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ConJur – Artigo: Novo regime jurídico do nome civil e outros avanços do direito registral – Por Jones Figueirêdo Alves

12-07-2022

O direito registral recepcionou novas dimensões do direito ao nome civil com os avanços significativos oferecidos pela recente Lei nº 14.382, de 26 de junho de 2022  [1] que, demais disso, moderniza e simplifica os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, de que trata a Lei nº 6.015, de 31.12.1973 [2], alterando, destarte, disposições do Código Civil (Lei nº 10.406/2002). São novos marcos desburocratizatórios que enaltecem o sistema registral em sua objetividade de resultados e de eficácia imediata.

A dispensa de intervenção judicial para determinados atos registrais representa a desejada desjudicialização do registro civil, atendendo a importância da cidadania urgente conferida pelo Oficial do Registro Civil de Pessoas Naturais nos atos de seu relevante ofício. Vejamos:

Prenome: Um deles, de maior densidade social, é o de permitir a alteração do prenome pela pessoa registrada, após ter atingido a maioridade civil, independente de decisão judicial, ou seja, por via extrajudicial com requerimento pessoal diretamente em cartório e sem submissão ao anterior prazo decadencial de um ano do atingimento da maioridade, como agora dispõe a nova redação dada artigo 56 da Lei nº 6.015/1973. A alteração imotivada do prenome, a qualquer tempo, não se sujeitará a nenhuma exigência, tendo-se por certo que a modificação não prejudicará os apelidos de família, como aludia a redação primitiva do dispositivo [3].

A não atermação de prazo confere à pessoa registrada a plenitude de sua autonomia de vontade em adotar o prenome que mais o satisfaça em realização de um seu direito de personalidade, significando o “a qualquer tempo” a efetividade desse direito; então pouco consabido e/ou exercido, na prática, diante de um preordenado prazo bastante exíguo.

Leciona, a propósito, Carlos Alberto Bittar que “o bem jurídico tutelado é a identidade, que se considera como atributo ínsito à personalidade humana”, seguindo-se que a proteção jurídica ao nome, nesse diapasão, vem ensejar e tutelar a devida individualização da pessoa.

De efeito, cuide-se também considerar, diante do alcance do novo texto e de sua maior tábua axiológica que a pessoa registrada poderá dispensar seu prenome vinculado ao nome do (a) genitor (a), do tio (a) ou dos avós, a saber do seu agnome utilizado, ao preferir um prenome diverso.

Bastante ver, exemplificando:

1) a opção por inclusão do sobrenome materno importará em afastar a homonímia com o genitor, acarretando a exclusão do agnome, embora mantido o patronímico, sem prejuízo da origem familiar;

2) a adequação do nome por alteração do gênero autopercebido, poderá importar, inexorável, na perda do agnome do pai ou da mãe, implicando alteração significativa. Aliás, o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça, de 28.06.2018, tratou do procedimento extrajudicial de alteração do nome e do gênero dos transgêneros diretamente perante o Registrador Civil das Pessoas Naturais;

3) a alteração do prenome poderá ser requerida pessoalmente, pela pessoa registrada, sem causa motivada (nova redação do artigo 57), significando que a cláusula “imotivadamente” e o texto da norma não afastam ou reprimem a hipótese do agnome. Dispensa-se o “justo motivo comprovado”, presente em decisões judiciais anteriores; e a própria atuação judicial (artigo 56 §1º, 1ª parte), exigível apenas à desconstituição da alteração procedida em cartório (artigo 56 §1º, 2ª parte),

A mutabilidade do nome torna-se, em bom rigor, um direito de personalidade em toda a acepção do que dispõe o art. 16 do Código Civil, inclusive quanto às consequências da alteração do estado sexual da pessoa.

Sobrenome: A alteração posterior de sobrenomes, na ordem dos avanços conferidos pela nova lei (artigo 57), também poderá ser requerida pessoalmente perante o oficial de registro civil, com a apresentação de certidões e de documentos necessários, independente de autorização judicial.

Importa, a tanto: 1) a inclusão de sobrenomes familiares ou do sobrenome do cônjuge (incisos I e II, primeira parte); 2) a exclusão de sobrenome do cônjuge na constância do casamento (inciso II, segunda parte); 3) a exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas (inciso III) e 4) a inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado (inciso IV).

Cuida-se do melhor espectro da identificação da pessoa, consigo mesma e perante a sociedade, em perfeita “dialética entre o indivíduo e o social” (Ézio Luiz Pereira).

