implicações desse fenômeno são graves, trazendo prejuízos não apenas aos próprios moradores do assentamento informal, mas à cidade e à população urbana como um todo” (FREITAS; GONÇALVES; RIBEIRO, 2013,). Trata-se de um fator de claro desgaste para o planejamento urbano.
O planejamento urbano não pode se sobrepor à necessidade de concretização do direito fundamental à moradia digna. Assim, faz-se necessário superar as desigualdades no acesso à habitação, especialmente após os danos ocasionados pelo urbanismo neoliberal e pelas crises no setor de construção civil.
O desafio de implementar “[…] uma política para ampliar o acesso à terra urbana para a população de baixa renda em condições adequadas” é elemento fundamental para “[…] enfrentar o passivo de destruição ambiental e exclusão social que marca nosso modelo de urbanização” (ROLNIK, 2006).
Parta tanto, faz-se indispensável uma modificação na “[…] agenda do planejamento e gestão do solo urbano que, na maior parte das cidades brasileiras, sempre esteve mais voltada para a cidade formal, raramente dialogando com os mercados de baixa renda” (ROLNIK, 2006, p. 204).
Assim é que a participação cidadã democrática e direta se faz indispensável para que o planejamento urbano se volte às comunidades mais pobres, caracterizadas por estruturas habitacionais mais precárias e, muitas vezes, irregulares, sob pena de se inviabilizar a própria ideia de cidade sustentável.
A Reurb é um procedimento indispensável à regularização da situação jurídica e urbanística de imóveis construídos irregularmente, inclusive, em áreas de risco, garantindo a dignidade dos moradores, de maneira a se concretizar, de maneira integral, o direito fundamental à moradia digna.
Além disso, determina o “[…] resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária” (ALFONSIN, 1997), especialmente da parcela que detém menores possibilidades de fruição de estruturas urbanísticas adequadas, inclusive, em decorrência da irregularidade de seus imóveis.
Importante asseverar que a ausência de participação popular democrática e cidadã no planejamento urbano é um problema antigo, prejudicial desde as primeiras aglomerações humanas, decorrente da incapacidade de se perceber, efetivamente, que as cidades não são formadas apenas por edificações, mas, sim, por pessoas.
A cidade visível sempre foi cheia de imperfeições, desde a antiguidade, quando, pela primeira vez, assumiu sua forma ideal, que distinguiu das aldeias e cidades mais antigas, “[…] não primariamente em pedra, mas em carne e sangue”, tornando a natureza humana subitamente mais plena (MUMFORD, 1998).
A cidade formava e transformava os homens em decorrência de suas atividades, por meio da troca de ideias e opiniões, fazendo cidade e cidadão um só, formando-se uma concepção, simultaneamente, estética e política da unidade urbana. Surgiu, porém, o problema da construção de uma cidade coerente (MUMFORD, 1998, p. 187-507).
A correção das deficiências demanda um sistema de controle de centros múltiplos, mediante desenvolvimento, moralidade, inteligência e respeito próprio, bastantes para permitir os processos automáticos que precisam incidir em todos os pontos nos quais a vida humana esteja em perigo ou a personalidade humana seja ameaçada (MUMFORD, 1998).
Neste viés, a regularização fundiária não alcançará a totalidade de seu potencial organizador se os referidos procedimentos não forem efetivamente caracterizados pela participação dos indivíduos e das comunidades, voltada à concretização do direito fundamental à moradia digna e, consequentemente, da ideia de cidade sustentável.
Por outro lado, a regularização fundiária urbana se dirige à formalização da posse e da propriedade de imóveis urbanos, possibilitando, inclusive, sua disposição a qualquer título e, consequentemente, sua fruição plena. De fato, ela permite outras operações características da possibilidade imobiliária.
A Reurb é essencial ao exercício das faculdades do domínio, “[…] radicada na faculdade de dispor: quem pode dispor do que é seu, a princípio, pode dispor no todo ou em parte, e, então, para dispor em parte, pode parcelar, lotear/desmembrar” (AMADEI; PEDROSO; MONTEIRO FILHO, 2017).
A possibilidade de exercício dessas faculdades jurídicas relacionadas ao imóvel, inclusive sua disposição a qualquer título, é indispensável para que a estrutura urbana siga seu curso usual de maneira sustentável, tendo em vista que o exercício das prerrogativas inerentes à propriedade imobiliária são parte integrante do direito fundamental à moradia digna.
Um processo de regularização fundiária sustentável demanda a adoção de mecanismos voltados à segurança da posse, “[…] trabalhando para que os possuidores recebam o título da respectiva propriedade ou a concessão de uso para fins de moradia na área”, pois é necessário “[…] formar raízes, evitar a ‘expulsão branca'” (BORATTI, 2007).
Isso evitaria que, anos depois, necessite-se tratar da regularização de outras áreas ambientalmente sensíveis pelas mesmas pessoas que já a obtiveram. A integração à cidade formal implica na regularização urbanística, jurídica e registraria, de modo que os cidadãos destinatários do projeto se integrem à cidade formal (BORATTI, 2007).
A proliferação de favelas é apenas um sintoma de que o urbanismo neoliberal estruturou a cidade por classes socioeconômicas. Por isso é que a intervenção estatal é indispensável para amenizar a desigualdade social, pois as ocupações irregulares constituíram comunidades inteiras que não podem ser simplesmente dissolvidas.
O direito à moradia é um conceito complexo, que não demanda apenas e tão somente uma proteção contra o clima ou um local no espaço que sirva de ponto de referência, tendo em vista que a regularidade imobiliária a integra de forma inexorável, tornando a Reurb um instrumento essencial à própria dignidade.
Autores:
Érika Silvana Saquetti Martins é doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.
Robson Martins é doutorando Direito UERJ. Mestre Direito UFRJ. Especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. Professor universitário. Procurador da República. Promotor de Justiça PR 99/02. Técnico JFPR 93/99.
Fonte: Migalhas