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Artigo – CNJ cria regras para reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva – Por Carlos Magno Alves de Souza
Introdução
Em 17 de novembro de 2017, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento 63, através do qual, dentre outros temas, disciplinou o procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva, perante os Ofícios do Registro Civil das Pessoas Naturais.
Apesar de alguns estados já estarem realizando o reconhecimento extrajudicial da “paternidade” socioafetiva mediante a edição de normativos próprios, o Provimento 63/2017 do CNJ vem para consolidar a possibilidade de que o reconhecimento da filiação socioafetiva seja efetivado nos cartórios do registo civil de qualquer unidade federativa, uniformizando o seu procedimento.
Todavia, quando da publicação de novas regras jurídicas, é natural que surjam questionamentos e críticas que servem para firmar interpretações, bem como aperfeiçoar a nova ordem normativa, de maneira que, neste breve estudo, traremos algumas ponderações acerca do referido provimento, que consideramos importantes na discussão sobre o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva.
Requisitos ao reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva
Com efeito, de acordo com o referido provimento, os requisitos para que o reconhecimento da filiação socioafetiva seja deferido extrajudicialmente são os seguintes:
I – Requerimento firmado pelo ascendente socioafetivo (nos termos do Anexo VI), testamento ou codicilo (artigo 11, parágrafos 1º e 8º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
II – Documento de identificação com foto do requerente – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
III – Certidão de nascimento atualizada do filho – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
IV – Anuência pessoalmente dos pais biológicos, na hipótese do filho ser menor de 18 anos de idade (artigo 11, parágrafos 3º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
V – Anuência pessoalmente do filho maior de 12 anos de idade (artigo 11, parágrafos 4º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VI – Não poderão ter a filiação socioafetiva reconhecida os irmãos entre si nem os ascendentes (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VII – Entre o requerente e o filho deve haver uma diferença de pelo menos 16 anos de idade (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VIII – Comprovação da posse do estado de filho (artigo 12 do Provimento 63/2017 do CNJ).
Da comprovação da posse do estado de filho
O artigo 12 do Provimento 63/2017 do CNJ prevê que “suspeitando de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado de posse de filho, o registrador fundamentará a recusa, não praticará o ato e encaminhará o pedido ao juiz competente nos termos da legislação local”.
Desse modo, além do requisito da manifestação de vontade do requerente, dos pais biológicos e do filho maior de 12 anos, a referida norma impõe ao oficial de registro a necessidade de observar a configuração da posse de estado de filho como condição indispensável à caracterização da filiação socioafetiva.
De acordo com Jacqueline Filgueiras Nogueira, a posse do estado de filho corresponde à “relação de afeto, íntimo e duradouro, exteriorizado e com reconhecimento social, entre homem e uma criança, que se comportam e se tratam como pai e filho, exercitando os direitos e assumem as obrigações que essa relação paterno-filial determina”.
Nesse compasso, para Luiz Edson Fachin a posse do estado de filho é constituída por três elementos, a saber: 1) tratamento (tractatus) – presente quando o indivíduo é tratado na família como filho; 2) nome (nomem) – ocorre quando ao filho é atribuído o nome dos pais; 3) fama (reputatio) – há repercussão social da relação de filiação.
Segundo Renata Viana Neri, a doutrina na sua grande maioria, dispensa o requisito do nomem, de maneira que o fato do nome do filho não conter o correspondente patronímico, em nada altera a caracterização da posse do estado de filho, desde que presentes os demais elementos, quais sejam, tratamento (tractatus) e fama (reputatio).
Assim sendo, o oficial de registro deve estar atento à comprovação da posse do estado de filho, mais especificamente, no tocante aos elementos do tratamento e da fama que, aliados ao requisito da manifestação de vontade, caracterizam a filiação socioafetiva.
Para tanto, recomenda-se ao registrador civil, profissional do direito dotado de fé-pública que tem a função de garantir a segurança e eficácia dos atos jurídicos, que, além dos documentos expressamente previstos no Provimento 63/2017 do CNJ, exija, ainda, a apresentação dos seguintes documentos: (i) certidão de casamento ou instrumento de reconhecimento de união estável, referente ao pretenso ascendente socioafetivo e a mãe ou pai biológico – tractatus; (ii) declaração de duas testemunhas, parentes ou não, que atestem conhecer o requerente e o filho, reconhecendo entre eles a existência de relação afetiva de filiação – reputatio.
É certo que a mera existência de casamento ou união estável entre um dos pais biológicos e o padrasto ou madrasta não é condição suficiente para caracterizar o vinculo da filiação socioafetiva, todavia, apontam que há um relação familiar entre o padrasto ou madrasta e o filho, podendo configurar o elemento do tratamento (tractatus). Além disso, a declaração de duas testemunhas que atestem conhecer publicamente a relação de filiação socioafetiva, evidencia o elemento da fama (reputatio), que acrescidos à manifestação da vontade, mediante a apresentação dos documentos indicados no Provimento 63/2017 do CNJ, demonstram a existência de filiação socioafetiva.
