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Migalhas – Artigo: Arbitragem e Direito de Família – Por Flávio Tartuce

24-02-2022

Um dos temas que vem sendo debatido muito intensamente no âmbito da doutrina brasileira diz respeito à possibilidade da arbitrabilidade em matérias de Direito de Família. O assunto foi objeto da tese de doutorado de Ricardo Lucas Calderon, defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná no último dia 7 de fevereiro de 2022, com o título “Ressignificação da indisponibilidade dos direitos: transigibilidade e arbitrabilidade nos conflitos familiares”. Participaram da banca os Professores Carlos Eduardo Pianovski – orientador e presidente -, Ana Carla Matos, Anderson Schreiber, Mario Luiz Delgado e Francisco José Cahali. O trabalho foi aprovado com distinção e deve ser publicado como livro em breve.

A propósito, o último doutrinador citado há tempos é um dos defensores da possibilidade de a arbitragem envolver os conflitos de direitos disponíveis no âmbito familiar, mesmo não havendo norma expressa o autorizando. Segundo ele, “vedada a arbitragem para solução de questão de estado (filiação, poder familiar, estado civil etc.) e para direitos não patrimoniais e indisponíveis, para se colocar os protagonistas de um conflito envolvendo o direito de família no palco arbitral, então, indispensável que a matéria pontual respectiva, dentro da amplitude do instituto, seja exclusivamente de natureza patrimonial disponível” (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 435). O jurista – alterando posição anterior – é favorável a que a arbitragem resolva até mesmo as questões relativas aos valores dos alimentos: “acabamos por nos curvar à admissibilidade, em princípio, da fixação, da pensão alimentícia no juízo arbitral, sempre no pressuposto de se verificar a capacidade das partes e a convergente disposição no sentido de existir a respectiva obrigação”. De toda sorte, ressalva, com razão, que “temos dificuldade em vislumbrar proveito expressivo às partes nesta situação. E, na prática, preferimos deixar esta matéria ainda aos cuidados do Poder Judiciário” (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 437).

Ainda no campo doutrinário, superando-se o debate que foi inaugurado na I Jornada, aprovou-se o Enunciado 96 na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2021. Consoante o seu teor, é “válida a inserção da cláusula compromissória em pacto antenupcial e em contrato de união estável”. Como se percebe, a ementa doutrinária prevê a validade, nos termos do art. 104 do Código Civil, da cláusula compromissória incluída em acordo de vontades prévio entre cônjuges e companheiros, como exercício legítimo da autonomia privada.

Quando da plenária final daquele evento, cheguei a propor à comissão de arbitragem – presidida pelo Professor Carlos Alberto Carmona – um novo texto para a proposta, com a seguinte redação: “é possível a arbitragem que envolva questões estritamente patrimoniais de Direito de Família”. A sugestão, porém, não foi acatada, e, após intensos debates, aprovou-se com pequena margem o enunciado na dicção antes apontada.

Pois bem, este breve artigo visa a trazer algumas questões de debate a respeito do tema, e que ainda servem como argumento para as minhas resistências ou ressalvas quanto à arbitragem no Direito de Família.

A primeira delas diz respeito ao fato de ser difícil a separação absoluta de interesses puramente patrimoniais nas disputas de família. Como está previsto no art. 852 do Código Civil, é vedado o compromisso arbitral – seja judicial ou extrajudicial – para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Além disso, o art. 1º da Lei de Arbitragem (lei 9.307/96) prevê que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Não se pode negar que as questões relativas à partilha de bens entre cônjuges envolvem direitos de cunho patrimonial que podem ser objeto de disposição ou alienação. Mas o que dizer de disputas que envolvem bens sobre os quais existe certo apego afetivo, caso de quadros, livros, obras de arte, veículos, peças de roupas e mesmo imóveis? E as hipóteses envolvendo os animais, que caminham para um tratamento legal em separado dos bens e das coisas? Nessas disputas, aspectos subjetivos e extrapatrimoniais, por vezes, entram em cena, a retirar a patrimonialidade pura ou a neutralidade patrimonial e objetiva das disputas.

A segunda ressalva está relacionada ao modo como foi pactuada a cláusula compromissória, sabendo-se que, em muitas situações concretas, haverá sua imposição por um dos cônjuges ou companheiros, notadamente em casos de discrepância econômica entre eles. Nesse contexto, o próprio contrato ou negócio jurídico firmado poderá ter o conteúdo imposto por uma das partes, caracterizando-se como um contrato de adesão. Lembro, a propósito de uma necessária diferenciação categórica, que o contrato de adesão não necessariamente é um contrato de consumo, como se retira do Enunciado n. 171, aprovado na III Jornada de Direito Civil. A primeira categoria pode ser definida como o contrato em que alguém, o estipulante, impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte, o aderente, duas opções: aceitar ou não. Ora, é perfeitamente possível que tal situação se revele em pacto antenupcial ou contrato de convivência, podendo atingir todo o seu conteúdo ou determinadas cláusulas.

