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Artigo – Conjur – O novo coronavírus e a relação contratual – Por Flávio Jardim e André Silveira
Contratos servem essencialmente para definir riscos. As pessoas, quando entram numa relação contratual, tentam antecipar possíveis problemas que podem inviabilizar a execução do que foi pactuado, definindo quem será responsável por esses eventos.
Alguns, como a impossibilidade de cumprimento do que acordado devido à ruína financeira de uma parte, causada por sua própria imperícia, por exemplo, dificilmente são considerados justificativas legítimas para afastar a responsabilidade da parte pelo descumprimento das obrigações avençadas.
Outros, como um raio que atinge o veículo alugado, impedindo o cliente de restituí-lo à locadora, podem ter diferente tratamento.
A pergunta é certamente mais complexa quando se está diante de uma inédita pandemia, como a atual do coronavírus, que fecha fronteiras nacionais, impõe uma política forçada de isolamento coletivo e restringe a atividade produtiva.
Como decidir quem é responsável pelos prejuízos decorrentes do descumprimento de obrigações pactuadas que se tornaram impossíveis ou foram extremamente dificultadas em virtude da Covid-19?
Alocação do risco no contrato e força maior
A disseminação do novo coronavírus entre humanos, ao menos em relação a contratos celebrados até o final do ano de 2019, era certamente um fato imprevisível. Ninguém poderia imaginar que ela ocorreria e as consequências globais que ela geraria. Levando em conta essas características de imprevisibilidade e também de inevitabilidade, a pandemia do novo coronavírus parece reunir características para ser considerada um evento de força maior.
É essa a interpretação que o Conselho Chinês para Promoção do Comércio Internacional, órgão do Governo da China, tem dado ao fato. Segundo o que divulgado, até 3 de março último, o referido Conselho já havia emitido mais de 4,5 mil certificados de força maior, com a finalidade de eximir contratantes inadimplentes chineses do pagamento de mais de 53 bilhões de dólares em prejuízos.[1]
É certo que, caso a pandemia seja considerada um evento de força maior, partes inadimplentes tendem a poder se ver livres de reparar prejuízos por obrigações que não puderam ser cumpridas por tal fato. É essa a regra da primeira parte do art. 393 do Código Civil, que diz que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de força maior. Ou seja, se o contrato for silente sobre a alocação do risco de força maior, por força de lei, o devedor não responde por prejuízos do descumprimento.
Contudo, essa é uma norma dispositiva e pode ter ocorrido também de, no contrato, o devedor ter expressamente se responsabilizado pelos prejuízos resultantes dos casos de força maior. Essa previsão contratual é plenamente compatível com o direito brasileiro, sendo autorizada pela segunda parte do artigo 393 do Código Civil. Isso significa que, para esse acordo, o risco da ocorrência de um caso de força maior, como a pandemia do novo coronavírus, foi alocado para o devedor e, mesmo sendo um evento imprevisível e inevitável, ele poderá ser obrigado a arcar com os prejuízos do inadimplemento.
Por óbvio, as cláusulas de força maior não preverão especificamente a pandemia do novo coronavírus. Elas serão redigidas de maneira exemplificativa, listando fatos que são tradicionalmente considerados eventos daquela natureza, como guerras, desastres naturais, entre outros. Algumas poderão, inclusive, prever a ocorrência de epidemias e listar doenças como a Síndrome Respiratória Aguda Grave — SARS, a gripe aviária, como exemplos.
Nesses casos, com base no cânone de interpretação noscitur a sociis, que orienta que o significado de um termo seja dado por referência às palavras a ele associadas, parece ser claro que o significado do termo “epidemia” tenderá a ser construído por referência às palavras a ele associadas, quais sejam, as diversas graves enfermidades listadas, e nele será incluída a pandemia de Covid-19.
Impraticabilidade
É de se imaginar, também, obrigações contratuais que não se tornaram literalmente impossíveis de serem cumpridas, mas que, em virtude da pandemia do novo coronavírus, ficaram extremamente onerosas, demoradas ou, para sintetizar, impraticáveis.
