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Parecer – Natureza jurídica e constitucionalidade dos valores exigidos a título de remuneração dos serviços notariais e de registro

11-05-2016

Por Paulo de Barros Carvalho, Titular de Direito Tributário da PUC-SP e da USP

I. Da Consulta

OSINDICATO DOS NOTÁRIOS E REGISTRA-DORES DO ESTADO DE SÃO PAULO – SINOREG/SP, por meio de seu Presidente Cláudio Marçal Freire, submete à minha apreciação consulta relativa à natureza jurídica e constitucionalidade dos valores exigidos a título de remuneração dos serviços notariais e de registro.

                            O Consulente informa que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn nº 3.887) contra dispositivos da Lei nº 11.331/2002, que dispõe sobre emolumentos cartorários no Estado de São Paulo, argumentando que referida Lei violaria o disposto no art. 145, § 2º, da Constituição da República.

                            Diante dessa situação, e tendo em vista as disposições do direito positivo brasileiro a respeito da base de cálculo das taxas, solicita que me manifeste sobre o tema.Para dar rendimento ao parecer, e no sentido de isolar os tópicos que outorgam substância ao assunto, o Consulente apresenta 5 (cinco) quesitos, os quais serão examinados no decorrer deste trabalho e, ao final, objetivamente respondidos.

                            Ei-los:

                            1. Qual a “natureza jurídica” da remuneração dos serviços notariais e de registro?

                            2. Caso se entenda que a referida remuneração configura “taxa”, a base de cálculo eleita pela Lei nº 11.331/2002, do Estado de São Paulo, é apropriada para essa espécie de tributo? Ou tem-se base de cálculo própria de impostos?

                            3. Qual seria a forma de cálculo apropriada para a cobrança da contraprestação aos serviços notariais e de registro?

                            4. Supondo que a pretensão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, constante da ADIn nº 3.887, venha a prosperar, que conseqüências práticas isso poderá acarretar?

                            5. Que critérios devem ser levados em conta para a fixação dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro, tendo em vista que o parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.169/2000 prescreve a correspondência de tais emolumentos “ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados”?

II. Do Parecer

1. Aproximação metodológica para determinar a “natureza jurídica” da remuneração dos serviços notariais e de registros

                            A realidade é um tecido contínuo e heterogêneo que recobre o mundo; a ciência, por meio da metodologia, faz cortes sobre esse real, produzindo descontínuos homogêneos. É esse esforço que permite o conhecimento articulado sobre a realidade. Por isso, todo trabalho sério há de ter sua metodologia, isto é, um conjunto de técnicas e processos utilizados para demarcar o objeto e ultrapassar a subjetividade do autor, suscitando a possibilidade de atingi-lo, conhecê-lo, pesquisá-lo, explorá-lo e, se for o caso, alterá-lo.

                            Saber sobre a remuneração exigida pela prestação de serviços notariais e de registro no sistema jurídico brasileiro implica, antes de mais nada, ter presente que dentre os muitos traços a ele peculiares, o direito se manifesta em linguagem. E antepondo-se a qualquer outra consideração, assumir que os veículos introdutores que delineiam os contornos dessa cobrança se apresentam como um conjunto expressional que denota um segmento lingüístico montado consoante específico arranjo jurídico-prescritivo. Avançar sobre a “natureza jurídica” dos emolumentos relativos à prestação de serviços notariais e de registro exige, pois, conhecer os textos legais que fundamentam sua exigência na ordem jurídica brasileira.

                            Tal consciência do objeto de análise que nos ocupa, liberta o cientista do direito de falsos problemas, permitindo-nos uma reflexão mais ampla e profunda sobre a realidade que nos envolve. Importa acentuar, tratando-se do direito, que a linguagem não só fala do objeto-jurídico, como participa de sua própria ontologia, constituindo-o.

                            Nutro a convicção de que somente chegaremos ao cerne do problema quando pudermos identificar a norma que serve como fundamento jurídico dessa obrigação e prescreve o vínculo obrigacional que advém para as pessoas encarregadas de pagar esse montante, em face do sujeito pretensor. Tratar-se-á de taxa ou de preço público? Tudo depende dessa regra e da urdidura jurídica que a envolve. Nisso parece consistir a chave para o desate dos quesitos propostos na Consulta.

1.1. A expressão “natureza jurídica”

                            Tenho empregado “natureza jurídica” entre aspas para expressar minha discordância com relação à literalidade da locução. Em termos convencionais, fala-se em “natureza” para designar a busca da essência, da substância ou da compleição natural das coisas. A “natureza” revelar-
se-ia pelos atributos essenciais que teriam a virtude de pôr em evidência a própria coisa. Nessa acepção, a “natureza” da coisa poria em destaque sua própria essência ou substância, dando a conhecer a matéria de que se compõe o objeto: está à mostra a força essencialista que envolve a tradição jurídica, na incansável e malograda busca pela “realidade”. Há uma expressiva tendência na cultura ocidental em relatar o mundo circundante como se tivéssemos acesso às ontologias, às essências, esquecendo-nos de que o único instrumento de que dispomos para organizar os “objetos da experiência” ou o “mundo da vida”, como prefere Habermas, é a linguagem e, por mais que se aproxime dos objetos, nunca chega a tocá-los.

                            O problema é de fundo filosófico. Ocorre que em sua base filosófica tradicional, o direito leva ao terreno ontológico as observações sobre a estrutura da linguagem, supondo que haja substâncias (na nomenclatura aristotélica) e que as palavras são integradas às coisas. Faz uma transposição entre a estrutura real da linguagem e uma suposta estrutura transcendente do universo, tese esta que o atual grau de desenvolvimento do direito não pode mais aceitar. A relação entre palavra e coisa é artificial, fruto de decisões individuais ou sociais, alheia, em princípio, às características observáveis da coisa mesma.

                            Ao inventar nomes traçamos limites na nossa realidade, como se a cortássemos, idealmente, em pedaços e, ao assinalar cada nome, identificamos o pedaço que, segundo nossa decisão, corresponderá a determinado nome. As coisas não mudam de nome, nós é que mudamos o modo de nomear as coisas[1]. Apenas existem nomes aceitos, nomes rejeitados e nomes menos aceitos que outros: não existem nomes verdadeiros das coisas. Por isso, nosso esforço não há de centralizar-se na análise do nome da exação, que no momento faz-se objeto de nossos cuidados, mas no fenômeno jurídico por ele apontado.

2. A regra-matriz de incidência tributária

A investigação atilada da matéria posta a minha consideração não transborda os limites do direito positivo brasileiro, o que dirige a atenção do sujeito cognoscente ao exame das normas jurídicas tributárias, precisamente daquelas que instituem as taxas; ou, de outro lado, das normas jurídicas não-tributárias, instituidoras dos preços públicos.

Em acepção estrita, tomamos a norma jurídica como expressão mínima e irredutível (com o perdão do pleonasmo) de manifestação do deôntico, com sentido completo. Isso porque os comandos jurídicos, para serem compreendidos no contexto de uma comunicação bem sucedida, devem revestir um quantum de estrutura formal. Certamente ninguém entenderia uma ordem, em todo seu alcance, apenas com a indicação, por exemplo, da conduta desejada: “pague a quantia de x reais”. Adviriam, desde logo, algumas perguntas e, no segmento das respectivas respostas, chegaríamos à fórmula que tem o condão de oferecer o sentido completo da mensagem, isto é, a identificação da pessoa titular do direito, do sujeito obrigado e, ainda, como, quando, onde e por que deve fazê-lo. Somente então estaríamos diante daquela unidade de sentido que as prescrições jurídicas necessitam para serem adequadamente cumpridas. Em simbolismo lógico é representada pela fórmulaD[F®(S’RS”)], que interpreto:deve ser que, dado o fato F, então se instale a relação jurídica R, entre os sujeitos S’ e S”.

                           Diante do princípio da homogeneidade sintática das regras do direito positivo, não pode ser outra a conclusão senão aquela segundo a qual as normas jurídicas tributárias ostentam a mesma estrutura formal de todas as entidades do conjunto, diferençando-se apenas nas instâncias semântica e pragmática. Caracterizam-se por incidir em determinada região do social, marcada por acontecimentos economicamente apreciáveis que são atrelados a condutas obrigatórias da parte dos administrados, e que consistem em prestações pecuniárias em favor do Estado-Administração. Todavia, se o esquema lógico ou sintático permanece estável, em toda a extensão do sistema, outro tanto não ocorre no plano semântico.

Convém assinalar que, no domínio das chamadas “normas tributárias”, nem todas as unidades dizem respeito, propriamente, ao fenômeno da percussão impositiva. Algumas estipulam diretrizes gerais ou fixam providências administrativas para imprimir operatividade a tal pretensão. Pelo contrário, são poucas, individualizadas e especialíssimas as que definem a incidência tributária, conotando eventos de possível ocorrência e prescrevendo os elementos da obrigação de pagar. Para uma aproximação mais breve, como expediente didático, pode-se até afirmar que existe somente uma para cada figura tributária, acompanhada por numerosas regras de caráter funcional. Ora, é firmado nessa base empírica que passo a designar “norma tributária em sentido estrito” aquela que assinala o núcleo do impacto jurídico da exação. E esta, exatamente por instituir o âmbito de incidência do tributo, é também denominada “norma-padrão” ou “regra-matriz de incidência tributária”.

