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ConJur – Artigo: Quem tem medo da solução negociada de conflitos da nova Lei de Licitações? – por Gustavo Justino de Oliveira e Matheus Teixeira Moreira
Cumprindo com as expectativas prévias, a Lei Federal nº 14.133/21, publicada em 1º de abril, trouxe uma série de novidades que vêm ensejando inúmeros questionamentos por parte de gestores públicos, juristas, mercado e controladores. E, indubitavelmente, um dos pontos que mais tem atraído a atenção neste novo cotidiano das contratações públicas é: como aplicar acertadamente os Métodos Adequados de Solução de Conflitos (Mascs), na forma como foram previstos na nova Lei de Licitações?
É esse questionamento central, somado a alguns outros que surgem em meio ao debate, que iremos abordar no presente artigo, com o objetivo de contribuir para uma melhor compreensão do timing e das nuances trazidas pelos artigos 151 a 154; e 138, incisos II e III; todos da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Há realmente alguma novidade considerável com a positivação mais explícita dos Mascs na nova lei? A previsão é essencial para a aplicação no mundo dos contratos públicos ou anteriores dispositivos normativos sobre a matéria, difusos no ordenamento jurídico, já poderiam ser considerados suficientes? A utilização desses métodos é obrigatória ou facultativa; vinculada ou discricionária? Quais são os benefícios decorrentes da consolidação desta prática? Como estruturar apropriadamente a utilização dos Mascs em conflitos contratuais, notadamente pelos entes municipais?
É fato que nos últimos anos presenciamos no Brasil uma guinada paradigmática da própria essência do Direito Administrativo. Se em um passado não muito remoto a lógica era a autoridade, a imposição e a bilateralidade, há pouco mais de duas décadas passamos a vivenciar com mais intensidade a lógica do consenso, da negociação e da multilateralidade [1]. Nesse cenário estão contempladas as recentes modificações na LINDB [2] promovidas pela Lei nº 13.655/18, bem como o próprio sistema de justiça multiportas, inaugurado em 2015 pelo artigo 3º do Código de Processo Civil [3].
A previsão expressa de meios alternativos de solução de controvérsias na nova Lei de Licitações é mais um importante sinal dessa tendência, a qual retroage até a publicação de regimes normativos que já previam o envolvimento de Mascs junto à Administração Pública. Citam-se, como exemplos, a Lei nº 9.472/97 (Lei da Anatel); Lei nº 9.478/97 (Lei da ANP); Lei nº 10.233/01 (Lei da ANTT e ANTAQ); Lei nº 10.848/04 (Lei da Aneel); Lei nº 11.079/04 (Lei das PPPs); além das próprias leis de Arbitragem (Lei nº 9.307/96, modificada pela Lei nº 13.129/15) e de Mediação e Autocomposição Administrativa (Lei nº 13.140/15).
Embora não traga inovações materiais consideráveis ao tema — a postura do legislador foi minimalista e não expansionista, positivando entendimentos e boas práticas de certo modo já sedimentados na temática —, a Lei Federal nº 14.133/21 deixa evidente o incentivo para a utilização da conciliação, da mediação, do comitê de resolução de disputas (dispute boards) e da arbitragem em conflitos contratuais, inclusive na extinção dos contratos administrativos [4]; essa iniciativa acompanha o notório e prevalente estímulo pelo uso dos supracitados mecanismos constantes, à guisa de ilustração, em enunciados da recente I Jornada de Direito Administrativo, de agosto de 2020 [5].
A previsão expressa na Lei Federal nº 14.133/21 não tem o condão de servir como autorização legal específica para a admissão dos Mascs, uma vez que o artigo 1º da Lei nº 9.307/96, por exemplo, já permitia a utilização da arbitragem pelas pessoas capazes de contratar, aí incluída a Administração Pública [6]. No mais, a previsão expressa também não corresponde a um ultimato do legislador, jamais podendo ser identificada como um dever, obrigação ou mesmo ato de competência vinculada da Administração; pelo contrário: é uma sistemática cuja adoção originária dependerá necessariamente da autonomia da vontade das partes, que deverão identificar os benefícios da utilização pretendida pela norma, porém a ser promovida pela própria Administração, enquanto estratégia de boas práticas contratuais. Cuida-se, verdadeiramente, de uma prática, estimulada com mais força pela nova lei.