Agindo assim, o oficial de registro diligente estará adotando as cautelas mínimas para que o reconhecimento da filiação socioafetiva seja realizado em conformidade com o ordenamento jurídico vigente.
Da possibilidade da anuência por procuração
O artigo 11, parágrafo 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ, estabelece que “a coleta da anuência tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de doze anos deverá ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado”.
Entendemos que essa determinação, além de desarrazoada, é inconstitucional, haja vista que estabelece tratamento discriminatório no reconhecimento da filiação a depender de sua origem, se biológica ou socioafetiva, uma vez que o Provimento 16/2012 do CNJ, que dispõe sobre reconhecimento extrajudicial da paternidade biológica, não exige que a anuência da mãe ou do filho maior seja dada pessoalmente, bastando que seja apresentado documento escrito autêntico.
Desse modo, é descabido exigir que a aludida anuência seja dada presencialmente, sendo injustificável que ela não possa ser realizada através da apresentação de instrumento público ou particular com firma reconhecida, no qual constem expressamente os termos da anuência, ou, ainda, através de mandatário com poderes específicos.
Do reconhecimento como ato de averbação e não de registro
Conforme narrado acima, o referido Provimento exige que o requerente apresente, dentre outros documentos, a certidão de nascimento do filho, de maneira que o reconhecimento da filiação socioafetiva somente se dá por ato de averbação, ou seja, posterior ao registro.
Não obstante, o questionamento que se faz é o seguinte: é possível haver posse do estado de filho durante o período da gestação?
Imagine-se a situação hipotética em que Ana está grávida, porém desconhece a identidade do pai biológico, sendo que Ana é casada com Márcia. Passados os nove meses do período gestacional, Márcia, de posse da declaração de nascido vivo, se dirige ao cartório no intuito de registrar a criança em nome de Ana (mãe biológica) e dela, Márcia (mãe socioafetiva).
Nas palavras de Renata Viana Neri, “no tocante à exigência de duração da posse de estado de filho para a caracterização do status de filho, vale dizer, que a doutrina é contrária à fixação de um prazo mínimo para a configuração da posse de estado de filho, sendo necessário o exame das singularidades de cada caso concreto”.
Assim sendo, no caso hipotético apresentado, Ana descobriu que estava grávida, todavia, ignorando a identidade do pai biológico. Por seu turno, Márcia, casada com Ana, desde os primeiros meses do descobrimento da gravidez, passou a zelar pelo nascituro, ajudando no seu cuidado, acompanhando exames médicos, estabelecendo uma relação de amor, enfim, agindo com se o filho, também, fosse seu.
Nesse contexto, seria razoável que fosse possibilitado que o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva ocorresse já no momento do registro de nascimento, haja vista estarem presentes os requisitos de manifestação de vontade e da posse do estado de filho.
Sem embargo disso, recomenda-se que o registrador civil siga a orientação do Provimento 63/2017 do CNJ, de maneira que realize o aludido procedimento, somente, através do ato de averbação.
Da possibilidade da averbação da multiparentalidade diretamente no cartório
A jurisprudência nacional já firmou o entendimento de que é possível a coexistência da filiação biológica com a socioafetiva, de modo que no assento de nascimento de determinada pessoa pode constar dois pais e uma mãe ou duas mães e um pai, por exemplo.
A multiparentalidade reconhecida judicialmente, decorrente da concomitância da filiação socioafetiva com a biológica, não é mais nenhuma novidade. Todavia, o Provimento 63/2017 do CNJ trouxe relevante inovação ao permitir o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, sem exclusão da biológica.
Já em seu preâmbulo, o Provimento 63/2017 do CNJ leva em consideração “o fato de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios (Supremo Tribunal Federal – RE 898.060/SC)”.
Nesse sentido, o artigo 11, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ, reza que “constarão do termo, além dos dados do requerente, os dados do campo filiação e do filho que constam no registro, devendo o registrador colher a assinatura do pai E da mãe do reconhecido, caso este seja menor”.
Ao passo que, o artigo 11, parágrafo 5º, da referida norma, prevê que “a coleta da anuência tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de 12 anos deverá ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado”.
Deixando de lado qualquer dúvida sobre a questão, o artigo 14 do Provimento 63/2017 do CNJ estabelece que “o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo filiação no assento de nascimento”.
Desta maneira, após a edição do referido provimento, é possível que a filiação socioafetiva seja reconhecida diretamente no cartório, sem que seja afastada a filiação biológica, desde que haja anuência dos pais biológicos e do filho maior de 12 anos, quando for o caso.
Da diferença de idade entre o ascendente socioafetivo e o filho
Por último, resta dizer que apesar do artigo 10, parágrafo 4º, do Provimento 63/2017 do CNJ, exigir uma diferença mínima de idade de 16 anos, entre o requerente e o filho a ser reconhecido, é provável que em determinadas situações, através da via judicial, essa regra seja mitigada, a exemplo do que já ocorre em casos de adoção, em que a jurisprudência tem flexibilizado o entendimento acerca da idade mínima, priorizando o vínculo da filiação.
Fonte: Conjur