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Clipping – Direito Rural – Patrimônio rural em afetação sob a ótica do registrador de imóveis

25-11-2020

Sancionada em abril de 2020, a Lei do Agro apresentou várias inovações no mundo jurídico do  agronegócio, tais como a criação de um novo título de crédito (Cédula Imobiliária Rural), de uma nova forma de garantia de obrigação (Patrimônio Rural em Afetação) e atualizações legislativas substanciais em um título já há muito utilizado (Cédula de Produto Rural).

Com efeito, o profissional que atua no agronegócio deverá ter em mente essas mudanças, pois dadas as inovações trazidas, é de se esperar que, em breve, o setor de crédito venha a fazer uso desses instrumentos, até porque o cerne da lei foi, justamente, trazer maior segurança jurídica ao setor financeiro.

Nesse artigo, iremos abordar os aspectos jurídicos do instituto do Patrimônio Rural em Afetação, descritos nos arts. 7º a 16 da Lei 13.986/2020 sob o prisma do registro de imóveis, isto é, algumas considerações práticas sobre o que dispõe (e o que não dispõe) a lei em relação à atuação do cartório de registro imobiliário.

  1. Constituição do Patrimônio Rural em Afetação

O Patrimônio Rural em Afetação será constituído a pedido do proprietário, nos termos do arts. 7º e 9º da Lei 13.986/20. Tem por objetivo o destacamento de uma propriedade ou parte dela de seu patrimônio visando a constituição de garantia em uma Cédula Imobiliária Rural (CIR) ou em uma Cédula de Produto Rural (CPR). Durante a vigência da afetação, o patrimônio destacado não poderá sofrer qualquer ato translativo de propriedade por iniciativa do proprietário.

É vedada a constituição de patrimônio rural em afetação de imóvel já gravado por qualquer ônus real ou registro de citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, averbações de constrição judicial, de execuções ajuizadas, ou qualquer uma das informações de que trata o art. 54 da lei 13.097/15. Também é vedada a constituição de afetação em pequenas propriedades rurais, assim entendida aquelas menores que quatro módulos fiscais, a área de tamanho inferior ao módulo rural ou fração mínima de parcelamento e ao bem de família.

Referidas vedações, expressas no art. 8º da lei 13.986/20, por se tratar de critérios objetivos, são de observância compulsória e de responsabilidade do oficial registrador, sendo que eventual descumprimento implica em nulidade da constituição do PRA e, eventualmente, prejuízo ao Credor, o que pode ensejar, inclusive, responsabilização civil do oficial registrador.

Se o imóvel não se enquadrar nas vedações legais, cabe ao proprietário instruir o pedido de registro com os documentos descritos no art. 12 da lei, o que deverá ser verificado e analisado pelo oficial registrador.

Embora a lei nada mencione, o oficial poderá, por solicitação do proprietário, descrever as benfeitorias existentes no imóvel, pois isso poderá influenciar na avaliação do patrimônio afetado para fins de constituição de garantia. Todavia, é importante que o oficial esteja munido de documentos que comprovem a existência dessas benfeitorias ao tempo da constituição, como um memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a Anotação de Responsabilidade Técnica.

  1. Vinculação

Constituído o patrimônio rural em afetação, este poderá ser vinculado em garantia para operações materializadas exclusivamente em Cédula Imobiliária Rural ou em Cédula de Produto Rural.

Cada patrimônio afetado poderá estar vinculado à apenas um título, e ele não se comunica com os demais bens e direitos do patrimônio do proprietário, de modo que sobre eles não é possível a constituição de hipoteca ou qualquer outra forma de constrição, desde que estejam vinculados a CIR ou a CPR.

  1. Transferência

Talvez o ponto mais delicado e, consequentemente, também mais complicado da lei 13.986/20 seja o do procedimento para consolidação e transferência do patrimônio em afetação ao Credor do título vinculado, justamente porque a lei é bastante omissa e cheia de lacunas quanto ao procedimento que o oficial registrador deverá seguir.