Ao abrir espaço para o maior emprego dos Mascs nas contratações públicas, existe a pretensão inequívoca de se fazer fixar uma nova cultura de gestão de conflitos relacionados às compras governamentais, a fim de garantir maior segurança jurídica às partes e reduzir a altíssima judicialização em torno do Poder Público — o maior litigante nacional —, reforçando-se não somente a propagação da matriz de riscos, mas a ela associando a prevenção de litígios contratuais, expandindo-se, portanto, a aplicabilidade do princípio constitucional da eficiência administrativa (artigo 37, caput, c/c artigo 5º, inc. LXXVIII, da Constituição).
Seja por meio da mediação, que consiste em um mecanismo autocompositivo de aproximação das partes visando uma solução consensual, seja através da arbitragem, que se trata de um método heterocompositivo, o estímulo consagrado pela nova lei é evidente, corolário da opção pela tutela administrativa como o caminho mais vocacionado a proporcionar maior eficiência, transparência, celeridade e custo-benefício na resolução das controvérsias contratuais [7]. A espécie de mecanismo escolhido irá variar conforme o objeto do contrato, o tipo e prazo de duração do contrato, nível de litigiosidade das partes contratantes, etc, fatores que denotam o caráter discricionário do uso dos Mascs no âmbito contratual, diretamente relacionado ao sistema de justiça multiportas, observando-se, claro, a condição de que a controvérsia esteja relacionada a direitos patrimoniais disponíveis (artigo 151, caput, da Lei nº 14.133/2021).
O legislador empregou o termo “alternativos”, para qualificar a possibilidade do uso dos Mascs na solução dos litígios contratuais (capítulo 12 do Título III “Dos Contratos Administrativos”). Embora possamos registrar que esta adjetivação se encontra superada na temática de solução consensual de conflitos — não há alternatividade e sim maior adequação dos Mascs, quando comparados às soluções judiciais — resta evidenciado no contexto das contratações públicas que a opção pelos Mascs não será obrigatória, mas facultativa a depender da conjunção de fatores diversos, como os elencados acima. Entretanto, uma vez acordado entre contratante e contratado, ou previsto no instrumento contratual que conciliação, mediação, dispute boards e arbitragem foram os métodos escolhidos — de modo escalonado ou não — para dirimir controvérsias do contrato, tais determinações deverão ser rigorosamente respeitadas pelas partes, nos moldes nos quais foram delineadas, e então estamos no espaço da obrigatoriedade de observância dos Mascs, e não mais na sua facultatividade.
Em face do exposto, parece-nos que o melhor caminho a ser seguido pelos órgãos e entes administrativos, de todas as esferas da Federação, para melhor internalizar a prática dos Mascs na contratação pública, a partir da nova Lei de Licitações, seja a de eleger “casos pilotos” para, em um primeiro momento, experimentar os métodos no seu cotidiano.
Realizados os experimentos de modo responsável, e por meio deles agregadas boas práticas, pode-se partir para um momento de maior institucionalização dos Mascs, a partir de critérios e parâmetros não somente normativos, mas igualmente pragmáticos, o que pode ser realizado por meio da edição de atos normativos próprios — decretos, portarias — que disciplinem internamente os Mascs na contratação pública, conferindo-se previsibilidade, segurança jurídica e efetividade a todos os envolvidos. A elaboração de cláusulas-padrão de Mascs em contratos administrativos, de previsão escalonada ou não, igualmente é uma prática salutar nessa matéria.
O passo seguinte pode ser a sedimentação de uma Política do Uso dos Mascs aplicados aos contratos públicos, comunicando-se na esfera municipal, estadual ou federal — de modo mais intenso e estruturado — que o emprego desses métodos haverá de ser preferencial — e não mais meramente “alternativo” [8] — reforçando a Administração Pública seus reais compromissos de 1) pacificação dos conflitos administrativos, 2) celebração de acordos autocompositivos endocontratuais como forma de resolução de controvérsias do contrato, 3) busca pela consolidação da tutela administrativa efetiva na seara contratual, e finalmente, 4) prevenção e desjudicialização dos litígios públicos [9].