Esse conceito de impraticabilidade é bem desenvolvido no direito americano. Se, após a celebração do contrato, a execução das obrigações contratuais, sem culpa da parte inadimplente, torna-se impraticável, em razão de um evento cuja não ocorrência era uma premissa fundamental da contratação, o dever da parte de cumprir a obrigação é liberado, salvo se o contrato dispuser em contrário ou as circunstâncias indicarem distintamente[2].
Uma ilustração da teoria da impraticabilidade é a seguinte: “em 1º de junho, A concorda em vender e B em comprar bens para serem entregues em outubro num determinado porto. O porto é subsequentemente fechado por regulações de quarentena durante todo o mês de outubro, não há um substituto comercialmente razoável disponível, e A não entrega os bens. A obrigação de A de entregar os bens é exonerada e A não é responsável perante B por violação do contrato”[3]. No caso em questão, a possibilidade de entrega das mercadorias no porto é considerada a premissa fundamental da contratação.
Para explicar situações abarcadas pela impraticabilidade, também são listados como exemplo casos de severa escassez de matéria prima ou de desabastecimento por força de circunstâncias como guerra, embargo, perda de colheita e falência não prevista de fornecedores de produtos que causa aumento substancial no custo ou impossibilita o vendedor de obter as mercadorias necessárias para o cumprimento da obrigação[4]. Tem-se aí a ideia de onerosidade excessiva, já consagrada pela nossa jurisprudência[5] como um elemento que relativiza o pacta sunt servanda.
Frustração
A pandemia do novo coronavírus também provoca inúmeras situações nas quais, a despeito de o adimplemento ser possível, pereceu o propósito pelo qual uma das partes celebrou o contrato. Essa ideia de frustração da intenção foi consagrada no direito inglês como uma das justificativas que permitem que a parte obrigada não cumpra o que pactuado.
O caso que deu origem a essa doutrina foi Krell v. Henry[6], também conhecido como o coronation case. A coroação do Rei Edward VII estava agendada para ocorrer entre 26 e 27 de junho de 1902. O réu, C.S. Henry, intencionando assistir à cerimônia de um local privilegiado, celebrou contrato de locação do apartamento do autor da ação, Paul Krell, comprometendo-se a pagar £75 pela locação, sendo £25 de entrada e £50 dois dias antes do início do contrato. A cerimônia acabou adiada por conta de uma enfermidade do Rei Edward VII e apenas ocorreu em agosto daquele ano. Como C.S. Henry se recusou a pagar as 50 libras remanescentes, Paul Krell propôs a ação para receber esse valor.
Apesar de no acordo não haver registro que a razão para a celebração da avença era a de que C.S. Henry assistisse à coroação, a Corte de Apelações considerou que ambas as partes sabiam que esse fato era a premissa fundamental pela qual o pacto havia sido celebrado. Mas essa premissa fundamental havia sido frustrada sem culpa de C.S. Henry. Sendo assim, ele foi ser liberado do ônus de pagar o valor remanescente da locação.
A doutrina da frustration acabou também consolidada nos Estados Unidos. No Restatement (2nd) of Contracts ela está assim descrita: “quando, após celebrado o contrato, a principal motivação for substancialmente frustrada sem culpa da parte, em virtude de um fato que ela não tinha razão para conhecer e cuja não ocorrência era uma premissa fundamental sobre a qual a contratação ocorreu, não haverá obrigação da parte de cumprir a avença, salvo se a linguagem do contrato ou as circunstâncias indicarem o contrário”[7].
Para ilustrar a importância da doutrina no cenário atual, basta imaginar os turistas que reservaram, sem possibilidade de cancelamento, hotéis em Tóquio, entre 24 de julho a 9 de agosto de 2020, durante o período originalmente agendado para a Olimpíada de 2020, possivelmente por valores acima da média de mercado aplicável para outros períodos.
A viagem ao Japão naquele período provavelmente será possível de ser realizada. Estarão os turistas obrigados a cumprir esses contratos, inclusive a pagar parcelas remanescentes pelo valor originariamente estipulado? Ou a realização dos Jogos Olímpicos era a principal motivação da estadia e eles estarão exonerados dos deveres remanescentes, ainda que percam o que já foi pago? Terão direito ao total ou parcial reembolso? Casos envolvendo esses fatos certamente serão respondidos levando em conta a ideia de frustração da intenção.