O art. 28 da lei dispõe simplesmente que “vencida a CIR e não liquidado o crédito por ela representado, o credor poderá exercer de imediato o direito à transferência, para sua titularidade, do registro da propriedade da área rural que constitui o patrimônio rural em afetação, ou de sua fração, vinculado à CIR no cartório de registro de imóveis correspondente”. Não estabelece o procedimento pormenorizado para o exercício desse direito de transferência, o que, além de trazer insegurança jurídica, também poderá trazer risco de responsabilidade ao registrador.

Lutero de Paiva Pereira destaca: “a lei deveria ter disciplinado de forma muito mais objetiva o procedimento de transferência da propriedade do devedor ao credor, até mesmo para que o oficial de registro de imóveis tivesse mais segurança jurídica para processar o pedido”. E adiante conclui: “a lei fará com que o oficial de registro de imóveis, para sua segurança, acabe criando condições a serem satisfeitas pelo credor para exercer o direito que da cédula deflui (…) e se assim houver, nenhum reparo poderá ser feito em relação à sua conduta, (…) pois está em pauta a perda da propriedade de um bem imóvel, o que é muito relevante.”[1]

Por exemplo, a lei não estabelece em nenhum momento a necessidade de comunicação do devedor sobre a transferência de sua titularidade. Assim, pode-se imaginar a hipótese onde o proprietário tenha quitado a obrigação, mas o Credor, por má-fé ou por algum erro em sua contabilidade, venha informar ao Registro Imobiliário a inadimplência e assim transferir a propriedade para seu nome para então levá-la à leilão público, o que poderá vir a causar graves danos ao devedor-proprietário.

Dessa forma, embora a lei não estabeleça um procedimento próprio, é prudente e razoável que o Registrador notifique o proprietário sobre a situação de inadimplência e transferência de propriedade para que esse possa se opor ao ato, caso verifique alguma nulidade. Trata-se, inclusive, de pressuposto basilar do direito, a oportunidade de contraditório e ampla defesa antes de excussão de seu patrimônio.

Ademais, referido procedimento encontra fundamento jurídico no §2º e §3º do art. 28, que dispõe que deve ser aplicado, no que couber, o procedimento dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97, que trata sobre a consolidação de imóvel em alienação fiduciária. E, muito embora o procedimento daqueles arts. 26 e 27 da lei 9.514/97 estabeleça um prazo de 15 dias para o devedor purgar a mora, o que parece contrastar com o disposto no caput do art. 28 da Lei 13.986/20, parece ser prudente que o oficial registrador siga todo o procedimento descrito naqueles artigos, para fins de segurança jurídica tanto do registrador, quanto do proprietário do imóvel.

Outro ponto que merece destaque é o art. 26 da lei 13.986/20, o qual dispõe que o vencimento da CIR poderá ser antecipado independentemente de aviso ou interpelação judicial ou extrajudicial, nas hipóteses de descumprimento das obrigações de administração e à preservação do patrimônio rural em afetação, insolvência civil, falência ou recuperação judicial do emitente ou existência de prática comprovada de desvio de bens e administração ruinosa do imóvel rural que constitui o patrimônio rural em afetação a ela vinculado.

A dificuldade é porque a análise de algumas das causas do vencimento antecipado se mostram subjetivas, como o descumprimento de obrigações referentes à administração do imóvel ou existência de prática comprovada de desvio de bens e administração ruinosa do imóvel.

É de se supor que o registrador deva ser bastante exigente na análise de eventual pedido de vencimento antecipado. Lutero de Paiva Pereira já alerta: “sem essa prova robusta o oficial poderá transferir o patrimônio do devedor de forma temerária e com risco totalmente seu”.[2]

Assim, diante das várias omissões ou obscuridades da lei, é de se supor que os oficiais registrais venham a ser bastante criteriosos quanto ao preenchimento dos requisitos exigidos, buscando em normas paralelas, por exemplo, a alienação fiduciária de bem imóvel, a salvaguarda de procedimentos a serem adotados enquanto não houver algum ato normativo superior, ou jurisprudência consolidada.

Fonte: Direito Rural