Ora, sob o ponto de vista do Poder Público, não há o que se temer com a institucionalização dos Mascs como via preferencial da solução de controvérsias contratuais, conforme estimulado na nova Lei de Licitações. O que de fato se almeja aqui é conferir-se maior estabilidade e efetividade às relações jurídicas contratuais, com a mais completa, ampla e irrestrita execução do objeto dos contratos administrativos e, por conseguinte, o melhor cumprimento das tarefas públicas que a sociedade espera seja realizado pelo gestor público por meio desses contratos.
Eis os autênticos benefícios decorrentes da consolidação da prática dos Mascs na contratação pública, razão pela qual os esforços do legislador — ainda que minimalistas e não expansionistas — merecem ser aplaudidos. Do gestor público, do particular contratado e do controlador, espera-se que compreendam a importância desse giro rumo ao avanço das práticas consensuais e autocompositivas — e também da arbitragem, quando cabível — que no horizonte tendem a pavimentar caminhos para uma gestão mais eficiente dos conflitos contratuais, a cargo do próprio gestor, o que por seu turno 1) reforçam o dever de adimplemento das partes às obrigações contratuais e 2) refinam e melhor calibram as tarefas dos órgãos de fiscalização interna e externa sobre a execução dos contratos, em temas que realmente importem.
Aqui jaz a inovação do uso dos Mascs na contratação pública: agrega-se mais valor à gestão pública, reforçam-se os laços de confiança legítima entre as partes contratantes, cumprem-se mais adequadamente os objetos dos contratos públicos e abrem-se novos espaços de atuação profissional para os advogados públicos e privados, por meio do estímulo de processos administrativos não-adversariais, reduzindo-se a alta litigiosidade ainda dominante nas relações contratuais da esfera pública. Estamos todos, portanto, diante de uma “win-win situation”, compreendida inclusive como diretriz para a boa implementação dos Mascs na contratação pública, a partir dos incentivos da nova Lei de Licitações.
[1] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Os acordos administrativos na dogmática brasileira contemporânea. In MOREIRA, Antonio Judice [et al.]. Mediação e arbitragem na administração pública: Brasil e Portugal. São Paulo: Almedina, 2020, v. 1, p. 103-114.
[2] Cf. artigos 20 a 30 do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.
[3] DIDIER JR., Fredie. Justiça multiportas e tutela constitucional adequada: autocomposição em direitos coletivos. In: _____ (Coord. geral). Justiça multiportas. Salvador: JusPodium, 2017.
[4] Cf. artigos 151 a 154; e 138, incisos II e III; todos da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021.
[5] BRASIL. Poder Judiciário. Conselho da Justiça Federal. Enunciados nº 10, 18 e 19. I Jornada de Direito Administrativo. Brasília, 2020.
[6] OLIVEIRA, Gustavo Justino de; ESTEFAM, Felipe Faiwichow. Curso prático de arbitragem e administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
[7] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A agenda da arbitragem com a administração pública: mais do mesmo ou há espaço para inovação? In: Contraponto Jurídico: Posicionamentos divergentes sobre grandes temas do direito. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, v. 1, p. 29-46.
[8] É o que atualmente já acontece na esfera federal com a opção preferencial pela arbitragem, nos termos do Decreto nº 10.025, de 20 de setembro de 2019.
[9] Nessa configuração, cf. Lei nº 17.324, de 18 de março de 2020, da Cidade de São Paulo, que “Institui a Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Pública Municipal Direta e Indireta”, a qual elenca os seguintes objetivos em seu artigo 1º: I – reduzir a litigiosidade;
II – estimular a solução adequada de controvérsias;
III – promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos;
IV – aprimorar o gerenciamento do volume de demandas administrativas e judiciais.
Gustavo Justino de Oliveira é professor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), advogado, consultor, árbitro especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.
Matheus Teixeira Moreira é advogado e coordenador jurídico em Justino de Oliveira Advogados.
Fonte: ConJur