                           A construção da regra-matriz de incidência, assim como de qualquer norma jurídica, é obra do intérprete, a partir dos estímulos sensoriais do texto legislado. Sua hipótese prevê fato de conteúdo econômico, enquanto o conseqüente estatui vínculo obrigacional entre o Estado, ou quem lhe faça as vezes, na condição de sujeito ativo, e uma pessoa física ou jurídica, particular ou pública, como sujeito passivo, de tal sorte que o primeiro ficará investido do direito subjetivo público de exigir, do segundo, o pagamento de determinada quantia em dinheiro. Em contrapartida, o sujeito passivo será cometido do dever jurídico de prestar aquele objeto. Essa meditação nos autoriza a declarar que, para obter-se a fórmula abstrata da regra-matriz de incidência, é mister isolar as proposições em si, como formas de estruturas sintáticas; suspender o vector semântico da norma para as situações objetivas, constituídas por eventos do mundo e por condutas; bem como desconsiderar os atos psicológicos de querer e de pensar a norma. Efetuadas as devidas abstrações lógicas, identificaremos, no descritor da norma, um critério material (comportamento de uma pessoa, representado por verbo pessoal e de predicação incompleta, seg
uido pelo complemento), condicionado no tempo (critério temporal) e no espaço (critério espacial). Já na conseqüência, observaremos um critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo) e um critério quantitativo (base de cálculo e alíquota). A conjunção desses dados referenciais nos oferece a possibilidade de exibir, na sua plenitude, o núcleo lógico estrutural da proposição normativa:

D{[Cm(v.c).Ce.Ct]®[Cp(Sa.Sp).Cq(bc.al)]}

Explicando os símbolos dessa linguagem formal, teremos: “D” é o dever-ser neutro, interproposicional, que outorga validade à norma jurídica, incidindo sobre o conectivo implicacional para juridicizar o vínculo entre a hipótese e a conseqüência. “[Cm(v.c).Ce.Ct]” é a hipótese normativa, em que “Cm” é o critério material da hipótese, núcleo da descrição fáctica; “v” é o verbo, sempre pessoal e de predicação incompleta; “c” é o complemento do verbo; “Ce” é o critério espacial; “Ct” o critério temporal; e “.” é o conectivo conjuntor. “®” é o símbolo do conectivo condicional, interproposicional; e “[Cp(Sa.Sp).Cq(bc.al)]” é o conseqüente normativo, em que “Cp” é o critério pessoal; “Sa” é o sujeito ativo da obrigação; “Sp” é o sujeito passivo; “Cq” indica o critério quantitativo, em que “bc”é a base de cálculo; e “al” é a alíquota.

2.1. A importância da base de cálculo para a correta configuração da tipologia tributária

Conforme ficou assentado, para isolar a regra-matriz de incidência tributária é preciso aludir aos critérios material, espacial e temporal, na proposição hipótese, e aos critérios pessoal e quantitativo, na proposição tese. Dentre tais critérios, interessam, para fins de identificação da natureza jurídica do tributo, o material e o quantitativo. Isso porque, enquanto o primeiro é o núcleo da hipótese de incidência, composto por verbo e complemento, que descrevem abstratamente atuação estatal ou fato do particular, o segundo, no âmbito da base de cálculo, mensura a intensidade daquela conduta praticada pela Administração ou pelo contribuinte, conforme o caso. Nesses critérios é que se encontra o feixe de preceitos demarcadores dos chamados “traços da enunciação”, ou seja, o conjunto dos elementos que o editor da norma julgou relevantes para produzir o acontecimento tributado.

Nota-se com evidência, pelo que foi exposto, a inaptidão da hipótese para, sozinha, dizer qualquer coisa de definitiva sobre a estrutura intrínseca do evento a ser colhido pela incidência. Para identificarmos os verdadeiros contornos do fato tributável, necessário se faz consultar a base de cálculo, especialmente se o objetivo é conhecer a natureza jurídica do gravame. 

A tipologia tributária é obtida pela análise do binômio “hipótese de incidência e base de cálculo”. Esse princípio de dualidade compositiva consta na Carta Magna, consistindo, pois, em diretriz constitucional, firmada no momento em que o legislador realizava o trabalho delicado de traçar a rígida discriminação de competências tributárias, preocupado em preservar os princípios da Federação e da autonomia dos Municípios. Preceituou o constituinte brasileiro, no art. 145, § 2º, que“as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”. E, mais adiante, no art. 154, inciso I, asseverou, como requisitos para a União instituir impostos não previstos em sua competência, que sejam esses criados mediante lei complementar, não apresentem caráter de cumulatividade e“não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”. A mensagem constitucional mostra-se clara: é imprescindível examinar a hipótese de incidência e a base de cálculo para que se possa ingressar na intimidade estrutural da figura tributária.

Registre-se, porém, que caso não houvesse menção expressa acerca da relevância da base de cálculo, esta seria revelada pela própria compostura normativa. Tanto que Alfredo Augusto Becker[2], sob a vigência da Constituição anterior, já entrevia nesse elemento o autêntico núcleo da hipótese de incidência dos tributos, asseverando que“o espectro atômico da hipótese de incidência da regra de tributação revela que em sua composição existe um núcleo e um, ou mais, elementos adjetivos. O núcleo é a base de cálculo e confere o gênero jurídico ao tributo”.

Relativizando um pouco a posição do mencionado autor, mesmo porque entendo que a base de cálculo está no conseqüente da norma e não na hipótese, não há como ignorar a importância dessa grandeza que dimensiona o fato, mensurando-o para efeitos de tributação. Partindo de tais considerações, concluo serem três as funções da base de cálculo: (a) função


mensuradora, por competir-lhe medir as proporções reais do fato; (b) função objetiva, em virtude de compor a específica determinação do débito; e (c) função comparativa, por confirmar, infirmar ou afirmar o correto elemento material do antecedente normativo. 

Induvidosa é a operatividade do citado elemento do critério quantitativo, devendo a ele voltarem-se as atenções, pois oferece caminho seguro para reforçar aquilo que, intuitivamente, a doutrina e a jurisprudência já vêm afirmando de maneira reiterada: a base de cálculo deve, necessariamente, exteriorizar a grandeza do fato descrito no antecedente normativo, motivo pelo qual sempre que houver descompasso entre a hipótese de incidência firmada pelo legislador e a base de cálculo por ele escolhida, esta última há de prevalecer, orientando o intérprete no sentido de determinar a autêntica “natureza jurídica” do tributo. Por isso, sendo a medida do fato tributado, tem o condão de afirmar, confirmar ou infirmar o critério material oferecido no texto.

2.2.A base de cálculo como perspectiva dimensível do fato jurídico tributário. A necessária identidade entre o fato jurídico da base de cálculo (Fbc) e o fato jurídico tributário (Fjt)

                            Tenho para mim que a base de cálculo é a grandeza instituída na conseqüência da regra-matriz tributária e que se destina, primordialmente, a dimensionar o comportamento inserto no núcleo do fato jurídico. Entretanto, que é ser “perspectiva dimensível”? O adjetivo “dimensível” qualifica aquilo que se pode medir, requerendo algo que seja mensurável. O objeto dessa medição, obviamente, será a intensidade
do evento que se tornou fato jurídico tributário. Mas como se processa esse fenômeno? Eis a pergunta que ensejará, certamente, uma investigação mais rigorosa no campo de estudo da base imponível.

                            Referida categoria jurídico-positiva tem sido estudada sempre em função da hipótese tributária, ora como elemento integrante dessa, ora como medida da realização hipotética. Rompendo com essa tradição e isolando o enunciado da grandeza mensuradora, verificaremos que antes de exercer qualquer função de medida do fato imponível, a “base de cálculo” é uma proposição prescritiva que se instala no cerne da estrutura relacional do conseqüente normativo.

                            Não obstante pertencer à linguagem prescritiva do direito e por isso não submeter-se à lógica dos valores verdadeiro e falso, a proposição base de cálculo reúne um quantum de descritividade. Assim, atua da mesma forma que o antecedente da regra-matriz, selecionando propriedades e juridicizando, à sua maneira, o suporte fáctico, base da percussão tributária.

                            O verbo juridicizar, construído pela acuidade e pela autoridade dogmática de Pontes de Miranda, quer significar, aqui, aquela mesma subsunção que se opera entre o fato e a hipótese tributária. Nesse passo, a proposição base de cálculo seleciona, conceptualmente, aspectos do “real”. E lembrando que os conceitos são seletores de propriedades, compreenderemos que nem tudo desse “real” haverá de ser acolhido pela base de cálculo.

                            Pode falar-se, desse modo, emfato da base de cálculo com proporção de sentido semelhante ao da expressão fato jurídico tributário. Dado que ambas denotam o resultado da força juridicizante da regra-matriz de incidência, uma e outra constituem perspectivas abstratas e arbitrariamente construídas pelo legislador tributário, na regra-matriz de incidência, ganhando foros de efetividade com a norma individual e concreta que aplica a regra-matriz ao acontecimento do mundo social, na cadeia de positivação do direito. A diferença reside na circunstância de que tais fatos são delineados por proposições diversas: (a) o fato jurídico tributário será o antecedente da norma individual e concreta, ao passo que (b) o fato da base de cálculo estará no conseqüente dessa mesma regra, definindo, em termos pecuniários, com a colaboração de outro fator (a alíquota), o montante da prestação a ser recolhida pelo devedor do tributo.