Revelando-se tal situação, é necessário observar, quanto à cláusula compromissória, o que está previsto no art. 4º da Lei de Arbitragem. Nos termos do seu caput, a cláusula compromissória é a convenção por meio da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir relativamente a tal contrato. Como é notório, trata-se de uma previsão prévia que obriga as partes, que renunciam à jurisdição estatal e passam a se vincular, necessariamente, à jurisdição estatal, nas hipóteses de litígios futuros.

Controlando o seu conteúdo, o § 2º desse preceito estabelece que nos contratos de adesão a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. Aplicando a norma, aresto do Superior Tribunal de Justiça considerou que a cláusula que não preenche tais requisitos deve ser tida como patológica, o que acarreta a sua nulidade absoluta e não a mera ineficácia. O acórdão disse respeito a contrato de franquia, tendo sido assim ementado:

“Recurso especial. Direito civil e processual civil. Contrato de franquia. Contrato de adesão. Arbitragem. Requisito de validade do art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. Descumprimento. Reconhecimento prima facie de cláusula compromissória ‘patológica’. Atuação do Poder Judiciário. Possibilidade. Nulidade reconhecida. Recurso provido. 1. Recurso especial interposto em 07/04/2015 e redistribuído a este gabinete em 25/08/2016. 2. O contrato de franquia, por sua natureza, não está sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo, mas de fomento econômico. 3. Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. 4. O Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral ‘patológico’, i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral. 5. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, REsp 1.602.076/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.09.2016, DJe 30.09.2016).

Além da precisa análise técnica, o aresto traz a correta diferenciação entre os contratos de consumo e os de adesão, não havendo necessariamente uma coincidência de conceitos, como antes pontuei. Além disso, sobre a eventual diferenciação entre os termos contrato de adesão e por adesão, no sentido de que os primeiros exigiriam a presença do monopólio da atividade, como muitas vezes se sustenta – de forma equivocada -, a Ministra Relatora pontuou que, “quanto à diferenciação apresentada pela recorrida segundo a qual contratos ‘por adesão’ são distintos de contratos ‘de adesão’, entendo que essa sutileza sintática é incapaz de representar alguma diferença semântica relevante, pois o Direito não trata de forma distinta essas duas supostas categorias”. Isso reforça a possibilidade de se aplicar a ideia nas relações entre cônjuges e companheiros.

Em continuidade de análise do acórdão, entendo que o enquadramento pela nulidade absoluta da cláusula compromissória patológica pode se dar pelo que consta do art. 424 do Código Civil, pelo qual nos contratos de adesão é nula a cláusula de renúncia a direito resultante da natureza do negócio, no caso à jurisdição estatal. Ainda quanto a essa minha segunda objeção, vale lembrar o teor do art. 1.655 do Código Civil, segundo o qual é nula – por nulidade absoluta – a convenção antenupcial ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei, entendida a última expressão como norma de ordem pública. A norma cogente violada, no caso de imposição de uma cláusula compromissória em contrato celebrado entre consortes, é justamente o art. 424 do Código Civil. Todas essas questões, sem dúvida, merecem ser melhor analisadas quando se tem a sua inserção prévia por cônjuges ou companheiros em posições econômicas discrepantes.

Por fim, como terceira ressalva, nota-se que há um problema prático na aceitação da atuação por árbitros em contendas que envolvam o Direito de Família. Como é notório, toda a atuação dos árbitros nos procedimentos é efetivada para o fim de se evitar ao máximo qualquer nulidade da sentença arbitral a ser proferida no futuro. E, nos termos do art. 32, inc. I, da lei 9.307/96, é nula a sentença arbitral se for nula a convenção de arbitragem, categoria que engloba tanto o compromisso quanto a cláusula compromissória. Volta-se ao problema da neutralidade patrimonial das questões de Direito de Família, sendo difícil, no meu entender, fazer uma separação absoluta de questões que são patrimoniais puras, como anotei no desenvolvimento da primeira ressalva.

De toda sorte, não se pode negar que o tema é polêmico e que existem vozes e argumentos fortes para se efetivar a arbitrabilidade familiar. O mesmo debate – até com maiores dificuldades, diante da intangibilidade da legítima – atinge o Direito das Sucessões. Pretendo desenvolver melhor essas minhas objeções em artigo científico a ser escrito no futuro.

*Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

Fonte: Migalhas