Decisivamente os laços familiares terão um elo condutor de estímulo para a inclusão tardia de nomes maternos ou avoengos que não estejam incluídos no registro original, para a devida (re) composição do nome com fidelidade às suas origens, como elementos identificadores da pessoa e de suas afeições.

Outro elemento desburocratizante, a dispensar intervenção judicial (nova redação ao parágrafo  8º do artigo 57), opera-se com a averbação do nome de família do padrasto ou da madrasta, por iniciativa do (a) enteado (a), sem prejuízo dos seus sobrenomes de família, mediante requerimento direto ao oficial de registro civil, atendidos dois requisitos expressos: 1) houver motivo justificável e 2) desde que haja concordância daqueles.

União estável: Nova redação dada ao parágrafo 2º do artigo 57 da lei registral dispõe no sentido de que “os conviventes em união estável devidamente registrada no registro civil de pessoas naturais poderão requerer a inclusão de sobrenome de seu companheiro, a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas”.

Com a mesma identidade propositiva, tem-se doravante que “o retorno ao nome de solteiro ou de solteira do companheiro ou da companheira será realizado por meio da averbação da extinção de união estável em seu registro” (artigo 57, § 3º-A) [4], tudo a contribuir com a celeridade registral e a desburocratização das medidas.

É acrescentado à lei registral o artigo 94-A, com oito incisos, disciplinando acerca dos registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável (Livro “E”). Neles deverão constar, entre outros dados: 1) o “estado civil” dos companheiros; 2) o regime de bens dos companheiros; 3) nome que os companheiros passam a ter em virtude da união estável.

Impõe-se, de logo, considerar que a vedação da cláusula “ainda que separadas de fato”, contida no parágrafo 1º do aludido artigo 94-A [5], gizando não poder ser promovido o registro, no Livro E, de união estável de pessoas casadas embora separadas de fato, afigura-se impertinente e descabida por contrariar a própria lei civil que orienta no sentido de admitir-se a união estável em casos de separação de fato de pessoas não divorciadas. De efeito, preconiza o artigo 1723, em seus §1º e 2º, do Código Civil que não se aplica a incidência do artigo 1521 do CC, no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente e que as causas suspensivas do artigo 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.

Ora bem. Tem-se, por evidente, configurada a hipótese de quebra ao princípio de vedação ao retrocesso social, máxime da “impossibilidade de redução do grau de concretização dos direitos sociais já implementados pelo Estado”. Mais precisamente: “uma vez alcançado determinado direito social, o legislador não pode suprimir ou reduzir esse direito” e, no caso em exame, a cláusula restritiva do parágrafo 1º do artigo 94 da lei registral opera em desfavor do princípio extraído do artigo 60 §4º da Constituição Federal. Tudo deixa evidente possível que pessoas casadas estando separadas de fato poderão constituir união estável com outra pessoa, podendo valer-se, por isso mesmo, do Registro Civil.

Casamento: Na habilitação para o casamento, disposta pelo artigo 67 e seus parágrafos, com sua publicidade por meio eletrônico, o certificado dela extraído confere aos nubentes contrair matrimônio perante qualquer serventia de registro civil de pessoas naturais, de sua livre escolha, observado o prazo de eficácia do artigo 1.532 do Código Civil. É o que dita a nova redação do parágrafo 1º do reportado artigo 67. O normativo exclui, assim, a necessidade de intervenção do Ministério Público.

Lado outro, em idêntica diretiva desburocratizante, tem-se a introdução do artigo 70-A, regendo o procedimento da conversão da união estável em casamento, com o mesmo rito do processo de habilitação para o casamento, admitido o requerimento por procuração pública, com prazo máximo de 30 dias.   Em estando em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de autorização judicial, prescindindo o ato da celebração do matrimônio (artigo 70-A §3º) e sujeitando-se à adoção do regime patrimonial de bens na forma da lei (artigo 70-A §5º). Mais ainda: o falecimento da parte no curso do processo de habilitação não impedirá a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento (artigo 70-A §7º).

A celebração do casamento poderá ser realizada, a requerimento dos nubentes, em meio eletrônico, por sistema de videoconferência em que se possa verificar a livre manifestação da vontade dos contraentes (§8º introduzido ao artigo 67), cabendo, outrossim, ao oficial de registro aferir os motivos de urgência para a dispensa da publicação eletrônica dos proclamas (artigo 69).