                            Assim como a hipótese tributária équalificadora normativa do fáctico, a base de cálculo équantificadora normativa do fáctico (o que não deixa de ser uma forma de qualificação). O enunciado se torna fato da base de cálculo porque ingressa no universo do direito através da porta aberta da proposição normativa. E o que determina quais propriedades do fato entram, quais não entram, é ato-de-valoração que preside a feitura da base de cálculo.

                            Entre as “portas” de entrada para o mundo jurídico-tributário, todas, obviamente, pela via normativa, uma será o antecedente ou suposto; outra, a proposição base de cálculo. Os dois enunciados incidem sobre o mesmo fato, colhendo-o, entretanto, por perspectivas diversas. A proposição hipótese ocupa-se da materialidade da ocorrência, definindo as coordenadas de tempo e de espaço dessa realização. A proposição base de cálculo dirige-se para o mesmo sucesso, tomando-o, porém, de modo diverso: focaliza a materialidade descrita pela hipótese e seleciona, dela, algum aspecto que possa ser dimensionado, elegendo, por esse modo, a grandeza quantificadora ajustada para medir a intensidade do acontecimento factual.

                            Enfim, são exatamente essas duas proposições, integrantes da regra-matriz de incidência tributária, que realizam, de forma abstrata e genérica, a seletividade normativa da regra perante o “real”. Sua efetividade, todavia, ficará condicionada à expedição da correspondente norma individual e concreta, seja ela exarada pela Fazenda Pública ou pelo particular, no exercício de competência outorgada pela legislação do tributo. Por isso, ambas devem manter estreita relação, denotando sempre o mesmo fato, só que mediante critérios de apuração diferentes, de tal sorte que fiquem preservados os sobranceiros princípios constitucionais informadores da adequada construção da regra-matriz de incidência tributária, assim como de todas as unidades integrantes do processo de positivação do direito.

                            Explicando melhor, a base de cálculo projeta-se sobre a mesma porção factual, recortada no suporte fáctico pela hipótese tributária (Fjt), mensurando o fato que sofreu o impacto da incidência (Fbc). A parcela comum, no caso de imposto, há de ser a atividade do particular ou de alguém a ele assimilado, de tal modo que tanto o enunciado da hipótese, como o da base convirjam para o mesmo ponto. Tratando-se de taxa, em que se requer, com assomos de absoluta necessidade, uma atuação do Estado, seja ela expressa na prestação de serviços públicos ou no exercício do poder de polícia, o enunciado da base de cálculo deverá coincidir com ofactum da atuação estatal, previsto no antecedente normativo, dimensionando-lhe de alguma forma e por alguma medida que seja com ele compatível.

                            Todo o esforço do legislador há de estar orientado no sentido de promover o perfeito ajuste entre o enunciado mensurador da base de cálculo e a formulação enunciativa da hipótese. Dito de outro modo, a perspectiva dimensível há de ser uma medida efetiva do fato jurídico tributário, recolhido como tal pela hipótese normativa.

3. Identificação das espécies tributárias

Indicados os critérios da regra-matriz de incidência, bem como a relevância da base de cálculo, convém discorrer, brevemente, acerca das espécies tributárias. Nesse contexto, tributo é gênero do qual imposto, taxa e contribuição de melhoria são espécies, de acordo com a disposição inserta no art. 145 da Cons
tituição da República. Desse modo, todas as espécies que conotam as características inerentes ao tributo devem ser examinadas, apontando-se para as diferenças específicas. Tais diferenças, que consubstanciam critérios de distinção entre as espécies, são construídas a partir do binômio “hipótese tributária/base de cálculo”. Dois argumentos recomendam a adoção dessa dualidade: (i) trata-se de diretriz constitucional, firmada no momento em que o legislador realizava o trabalho delicado de traçar a rígida discriminação de competências tributárias, visando a preservar o princípio maior da Federação e a manter incólume a autonomia municipal; (ii) para além disso, é algo simples e operativo, que permite o reconhecimento da índole tributária, sem a necessidade de considerações retóricas e até alheias ao assunto.

Firmadas essas premissas, podemos dizer que os impostos são tributos que têm por hipótese de incidência, confirmada pela base de cálculo, fato alheio a qualquer atuação do Poder Público, ou seja, são tributos não-vinculados a uma atuosidade do Estado ou de quem lhe faça as vezes, segundo classificação proposta pelo saudoso Geraldo Ataliba[3].

É da índole do imposto, no nosso direito positivo, a inexistência de participação do Estado, desenvolvendo atividade dirigida ao contribuinte. Sua hipótese de incidência descreve fatos quaisquer presuntivos de riqueza (uma pessoa auferir renda líquida, industrializar produtos, prestar serviços etc.). A formulação lingüística o denuncia e a base de cálculo o comprova.

A contribuição de melhoria, por sua vez, é tributo que tem por hipótese de incidência a descrição de evento consistente na construção de obra pública da qual decorra valorização dos imóveis circundantes. Nesse sentido predica o art. 145, III, da Lei Maior. Frise-se que a realização da obra, por si só, não é suficiente: exige-se a adoção de fator estranho à atuação do Estado, que, ao ser-lhe acrescentado, complementa a descrição factual. E a valorização imobiliária não é, necessariamente, conseqüência de realização de obras públicas. Muitas vezes, sobre não acarretarem incremento de valor nos imóveis adjacentes, as obras podem até colaborar para a diminuição de seu preço de mercado. Por isso mesmo, havendo a correlação entre a obra e a valorização, o direito positivo exige que o proprietário do imóvel valorizado recolha a chamada contribuição de melhoria. Daí dizer que a contribuição de melhoria é tributo vinculado a uma atuação do Poder Público, porém indiretamente referido ao obrigado, porquanto sua cobrança depende de fator intermediário, que é a valorização do bem imóvel.

A taxa, por seu turno, pressupõe a prestação, efetiva ou potencial, de serviços públicos ou o exercício do poder de polícia, direta e especificamente dirigidos ao contribuinte. A base de cálculo deverá exibir, forçosamente, a medida da intensidade da participação do Estado, tudo nos moldes do que estatui o art. 145, II, da Constituição.

Enfim, traçadas as linhas definidoras das espécies tributárias aceitas pela Carta Magna, não temos dúvidas em afirmar que somente as três espécies citadas encontram guarida no ordenamento jurídico brasileiro. Qualquer tentativa de acatar os desacertos políticos que o legislador utiliza para burlar a rígida discriminação de competência afigura-se-me como vazia de fundamento, visto que a hipótese de incidência, associada à base de cálculo, permite identificar as espécies tributárias: impostos, taxas e contribuições de melhoria. Todo o suporte argumentativo calca-se na orientação do sistema, em sua integridade estrutural. Outra coisa não fez o constituinte senão estabelecer que tanto os empréstimos compulsórios como as contribuições são entidades tributárias da espécie em que se enquadrarem.

A Constituição da República, em seu art. 148, outorga à União a possibilidade de instituir, mediante lei complementar, empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou de sua iminência, ou para realizar investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado, nesta última hipótese, o princípio da anterioridade. O fato jurídico tributário dos empréstimos compulsórios deve estar compreendido na competência impositiva da União, podendo ser escolhidos entre os eventos descritos no art. 153 da Carta Magna, ou entre as atuosidades por ela manifestadas ou por quem lhe faça as vezes, seja em razão da prestação de serviço público, específico e divisível, efetivo ou potencial, seja pelo  exercício do poder de polícia.

Desse modo, o empréstimo compulsório será imposto se o antecedente da regra-matriz de incidência descrever um fato pertencente à esfera jurídica do contribuinte, ou taxa, se a previsão consubstanciar-se numa atividade estatal, confirmada, é claro, por sua base de cálculo.

O mesmo raciocínio aplica-se às contribuiçõessociais, de intervenção no domínio econômico ou no interesse das categorias profissionais e econômicas, cuja norma de estrutura se constrói a partir do enunciado prescrito no art. 149 da Lei Maior, podendo assumir, de igual maneira, tanto a feição de impostos como a de taxas, conforme suas características descritivas.

Tecidas essas considerações, estamos aptos a identificar, nas várias figuras tributárias, sua “natureza jurídica”. Sempre que o intérprete pretender, na análise de determinada exação, identificar a espécie tributária, penso que deverá, impreterivelmente, recorrer àquele binômio constitucional. Somente esse é critério jurídico e seguro a quem almeja o estudo da “natureza” de um tributo. A linguagem do legislador, por assentar-se no discurso natural e ser produzida por representantes de vários segmentos da sociedade, sem específico conhecimento jurídico, costumam apresentar erros, impropriedades, atecnias, deficiências e ambigüidades. O próprio legislador, no inciso I do art. 4º do Código Tributário Nacional, prevendo os equívocos e confusões que poderiam decorrer de sua linguagem, declara serem irrelevantes, para fim de qualificação da espécie tributária, “a denominação e demais características formais adotadas pela lei”. Os nomes com que venham a ser designadas as prestações, portanto, hão de ser recebidas pelo intérprete sem aquele tom de seriedade e certeza, exigindo cuidadosa verificação.