Exame Caso a Caso
Dever de Mitigar o Dano
Dois pontos chaves ainda merecem ser ressaltados.
O primeiro é que as situações de caso fortuito, impraticabilidade, frustração, entre outras, serão examinadas e definidas caso a caso[8], à luz dos deveres de boa-fé e probidade (art. 422 do Código Civil) e levando em consideração os termos do contrato. Ou seja, será a partir do exame dos fatos específicos de cada instrumento que será definido se a pandemia do novo coronavírus tornou inviável ou frustrou o propósito do cumprimento do pacto. Isso ocorre, sobretudo, em virtude da textura aberta desses institutos, que dificulta ter certeza, de antemão, da sua respectiva incidência, em todos os casos em que forem alegados.
A partir desses deveres legais genéricos, que na linguagem do Professor Canadense Wilfrid Waluchow refletem pré-compromissos, o direito aplicável aos casos influenciados pela disseminação do novo coronavírus será desenvolvido pela jurisprudência. Serão examinados os fatos de um caso e, comparando-os com os do caso subsequente, num método denominado nos países da common law como bottom-up lawmaking, ou seja, criação normativa de baixo-para-cima[9], serão consolidadas as regras que regulam as situações específicas nas quais as partes inadimplentes não responderão pelos prejuízos.
O que parece ser certo, contudo, é que as teorias que regulam a inexecução de obrigações contratuais flutuam entre dois polos opostos. “Elas buscam evitar a inflexibilidade da regra que demanda a leitura literal dos contratos, sem adicionar uma indevida incerteza acerca da extensão das obrigações assumidas”[10]. Assim, a consequência mais comum é “a aplicação do direito para desobrigar um contrato em razão da ocorrência de eventos ou circunstâncias que não foram contemplados pelas partes no momento da celebração do pacto”[11], quando tais eventos ou circunstâncias forem de tal importância “que manter as partes presas à avença implicaria impor a elas um novo contrato”[12]. Nas palavras do juiz inglês Lord Denning, o critério deve ser maior do que “a mera onerosidade ou o aumento de custo. Deve ser positivamente injusto manter as partes vinculadas [e essa é] geralmente uma linha difícil de ser traçada, mas que precisa ser feita. E deve ser feita pelos Tribunais, como uma questão de direito.” [13]
O segundo é que partes que tenham contratos com obrigações em curso, as quais foram impossibilitadas ou tornadas mais penosas em virtude da pandemia do novo coronavírus, devem tomar todas as medidas necessárias para mitigar o dano sofrido, de maneira que ele não seja indevidamente agravado.
Esse dever surge da teoria contratual americana segundo a qual há o duty to mitigate the loss. O STJ expressamente reconhece que o princípio da boa-fé objetiva e os deveres de cooperação e lealdade impõem que o credor tente evitar o agravamento do próprio prejuízo e cita justamente essa teoria para fundamentar esse entendimento[14].
Levando em consideração esse dever, autores internacionais têm apontado que os impactos da pandemia de COVID-19, dentre os quais as obrigações governamentais de fechamento de comércio, devem ser documentados, bem como as medidas adotadas para mitigar esses impactos. Além de auxiliarem em eventuais alegações de força maior, de impraticabilidade e de frustração, esses registros podem ajudar também na instrução de pedidos administrativos de auxílio aprovados por programas governamentais[15].
Conclusões
A pandemia do novo coronavírus certamente levará à inexecução de diversas obrigações de contratos em curso. A forma como os riscos foram alocados nos contratos, além de institutos jurídicos como força maior, impraticabilidade, frustração, além do dever de mitigar o dano, serão relevantíssimos para entender quem assumirá os prejuízos por esses inadimplementos.
É fácil perceber, entretanto, que a incidência ou não desses institutos, por terem textura aberta, será definida caso a caso. Somente assim será identificado de que maneira as partes se posicionaram frente a esse imprevisível e inevitável risco e será decidido se essa previsão é compatível com valores como a boa-fé objetiva e a probidade, previstos no Código Civil.
Fonte: Consultor Jurídico