Desburocratização:  Nos termos do que dispõe o parágrafo 5º, ora introduzido ao artigo 54 da lei registral “o oficial de registro civil de pessoas naturais do Município poderá, mediante convênio e desde que não prejudique o regular funcionamento da serventia, instalar unidade interligada em estabelecimento público ou privado de saúde para recepção e remessa de dados, lavratura do registro de nascimento e emissão da respectiva certidão”.

A mais significativa contribuição da novel lei, em referido permissivo, é a de estimular a eliminação gradual do sub-registro de nascimentos, enfrentando-se as falhas do sistema registral quando milhares de crianças não têm seus nascimentos contemplados a registro, figurando como pessoas inexistentes, desprovidas da aquisição de identidade pessoal [6].

Isto implica dizer, de outro viés, que as DNVs (declarações de nascido vivo), regulamentadas pela Lei nº 12.662/2012, e emitidas pelas instituições de saúde, como documento provisórios e vinculativos imediatos dos pais com os seus filhos recém-nascidos para efeito registral em cartório, perderão, a médio prazo, a sua finalidade prática, com as unidades cartorárias interligadas nas próprias maternidades. No ponto, anota-se, porém, da necessidade permanente e oportuna da utilização de um cadastro biométrico da parturiente e do recém-nascido, como referido em artigo abordando a questão, de autoria de Jurandir Bezerra Paz e Sérgio Torres Teixeira [7], a conferir uma maior segurança para o registro. Noutro giro, cumpre referir que o parágrafo 4º, agora incluído ao artigo 46 da lei registral, prevê expressamente que “os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário detentores de bases biométricas poderão franquear ao oficial de registro civil de pessoas naturais acesso às bases para fins de conferência por ocasião do registro tardio de nascimento”.

Anota-se, lado outro, que medida desburocratizante anterior, sucedeu com a Lei nº 13.484/2017 que alterou a Lei nº 6.015/73 ao permitir que, no registro de nascimento, o recém-nascido seja natural do município de residência da mãe mesmo que o parto tenha ocorrido em outro município.

As famílias “singles”: A doutrina familista tem identificado e a jurisprudência protegido as famílias de pessoas sozinhas em compreensão do modelo familiar típico dos grandes centros urbanos. São pessoas que, sozinhas, por razões diversas, se confortam bem felizes, diferenciando, com segurança emocional, a solidão da solitude. Pessoas solteiras, divorciadas, viúvas, que moram sós, formam as “famílias singles” e podem ser felizes, sozinhas. No ponto, esses dados não são constantes do Registro Civil, em livro próprio, para efeito de fomentar e nortear políticas públicas especificas. Trata-se de um experimento social de uma nova ordem familiar a merecer estudos e cuidados da lei, designadamente quando de pessoas idosas.

Inegável, enfim, que tenhamos, sempre, a dicção do registro civil como fonte dialógica diante das novas realidades jurídicas da vida, para a sua especial e devida proteção.

Advertia, de há muito, Miguel Maria da Serpa Lopes [8] que “não é tão raro esse desencontro entre o registro e a vida; e, desde que não se vislumbre fraude, que prevaleça a vida”.

Como a vida está inscrita no direito registral, nele ela prevalece em toda a sua extensão e realidade, mesmo quando finda. Este o espírito e a magnitude do próprio sistema registral civil.

Referências

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14382.htm

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015consolidado.htm

[3] Em prol da devida segurança jurídica, anota-se que o artigo 56. §2º exige que “a averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas”.

[4] Aqui manifesta-se uma atecnia legislativa, quando introduzido o §3º-A ao artigo 57 da Lei nº 6.015/1973 e ao mesmo tempo revoga-se o §3º do reportado dispositivo, quando melhor aconselha uma nova redação que seria dada ao parágrafo revogado.

[5] Artigo 94-A § 1º, Lei n. 6.015.  Não poderá ser promovido o registro, no Livro “E”, de união estável de pessoas casadas, ainda que separadas de fato, exceto se separadas judicialmente ou extrajudicialmente, ou se a declaração da união estável decorrer de sentença judicial transitada em julgado.

[6] Conforme dados do IBGE, em 2015, três milhões de brasileiros eram considerados pelo poder público como inexistentes.

[7] aqui.

[8] SERPA LOPES, Miguel Maria da. Tratado dos Registros Públicos, vol. 1. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p.198.

*Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), integrante da Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

Fonte: ConJur