4. As taxas e suas espécies

A espécie tributária denominada taxa apresenta, em seu antecedente normativo, a descrição conotativa de uma atividade do Estado diretamente relacionada ao contribuinte, que somente deverá pagar o valor exigido pelo Poder Público quando deste receber alguma prestação, efetiva ou potencial, ou, ainda, ser for por ele exercido o poder de polícia, sendo certo que é imprescindível lei anterior prevendo determinada prática estatal como condição suficiente e necessária à exigência do tributo.

O direito positivo vigente prevê duas espécies de taxas: (a) taxas cobradas pela prestação de serviços públicos; e (b) taxas exigidas em razão do exercício do poder de polícia. Na redação dada pelo art
. 145, inciso II, podem ser instituídas “taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”. Ocupemo-nos de cada uma delas.

4.1. Taxa exigida pela prestação efetiva ou potencial de serviço público

Segundo definição de Celso Antônio Bandeira de Mello,“serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo”[4]. Cabe enfatizar que não é o desempenho de qualquer serviço público que enseja a imposição de taxa. Nos termos do inciso II do art. 145 da Constituição da República, é mister que esse serviço apresente as características de “divisibilidade” e de “especificidade”.

Tais caracteres são necessários em virtude do próprio conceito de taxa, definido, até aqui, como tributo cuja hipótese de incidência consiste na descrição de atividade estatal diretamente vinculada ao contribuinte, enquanto o pagamento do valor prescrito no conseqüente representa a contraparte devida ao Estado, pelo administrado, a quem o Poder Público voltou sua atenção. É exatamente essa referência direta ao particular que constitui a “especificidade”: um serviço público é específico quando há individualização no oferecimento do serviço e na forma como é prestado.

A “divisibilidade”, por sua vez, significa possibilidade de mensurar o serviço efetivamente prestado ou posto à disposição de cada contribuinte. É elemento correlato à especificidade, pois se o serviço mostrar-se individualizado, isso importará admitir que permitirá o cálculo de seu custo relativamente a cada usuário, tornando viável a exigência de taxa. Outros, contudo, preferem salientar o princípio da “retributividade”, mediante o qual o pagamento da taxa pelo sujeito passivo há de corresponder à retribuição pecuniária pelo reconhecimento do serviço público utilizado.

Do enunciado normativo-constitucional (art. 145, II) depreende-se, ainda, expressa referência à possibilidade de o serviço público remunerável por taxa ser utilizado efetiva ou potencialmente, podendo ser prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Em outras palavras, a cobrança poderá ocorrer não apenas nos casos em que houver efetiva utilização do serviço público específico e divisível, mas também nas hipóteses em que, sendo esse serviço de utilização compulsória, seja ele colocado à disposição do particular, encontrando-se em efetivo funcionamento.

Acerca dos pressupostos necessários para que o serviço público seja remunerável por taxa, acima relatados, dispõe o art. 79 do Código Tributário Nacional:

“Art. 79. Os serviços públicos a que se refere o art. 77 consideram-se:

I – utilizados pelo contribuinte:

a) efetivamente, quando por ele usufruídos a qualquer título;

b) potencialmente, quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à sua disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento;

II – específicos, quando possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou necessidade pública;

III – divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.”

                            Tão só quando presentes esses requisitos o ente prestador do serviço público estará credenciado para exigir, daqueles que usufruíram dessa prestação, o pagamento de taxa. Simetricamente, estando ausente qualquer desses caracteres (utilização efetiva ou potencial, especificidade e divisibilidade), comprometida ficará a cobrança da prestação pecuniária sobre que discorremos.

4.2. Taxa exigida em razão do exercício do poder de polícia

“Poder de polícia” consiste na possibilidade do Estado praticar atividades condicionantes da liberdade e da propriedade dos seus administrados, em nome de interesses coletivos. Tendo o Poder Público a missão de garantir a segurança, o bem-estar, a paz e a ordem coletiva, é-lhe atribuído poder de vigilância, que o autoriza a controlar a liberdade dos indivíduos para proteger os interesses da sociedade. Objetivando assegurar tais interesses, o funcionamento de algumas atividades necessita ser autorizado administrativamente, dependendo, para tanto, de sua fiscalização. E é exatamente o exercício desse poder de polícia, inspecionando e fiscalizando os particulares em nome do bem comum, que enseja a remuneração por meio de “taxa de polícia”.   

Assim como o serviço público, o ato expressivo do poder de polícia deve ser específico e divisível para fins de exigência de taxa, já que esta, como explicado, é tributo que apresenta referibilidade direta ao contribuinte. Rege-se, também, pelo princípio da “retributividade”, devendo haver retribuição dos custos das diligências necessárias ao seu exercício, motivo pelo qual deve seu exercício ser individualizado, permitindo precisar o custo relativamente a cada usuário.

Há um requisito, porém, que difere daqueles exigíveis no que tange aos serviços públicos: o poder de polícia deve ser “exercido”, não bastando ser colocado à disposição dos particulares. Diferentemente do que acontece com as taxas de serviço público, as normas constitucionais relativas à remuneração de atos de poder de polícia afastam a idéia de potencialidade, exigindo, o inciso II do art. 145 da Carta Suprema, que haja o “exercício do poder de polícia”.

O exercício do poder de polícia consubstancia-se na efetiva atuação dos órgãos da Administração Pública incumbidos de fiscalizar e controlar atividades dos particulares que possam, de alguma forma, prejudicar interesses da coletividade. Logo, para que seja possível a cobrança de tal espécie de taxa, não basta simplesmente haver poder de polícia: é imprescindível que haja seu exercício. O sistema concebe a exigência de taxas em razão da atividade estatal fundamentada no poder de polícia, no pressuposto de que tal atividade exista. Em outras palavras, o ato expressivo do poder de polícia (fiscalização e controle de atividades dos particulares) deve ser, necessariamente, praticado. Caso contrário, não haverá motivos que justifiquem a instituição do referido tributo, visto que se trata de espécie tributária cuja hipótese de incidência é diretamente vinculada à atuação estatal. A mera existência do aparelho fiscalizador não tem o condão de legitimar a cobrança de taxas de polícia, que poderiam ter por suporte apenas o exercício potencial do respectivo poder. É vedado ao Estado cobrar taxa de fiscali
zação se não vier a exercê-la efetivamente, pois, nesse caso, nada existirá que justifique a cobrança da exação: não há atividade estatal; não há despesa feita; não há custo a ser financiado pelos contribuintes.

Em síntese, a exigibilidade da “taxa de polícia” tem como pressuposto a existência de um serviço atrelado ao poder de polícia, cujo exercício deve ser real, aferível e concreto.

 

5. Distinção entre taxa e preço público

                            Como obrigação compulsória, a taxa independe da manifestação da vontade dos destinatários. Por esse motivo, a caracterização da compulsoriedade na utilização do serviço público ou no exercício do poder de polícia é nota essencial do regime jurídico das taxas. A prestação configura taxa se a utilização do serviço público ou o exercício do poder de polícia são compulsórios, em virtude de determinação legal. Esse é o entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal, que, em recurso extraordinário do qual foi relator o eminente Ministro Moreira Alves, decidiu:

“(…) sendo compulsória a utilização do serviço público de remoção de lixo – o que resulta, inclusive, de sua disciplina como serviço essencial à saúde pública – a tarifa de lixo instituída pelo Decreto n° 196, de 12 de janeiro de 1975, do Poder Executivo do Município do Rio de Janeiro, é, na verdade, taxa”[5].

                            Preço público ou tarifa[6], diversamente, consiste na contraprestação que remunera o uso ou consumo de bens ou de serviços realizados pelo Poder Público, efetivado em regime contratual, e não imposto compulsoriamente às pessoas, como é o caso daquelas obrigações de caráter tributário. Essa é, aliás, a compreensão do Supremo Tribunal Federal, expressa pelo Ministro Moreira Alves[7]:


“Preço público é o preço contratual, que constitui contraprestação de serviços de natureza comercial ou industrial – e que, por isso mesmo, podem ser objeto de concessão para particulares -, serviços esses prestados por meio de contrato de adesão. Para haver preço público é necessário existir contrato, ainda que tacitamente celebrado, e o contrato ainda que de adesão, dá a quem pretende celebrá-lo, se aderir às condições dele, a liberdade de não contratar, atendendo a sua necessidade por outro meio lícito. Quem não quiser tomar ônibus, e aderir, portanto, ao contrato de transporte, poderá ir, licitamente, por outros meios, ao lugar de destino. O que não tem sentido é pretender-se a existência de contrato quando o que deve aderir não tem sequer a liberdade de não contratar, porque, licitamente, não tem meio algum para obter o resultado de que necessita.” (RTJ/STF nº 98).

                            A diferença essencial entre “taxa” e “preço público” está, portanto, na hipótese normativa que fundamenta o nascimento das respectivas prestações. Na taxa, não há espaço para o exercício da vontade do contribuinte contratar ou não. A lei a institui e estipula a realização estatal como a situação propulsora e, logicamente, suficiente da obrigação tributária. Verificado no mundo factual esse acontecimento, o tributo torna-se potencialmente devido. A obrigação de pagar a taxa deflui imediatamente da lei, enquanto a de pagar preço público decorre mediatamente da lei e diretamente do pacto contratual decorrente do uso do serviço ou bem público.

6. “Natureza jurídica” da remuneração dos serviços notariais e de registro

                           Anuncio, desde logo, que perante a realidade instituída pelo direito positivo atual, parece-me indiscutível a tese segundo a qual a remuneração dos serviços notariais e de registro, também denominada “emolumentos”, apresenta natureza específica de taxa. O presente tributo se caracteriza por apresentar, na hipótese da norma, a descrição de um fato revelador de atividade estatal (prestação de serviços notariais e de registros públicos), direta e especificamente dirigida ao contribuinte; além disso, a análise de sua base de cálculo exibe a medida da intensidade da participação do Estado, confirmando tratar-se da espécietaxa.

Demonstrando o caráter público de tais serviços, Maria Helena Diniz[8] discorre sobre a atividade do registrador:

“Portanto, serventuário ou servidor significa ‘o que serve num ofício ou cargo’. É a pessoa que, como o oficial de Registro de Imóvel, exerce uma função pública, tendo suas atribuições determinadas pelas normas especiais, por atender interesse público. O registro de imóveis, por ser obrigatório, transforma-se num serviço público, e, pelo regime jurídico do Brasil, perfaz uma função de publicidade, pois, ante a mutação jurídico-real do bem de raiz, investe a propriedade ou o direito real na pessoa de seu titular, tornando o direito oponível erga omnes. O registrador, em seu cargo, terá a tarefa de atribuir autenticidade, segurança e eficácia aos atos e aos documentos que leva
ao assento.”

As atividades notariais e de registro configuram prestação de serviço de natureza pública delegada a particulares. Essa delegação, porém, não tem o condão de alterar a “natureza jurídica” desse serviço, que permanece público. Trata-se de atividade administrativa consistente em“garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” (art. 1º da Lei nº 8.935/94), devendo, nos termos do art. 236, da Constituição da República, ser delegados a pessoas físicas, mediante concurso público de provas e de títulos, ou por meio de remoção, para os que já forem titulares de serventias.

A “natureza jurídica” tributária dos emolumentos das serventias extrajudiciais já foi reconhecida, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CUSTAS E EMOLUMENTOS: SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJU-DICIAIS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO Nº 7, DE 30 DE JUNHO DE 1995, DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ: ATO NORMATIVO.

1. Já ao tempo da Emenda Constitucional nº 1/69, julgando a Representação nº 1.094-SP, o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que ‘as custas e os emolumentos judiciais ou extrajudiciais’, por não serem preços públicos, ‘mas, sim, taxas, não podem ter seus valores fixados por decreto, sujeitos que estão ao princípio constitucional da legalidade (parágrafo 29 do artigo 153 da Emenda Constitucional nº 1/69), garantia essa que não pode ser ladeada mediante delegação legislativa’ (RTJ 141/430, julgamento ocorrido a 08/08/1984).

2. Orientação que reiterou, a 20/04/1990, no julgamento do RE nº 116.208-MG.

3. Esse entendimento persiste, sob a vigência da Constituição atual (de 1988), cujo art. 24 estabelece a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, para legislar sobre custas dos serviços forenses (inciso IV) e cujo art. 150, no inciso I, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a exigência ou aumento de tributo, sem lei que o estabeleça.

4.O art. 145 admite a cobrança de ‘taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição’.Tal conceito abrange não só custas judiciais, mas, também, as extrajudiciais (emolumentos), pois estas resultam, igualmente, de serviço público, ainda que prestado em caráter particular (art. 236). Mas sempre fixadas por lei. No caso presente, a majoração de custas judiciais e extrajudiciais resultou de Resolução – do Tribunal de Justiça – e não de Lei formal, como exigido pela Constituição Federal.

5. Aqui não se trata de ‘simples correção monetária dos valores anteriormente fixados’, mas de aumento do valor de custas judiciais e extrajudiciais, sem lei a respeito.

6. Ação Direta julgada procedente, para declaração de inconstitucionalidade da Resolução nº 07, de 30 de junho de 1995, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.” (ADI 1444/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 12/02/2003, DJ de 11/04/2003, p. 25)

                                  No mesmo sentido, essa egrégia Corte consignou, por ocasião do julgamento da ADI 3694-AP, que“as custas e os emolumentos judiciais ou extrajudiciais têm caráter tributário de taxa”(Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

Outra não poderia ser a conclusão a respeito do assunto, visto que os serviços notariais e de registro, conquanto exercidos por pessoas de direito privado, decorrem de delegação do Poder Público, sujeitando-se, por conseguinte, ao regime de direito público. Ademais, tratando-se de prestação compulsória, não está presente qualquer caráter contratual. Trata-se de remuneração a serviço público específico e divisível, configurando “taxa”.

7. A base de cálculode serviços notariais e de registro

                            Os dois critérios identificadores das espécies tributárias, a que nos referimos nos itens precedentes, convivem harmoniosamente na concepção da tipologia tributária constitucional: um, a vinculação, ou não, do fato descrito na hipótese, a uma atividade estatal; outro, a base de cálculo, como grandeza apta para dimensionar aquela ocorrência.  É o que preceitua o constituinte brasileiro no art. 145, § 2°, nos termos do qual“As taxas não poderão ter base de cálculo própria de imposto”, e, indiretamente, no art. 154, I, quando limita a criação de outros impostos em função, justamente, desse binômio (“fato gerador” e “base de cálculo”).

                            Ora, julgo importante repetir que a base de cálculo é proposição instituída na conseqüência da regra-matriz tributária e que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento (Fbc) inserto no núcleo do fato jurídico tributário (Fjt), para que, combinando-se à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária. Já a alíquota comparece como fator que, congregado à base de cálculo, dá a compostura numérica da dívida, produzindo o valor que pode ser exigido pelo sujeito ativo, em cumprimento da obrigação que nascera pelo acontecimento do fato típico.

                            A base de cálculo de um imposto vem a ser o padrão mensurador de fato realizado pelo sujeito passivo, nada tendo que ver com uma efetiva ou potencial atuação do Poder Público. Inversamente, convém sublinhar, o fundamento existencial das taxas só pode encontrar-se em função da atividade estatal, imediatamente vinculada ao contribuinte. Nesses tributos vinculados, só há uma base de cálculo juridicamente possível: o valor da atuação do Estado, inserta no miolo da hipótese de incidência.

No tocante às taxas, dos preceitos constitucionais deriva a conclusão inevitável de que seu valor deve corresponder ao custo da atividade estatal exercida. A base de cálculo não se limita a fixar uma proporção numérica, singelamente concebida para outorgar grandeza econômica ao acontecimento factual.Não pode ser tomada como uma medida qualquer, alheia ao núcleo da ocorrência. Muito pelo contrário, impende que seja colhida entre os aspectos inerentes ao sucesso tributado, justamente para reunir condições próprias de medição, surpreendendo-lhe as dimensões da forma mais apropriada possível. Tem de recair, por isso mesmo, sobre u
m predicado efetivo do evento cuja intensidade se pretenda conhecer. Tratando-se de imposto, se o “fato gerador” for a propriedade (ser proprietário), a base imponível há de ser algum valor ínsito a esse suporte fáctico, como o valor da propriedade. Se o fato tributário for auferir renda, a base de cálculo há de ser uma perspectiva dimensível desse acontecimento, como, por exemplo, “o valor da renda líquida auferida” (pessoas físicas).Na mesma seqüência de raciocínio, se o fato tributável for a prestação de serviço público específico e divisível, sua base de cálculo deve guardar estreita consonância com essa alteração da vida social. E a entidade que estou focalizando, pela maneira como está sendo formulada sua exigência, preenche perfeitamente tal requisito, respeitando o primado da retributividade.

                            A taxa disciplinada pela Lei nº 11.331/2002, do Estado de São Paulo, tem sua base de cálculo composta pelos custos da atuação estatal, nos quais se inclui a justa remuneração do prestador do serviço, titular da serventia. Como demonstraremos com maiores minúcias, o valor tributário do imóvel estabelecido pela Prefeitura Municipal para fins de cobrança do IPTU e o valor tomado como base para recolhimento do ITBI não se identificam com a base de cálculo da taxa em exame: trata-se, tão-somente, de critérios de apuração, na qualidade de referências indiretas, que se voltam ao dimensionamento da atividade estatal, consistente na prática dos atos de serviços notariais e de registros públicos.

                            É posição pacífica entre nossos melhores doutrinadores que a base de cálculo das taxas deverá levar em conta o custo da atividade estatal desenvolvida, exatamente por remunerar o serviço público prestado ou posto à disposição do sujeito passivo, ou o exercício de poder de polícia. Há de existir razoabilidade entre a exigência da taxa e o custo da prestação do serviço (relacionamento entre a hipótese de incidência e a base de cálculo). Em outras palavras, a base de cálculo há de ter uma correlação lógica e direta com a hipótese de incidência do tributo. Eis a base de cálculo na sua função comparativa, confirmando, afirmando ou infirmando o verdadeiro critério material da hipótese tributária. Confirmando, sempre que houver total sintonia entre o padrão da medida e o núcleo do fato dimensionado; afirmando, na eventualidade de ser obscura a formulação legal; e infirmando, quando houver manifesta incompatibilidade entre a grandeza eleita e o acontecimento que o legislador declara como a medula da previsão fáctica.

                            Acontece que nas taxas não é tão simples mensurar o custo da atuação estatal desenvolvida em relação a cada administrado. Por esse motivo, o legislador, muitas vezes, elege uma ou mais unidades de medida (volume, peso, quantidade de atos etc.) para quantificar a obrigação tributária. Esses elementos não são escolhidos aleatoriamente, mas em razão do cunho monetário neles implicitamente agregado.Quando o legislador escolhe uma unidade de medida como base de cálculo, encontramos, por trás desse dado, o custo ou o preço por unidade de medida a ser entregue pelo Estado. Na lição de Aires Barreto[9], a atribuição dessa modalidade de base de cálculo equivaleria à seguinte construção legislativa:“atribua-se ao sujeito ativo tantos reais calculados em razão de um custo (preço ou valor) por unidade de medida”.

A atividade do Estado precisa ser valorada quantitativamente, pouco importando se o critério de referência para chegar a esse valor decorreu de aferição em função do volume, do peso ou de outra medida, mesmo que, à primeira vista, aparente ser fato desvinculado da atuação estatal. Conquanto tenham relação com bens ou atividades praticadas pelo particular, estão habilitados a auxiliar na quantificação da taxa quando não são, eles próprios, objeto da incidência tributária,sendo tomados como meros suportes para alcançar-se o efetivo custo da atuação estatal e possibilitar sua recomposição pelo contribuinte.

Dada a complexidade da elaboração de critério que corresponda ao custo da atividade estatal, a base de cálculo pode ser composta por mais de um elemento. Por exemplo, ao invés de basear-se a tributação apenas na unidade de medida, esse dado é susceptível de ser conjugado a outro, tal como a freqüência da atuação estatal (periodicidade com que são expedidas determinadas unidades de medida). A composição da base de


cálculo por mais de um aspecto, além de permitida constitucionalmente, é recomendável, pois permite maior aproximação dos critérios inerentes à atividade estatal exercida. Sobre o assunto, manifestou-se Hector Villegas:“Resulta portanto indiscutível que a base imponível das taxas deve estar relacionada com sua hipótese de incidência (a atividade vinculante), (…). Em conseqüência, tais critérios de graduação levarão em conta uma série de aspectos relativos à atividade que o Estado desenvolve e ao serviço que resulta prestado pelo exercício dessa atividade”[10].

Nesse sentido, andou bem o legislador estadual de São Paulo que, ao compor a base de cálculo da taxa de serviços notariais e de registro, relacionou os seguintes critérios: (i) tipo de ato notarial e de registro e (ii) o preço ou valor econômico da transação ou do negócio jurídico declarado pelas partes; valor tributário do imóvel estabelecido no último lançamento efetuado pela Prefeitura Municipal, para efeito de cobrança de IPTU, ou o valor da avaliação do imóvel rural aceito pelo órgão federal competente; e a base de cálculo utilizada para recolhimento do ITBI (art. 7º, I a III, da Lei nº 11.331/2002):

“Art. 7º. O valor da base de cálculo a ser considerado para fins de enquadramento nas tabelas de que trata o artigo 4º, relativamente aos atos classificados na
alínea ‘b’ do inciso III do artigo 5º, ambos desta lei, será determinado pelos parâmetros a seguir, prevalecendo o que for maior:

I – preço ou valor econômico da transação ou do negócio jurídico declarado pelas partes;

II – valor tributário do imóvel estabelecido no último lançamento efetuado pela Prefeitura Municipal, para efeito de cobrança de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, ou o valor da avaliação do imóvel rural aceito pelo órgão federal competente, considerando o valor da terra nua, as acessões e as benfeitorias;

III – base de cálculo utilizada para o recolhimento do imposto de transmissão ‘inter vivos’ de bens imóveis.

Parágrafo único. Nos casos em que, por força de lei, devam ser utilizados valores decorrentes de avaliação judicial ou fiscal, estes serão os valores considerados para os fins do disposto na alínea ‘b’ do inciso III do artigo 5º, desta lei.”                        

                            Com isso, estabeleceu correlação lógica entre o montante da taxa e o custo das atividades desenvolvidas para a expedição dos atos notariais e registrais, já que, quanto maior for o valor do bem ou negócio jurídico objeto de registro, maior é a responsabilidade do prestador. E esse risco deve ser considerado para fins de determinação do custo da atuação estatal, visto que o direito positivo brasileiro prescreve sua adequada remuneração.

Ao contrário do que um exame superficial poderia sugerir, a base de cálculo da taxa submetida à minha apreciação não é própria de imposto. Nas taxas, em que a materialidade da hipótese de incidência consiste na descrição de atividade estatal dirigida ao contribuinte, sua base de cálculo será sempre o custo daquela atuação. Como, porém, sua aferição exige cálculos complexos, podem ser tomados diversos aspectos do ato do Estado, que servirão como parâmetros para determinar seu valor.

                            Efetuados esses esclarecimentos, nota-se que o valor tributário do imóvel estabelecido pela Prefeitura Municipal para fins de cobrança do IPTU e o valor empregado para cálculo e recolhimento do ITBI não são, eles próprios, bases de cálculo da taxa. São meros critérios que, conjugados a outros (os tipos de atos notariais e registrais, por exemplo), permitem aferir o custo da atuação estatal. 

                            Caso muito semelhante é o da Taxa de Fiscalização e Controle de Serviços Públicos Delegados, instituída pela Lei nº 11.073/97, em favor da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo egrégio Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADIN nº1948/RS (Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 04/09/2002, DJ de 07/02/2003, p. 20):

“(1) Ação Direta de Inconstitucionalidade. (2) Art. 1º, II, da Lei nº 11.073, de 30.12.1997, que acrescentou os §§ 7º e 8º ao art. 6º da Lei nº 8.109, de 1985, do Estado do Rio Grande do Sul; Art. 1º, VI, da Lei nº 11.073, de 1997, que inseriu o inciso IX na Tabela de Incidência da Lei nº 8.109, de 1985; Decreto estadual nº 39.228, de 29.12.1998, que regulamentou a incidência da taxa impugnada. (3) Alegada violação aos arts. 145, II e 145, § 2º, da Constituição.(4) Taxa de Fiscalização e Controle de Serviços Públicos Delegados, instituída a favor da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul AGERGS, autarquia estadual. (5) O faturamento, no caso, é apenas critério para a incidência da taxa, não havendo incidência sobre o faturamento.Precedente (RE 177.835, Rel. Min. Carlos Velloso). (6) Improcedência da ação direta quanto aos dispositivos legais e não conhecimento quanto ao Decreto nº 39.228, de 1.988″. (grifei)

                            O julgado transcrito deixa claro que,conquanto haja referência a fato do particular, próprio de imposto, este não é o objeto da tributação, mas simples critério para a incidência da taxa.

                            Semelhante foi a orientação jurisprudencial adotada por essa Colenda Corte, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 177.835-1, em que se examinava a constitucionalidade da taxa de fiscalização dos mercados de títulos e valores mobiliários:“A variação da taxa de fiscalização, em função do patrimônio líquido da empresa, não significa seja dito patrimônio sua base de cálculo” (Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 25/05/2001).

                           Na esteira do posicionamento adotado pelo STF, a Lei nº 11.331/2002, do Estado de São Paulo, toma os valores estabelecidos para fins de cobrança de IPTU e de ITBI como meros parâmetros para aferição da intensidade da atuação estatal, empregando-os de forma integrada com outros aspectos que auxiliam no dimensionamento do serviço público. Não há que cogitar, por conseguinte, de violação ao art. 145, § 2º, do Texto Constitucional.

7.1. Inexistência de identidade com as bases de cálculo do IPTU e do ITBI

                            Nos termos do art. 156, I, da Constituição da República, compete aos Municípios instituir imposto sobre“propriedade territorial e rural urbana”. O Código Tributário Nacional, no art. 32, elege como “fato gerador”“a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel”, devendo o domínio útil e a posse ser compreendidos como decorrências do exercício do direito de propriedade.

                            Posto isso, e preenchendo o arranjo sintático da regra-matriz de incidência tributária com a linguagem do direito positivo, saturando as variáveis lógicas com o conteúdo semântico constitucionalmente previsto, verificamos que a hipótese de incidênciado IPTU consiste em “ser proprietário, ter o domínio útil ou ter a posse de bem imóvel, na zona urbana do território municipal, em determinado instante (normalmente, o dia 1º de janeiro de cada ano)”. A conseqüência normativa, por sua vez, envolve relação jurídica em que o Município figura como sujeito ativo e o proprietário ou detentor do domínio útil ou posse do imóvel urbano é o sujeito passivo, tendo por objeto o pagamento de imposto,calculado mediante a aplicação da alíquota (percentual previsto em lei) sobre a base de cálculo, representada pelo valor venal do imóvel.

                            Quanto ao imposto sobre a transmissão de bens imóveisinter vivos– ITBI , a hipótese de incidência é conduta de realizar a transmissãointer vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição, no âmbito territorial do Município em que se localizam os bens imóveis transmitidos, (art. 156, § 2º, II, da CF/88), cabendo a essa pessoa jurídica de direito público interno a aptidão para exigir o tributo, figurando no pólo ativo da relação jurídica tributária (critério pessoal – sujeito ativo).

                           No que diz respeito aos critérios temporal, pessoal passivo e quantitativo, o constituinte deixou sua escolha ao legislador ordinário, desde que, evidentemente, este não o faça com violação a qualquer dos preceitos constitucionais: o instante em que se considera ocorrido o fato jurídico tributário não pode ser anterior ao evento, devendo corresponder ao momento em que se efetiva a transmissão imobiliária; o sujeito passivo precisa estar intimamente relacionado à prática do fato jurídico, não podendo ser pessoa diversa do transmitente ou adquirente.A base de cálculo deve medir o fato típico, ou seja, a transmissão do bem imóvel, consistindo no valor venal do imóvel transmitido, sujeitando-se a uma alíquota percentual, fixada em lei.

                           Nota-se, desde logo, que as bases de cálculo empregadas para a exigência do IPTU e do ITBI não correspondem à base imponível das taxas de serviços notariais e registrais.

                            A forma de cálculo da taxa pela prestação de serviços notariais e registrais segue, à risca, o disposto na Lei Federal nº 10.169, de 29 de dezembro de 2000, que regula o § 2º do art. 236 da Constituição da República, mediante o estabelecimento de normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos serviços notariais e de registro, prescrevendo:

“Art. 2º. Para a fixação do valor dos emolumentos, a Lei dos Estados e do Distrito Federal levará em conta a natureza pública e o caráter social dos serviços notariais e de registro, atendidas ainda as seguintes regras:

I – os valores dos emolumentos constarão de tabelas e serão expressos em moeda corrente do País;

II – os atos comuns aos vários tipos de serviços notariais e de registro serão remunerados por emolumentos específicos, fixados para cada espécie de ato;

III – os atos específicos de cada serviço serão classificados em:

a) atos relativos a situações jurídicas, sem conteúdo financeiro, cujos emolumentos atenderão às peculiaridades socioeconômicas de cada região;

b) atos relativos a situações jurídicas, com conteúdo financeiro,cujos emolumentos serão fixados mediante observância de faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nas quais enquadrar-se-á o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro.

Parágrafo único. Nos casos em que, por força de lei, devem ser utilizados valores decorrentes de avaliação judicial ou fiscal, estes serão os valores considerados para os fins do disposto na alínea ‘b’ do inciso III deste artigo.” (grifei)

 

Art. 3º. É vedado:

I – (vetado)

II – fixar emolumentos em percentual incidente sobre o valor do negócio jurídico objeto dos serviços notariais e de registro;

III – cobrar das partes interessadas quaisquer outras quantias não expressamente previstas nas tabelas de emolumentos;

IV – cobrar emolumentos em decorrência da prática de ato de retificação ou que teve de ser refeito ou renovado em razão de erro imputável aos respectivos serviços notariais e de registro;

V – (vetado).” (grifei)

                            Ora, a própria Lei Federal nº 10.169/2000, ao regular o assunto, proíbe a fixação dos emolumentos em percentual incidente sobre o valor do negócio jurídico objeto dos serviços notariais e de registro (art. 3º, II), determinando, porém, que os emolumentos sejam“fixados mediante observância de faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nas quais enquadrar-se-á o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro” (art. 2º, III, “b”).

                            Foi exatamente esse o procedimento adotado na Lei Estadual de São Paulo nº 11.331/2002:esta tomou o valor tributário do imóvel para fins de IPTU e a base de cálculo do ITBI tão-somente como critérios para fixar as faixas de exigência dos emolumentos, nas quais constam os valores mínimos e máximos do bem em relação ao qual se pratica o serviço notarial e de registro. Tudo isso, repito, está em harmonia com o prescrito pela Lei Federal nº 10.169/2000, representando a única forma de calcular, com segurança e precisão, a taxa pela prestação de serviços notariais e de registro.

8. A adequada e suficiente remuneração dos serviços notariais e de registro

                           A Constituição da República dispõe:

“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos ofícios de re
gistro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º. Lei federal estabelecerá normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.” 

                            Para regulamentar o assunto, estabelecendo normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro, foi editada a Lei nº 10.169/2000, nos seguintes termos:

“Art. 1º. Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei.

Parágrafo único.O valor fixado para os emolumentos deverá corresponder ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados.” (grifei)

                            Isso significa que a taxa, paga pelo usuário dos serviços notariais e de registro, deve ser suficiente para cobrir todos os custos da atuação estatal, inclusive a justa remuneração do titular da serventia. Essa remuneração, por sua vez, será adequada se proporcional ao risco que a atividade envolve, especialmente em face da responsabilidade atribuída aos notários e registradores.

                            Nesse ponto, convém recordar o disposto na Lei nº 8.935/94, que regulamenta o art. 236 da Constituição da República, atribuindo responsabilidade civil e criminal aos notários e oficiais de registro:

“Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direitos de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.

Art. 23. A responsabilidade civil independe da criminal.

Art. 24. A responsabilidade criminal será individualizada, aplicando-se, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a Administração Pública.

Parágrafo único. A individualização prevista no ‘caput’ não exime os notários e os oficiais de registro de sua responsabilidade civil.”

                            A responsabilidade civil consiste na disciplina jurídica que prescreve a um sujeito de direito o dever de compensar pessoa diversa, pelo dano que lhe causou, em virtude de ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência e até mesmo em virtude da prática de atos que, não obstante lícitos, desencadeiam a incidência de normas jurídicas atributivas de tal ônus.

                            A ação ou omissão danosa, ensejadora da relação obrigacional que tem por objeto a prestação de ressarcimento, pode originar-se (i) da inexecução de contrato; ou (ii) da lesão a direito subjetivo, independentemente da preexistência de qualquer relação jurídica entre lesante e lesado[11]. Seu acontecimento é susceptível de ser verificado tanto na presença como na ausência de vínculo jurídico entre a pessoa causadora do fato lesivo e quem sofra a redução patrimonial.

                            Esse acontecimento, fato gerador da responsabilidade civil, poderá ser contratual ou extracontratual, lícita ou ilícita. Pouco importa que o efeito danoso decorra de relação jurídicaex contracto, de vínculoex lege ou de ato ilícito extracontratual: em quaisquer dessas hipóteses, impõe-se a reparação do prejuízo, sendo seu objetivo último o restabelecimento do equilíbrio violado pelo dano.A idéia de reparação, portanto, é mais ampla do que a de ato ilícito, havendo o dever de ressarcimento de prejuízos também em hipóteses onde não se verifica ilicitude na ação do agente. Nesse sentido, leciona Maria Helena Diniz[12]:“Deveras, hipóteses há, como mais adiante veremos, em que o dano é reparável sem o fundamento da culpa, baseando-se no risco objetivamente considerado. Contudo, não se poderia, ainda, olvidar a existência de casos de responsabilidade por ato lícito, em que o dano nasce de um fato, permitido legalmente, praticado pelo responsável, obrigando-o a ressarcir o lesado do prejuízo que lhe causou (CC, art. 927, parágrafo único)”.

                            Podemos dizer que a natureza da responsabilidade civil, na forma como está disciplinada em nossa legislação, é compensatória, por abranger indenização ou reparação de prejuízo causado, seja por ato ilícito, de


origem contratual ou extracontratual, bem como por ato lícito. O dever de reparação do dano encontra-se, em muitos casos, desvinculado da idéia de “culpa”. Assim, situações há em que o agente deverá ressarcir o prejuízo causado, mesmo que isento de culpa, porque sua responsabilidade é imposta por lei, independentemente dos aspectos subjetivos inerentes à ação lesiva.

                            É o que acontece com os notários e registradores. Nos termos da Lei nº 8.935/94, respondem por seus atos independentemente de culpa. Por isso, a remuneração deve ser apropriada para compensar o risco de suas atividades.

                            Além disso, o Código Tributário Nacional, ao disciplinar a figura da responsabilidade tributária
, imputa-a aos serventuários de ofício. Empreendamos, assim, breve revista no art. 134, que alude à responsabilidade de terceiros:

“Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

(…)

VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelo tributos devidos sobre os atos praticados por ele, ou perante eles, em razão do seu ofício; (…)”

                            Ora, considerando a responsabilidade civil e criminal a que se refere a Lei nº 8.935/94, bem como a responsabilidade tributária atribuída pelo Código Tributário Nacional, e tendo em vista que esta última tem por base o montante dos tributos devidos sobre os atos praticados em razão do ofício, é razoável que os emolumentos tenham como critério indireto de referência os valores empregados como base de cálculo de tais tributos. Quanto maior for a base de cálculo tributária, maior o risco envolvido, no que diz respeito à responsabilidade dos notários e registradores. Essa, inclusive, é a razão pela qual a Lei nº 10.169/2000 prescreve a fixação de emolumentos com suporte em faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nelas se enquadrando o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro.

                            Conclui-se, por conseguinte, que a taxa de serviço notarial e de registro do Estado de São Paulo, disciplinada pela Lei nº 11.331/2002, não apresenta base de cálculo própria de imposto. Referida Leinão adota base de cálculo idêntica à do IPTU, nem à do ITBI. Enquanto a base de cálculo desses impostos consiste no valor venal do imóvel, na taxa de serviços notariais e de registro há a divisão do custo do serviço em função do valor constante nos documentos fiscais concernentes ao IPTU e ao ITBI. Esclarecendo: a taxa de serviços notariais e de registro tem como hipótese de incidência a prestação do serviço de notas e registro, e seu valor é determinado em função do custo estimado do serviço, dividido entre seus usuários, conforme o custo efetivo da prestação e considerando o risco e responsabilidade envolvidos no exercício dessa atividade. As bases de cálculo do IPTU e do ITBI são utilizadas apenas como fator de repartição do ônus pela prestação do serviço entre os contribuintes.

9. Certeza do direito e segurança jurídica – a necessária objetividade na fixação das taxas

                             Entre as grandes diretrizes que formam o estrato axiológico das normas tributárias no Brasil, algumas se apresentam como substância de enunciados expressos, enquanto outras se encontram na implicitude dos textos do direito positivo. Todas, porém, com a mesma força vinculante. A circunstância de figurarem no texto, ou no contexto, não modifica o teor de prescritividade da estimativa, que funciona como vetor valorativo que penetra as demais regras do conjunto, influindo decisivamente na sua conformação semântica. Por isso mesmo são colocadas no altiplano da Constituição. De lá, precisamente onde começam todos os processos de positivação das normas jurídicas, descem aqueles primados para os vários escalões da ordem legislada, até atingir as regras terminais do sistema, timbrando os preceitos que ferem, diretamente, as condutas em interferência intersubjetiva, com a força axiológica dos valores constitucionalmente consagrados.

                            O princípio da certeza do direito experimenta uma dualidade de sentido que não pode ser ignorada. Exprime a circunstância de que o comando jurídico, atuando numa das três modalidades do deôntico (proibido, permitido e obrigatório), requer, com assomos de necessidade absoluta, que a conduta regrada esteja rigorosamente especificada (alguém, estando obrigado, tendo a permissão ou estando proibido, deve saber, inequivocamente, qual a conduta que lhe foi imputada, comportamento esse que não se compadece com a dúvida, com a hesitação, com a incerteza). Ao mesmo tempo, “certeza do direito” significa previsibilidade, isto é, o administrado tem o direito de saber, com antecedência, qual o conteúdo e alcance dos preceitos que lhe serão imputados, para que possa programar-se, tomando iniciativas e dirigindo suas atividades consoante a orientação que lhe advenha da legislação vigente.

                            Mas, ao lado da “certeza”, em qualquer das duas dimensões de significado, outros valores constitucionais, explícitos e inexplícitos, operam para concretizar o sobrevalor da “segurança jurídica”. Diremos que num dado sistema existe este sobreprincípio, pairando sobre a relação Fisco-contribuinte, sempre que nos depararmos com um feixe de estimativas, integradas para garantir o desempenho da atividade jurídico-tributária do Estado-Administração. Convencionou-se que tais valores são, basicamente, a igualdade, a legalidade estrita, a universalidade da jurisdição, a vedação do confisco, a irretroatividade e a anterioridade, ao lado do princípio que consagra o direito à ampla defesa, com o devido processo legal.

                            Qualquer violação a essas diretrizes supremas compromete, irremediavelmente, a realização do princípio implícito da certeza, como previsibilidade, e, mais acima ainda, o grande postulado, também inexpresso, da segurança jurídica.

                            Na plataforma das imposições tributárias, e tendo em conta a figura do administrado, o plexo desses princípios forma aquilo que se convencionou chamar de “estatuto do contribuinte” que, sustentando posicionamento anterior, entendo definir-se como a somatória, harmônica e organizada, dos mandamentos constitucionais sobre matéria tributária que, positiva ou negativamente, estipulam direitos, obrigações e deveres do sujeito passivo, diante das pretensões do Estado (aqui utilizado na sua acepção mais ampla e abrangente –entidade tributante). E quaisquer desses direitos, obrigações e deveres, porventura encontrados em outros níveis da escala jurídico-normativa, terão de achar respaldo de validade naqueles imperativos supremos, sob pena de flagrante injuridicidade.

                            Note-se que a posição sobranceira desse concerto de valor
es não se compadece com procedimentos que de qualquer modo agravem os princípios explícitos e implícitos, entre eles, naturalmente, o primado da legalidade, conquista secular dos povos civilizados.

                            É preciso dizer que o aparato do direito positivo se desmonta inteiramente, como instrumento de realização da justiça, calcada nos fundamentos da segurança jurídica e da previsibilidade das condutas, quando se transige com a legalidade. Desarma-se o sistema e desativam-se as expectativas, relegando-se a disciplina social ao plano da dúvida. Ninguém ficará seguro com relação aos comportamentos juridicizados pelo direito, que tanto poderão inserir-se na esfera do lícito, quanto do ilícito, oscilando de tal maneira que os planejamentos não se sustentam, desmanchando-se as tentativas de programação de condutas e realização dos valores sociais.

                           Efetuados esses esclarecimentos, não serão necessárias muitas linhas para evidenciar que a fixação de valores de referência, para fins de determinação das taxas de serviços notariais e de registro, é imprescindível para conferir segurança jurídica e certeza do direito. Tanto é assim que a própria legislação federal (Lei nº 10.169/2000), ao regulamentar o § 2º do art. 236 da Constituição, prescreve que os valores dos emolumentos constarão de tabelas e serão expressos em moeda corrente do País(art. 2º, I), sendo fixados mediante a observância de faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nas quais se enquadrará o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro (art. 2º, III, “b”). Apenas em situações excepcionais, quando houver expressa previsão legal, é que deverão ser utilizados valores decorrentes de avaliação judicial ou fiscal (art. 2º, parágrafo único).

                            A Lei nº 10.169/2000 possui caráter nacional, servindo como instrumento de calibração do sistema do direito positivo, conferindo harmonia e segurança jurídica. As prescrições concernentes à adoção de critério seguro e objetivo para cálculo das taxas de serviços notariais e de registro, portanto, devem ser seguidas à risca pelos Estados, sob pena de instalar-se verdadeiro caos.

                            Inadmissível, por exemplo, qualquer pretensão de desvincular a tabela de emolumentos dos valores empregados pelo Poder Público para cálculo do IPTU e do ITBI. Tal atitude daria ensejo a constantes e incontroláveis simulações, mediante a indicação de valores falsos aos negócios jurídicos praticados, ocasionando não apenas sonegação das taxas em exame, mas, também, facilitando atividades escusas e a tão repudiada “lavagem de dinheiro”.

                            Agiu bem, portanto, o Estado de São Paulo, ao eleger, na Lei nº 11.331/2002, critério objetivo e determinado previamente pelo Poder Público, sujeito não interessado e não envolvido no negócio jurídico que se pretende registrar.

III. Das Respostas aos Quesitos

                            Firmado nas ponderações até aqui desenvolvidas, passo a responder às perguntas formuladas na Consulta. Para tanto, permito-me reescrever os quesitos elaborados pelo Consulente, enfrentando-os, objetivamente, um a um.

                            1. Qual a “natureza jurídica” da remuneração dos serviços notariais e de registro?

                           Resposta:Primeiramente, cumpre registrar que a Lei n° 11.331/2002, do Estado de São Paulo, instituiuum encargo financeiro de natureza jurídica tributária. Tratando-se de prestação pecuniária, compulsória e decorrente de fato lícito, é, sem dúvida,tributo, sujeitando-se, em tudo, às regras do sistema constitucional tributário.

                            O binômio “hipótese de incidência e base de cálculo”, por sua vez, aponta para a espécie tributária denominadataxa, como já pacificado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal. Seu critério material é representado pela atividade estatal consistente na prestação de serviços notariais e de registro público. Essa materialidade é confirmada pela base de cálculo, composta pela repartição, entre os usuários, do custo da atividade (neles incluídas as despesas efetivas e a justa remuneração do prestador).

                                              O exame analítico da regra-matriz de incidência, construída a partir do texto da Lei n° 11.331/2002, do Estado de São Paulo, revela a instituição de verdadeirataxa pela prestação de serviço público específico e divisível, em perfeita consonância com a autorização constitucional contida no art. 145, II, da Constituição da República. Isso porque, vale lembrar, os serviços notariais e de registro são necessários para garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, sendo exercidos na forma prevista pelo art. 236 da Carta Magna.

                            2. Caso se entenda que a referida remuneração configura “taxa”, a base de cálculo eleita pela Lei nº 11.331/2002, do Estado de São Paulo, é apropriada para essa espécie de tributo? Ou tem-se base de cálculo própria de impostos?

                           Resposta:A taxa disciplinada pela Lei nº 11.331/2002 tem sua base de cálculo composta pelos custos da atuação estatal, nos quais se incluem as despesas efetivadas para pr
estação do serviço, bem como a justa remuneração do prestador do serviço, titular da serventia.

O valor tributário do imóvel estabelecido pela Prefeitura Municipal para fins de cobrança do IPTU e o valor tomado como base para recolhimento do ITBI não se identificam com a base de cálculo da taxa em exame: trata-se, tão-somente, de critérios de apuração, na qualidade de referências indiretas, que se voltam ao dimensionamento da atividade estatal, consistente na prática dos atos de serviços notariais e de registros públicos.

Sabemos que a atividade do Estado precisa ser valorada quantitativamente, pouco importando se o critério de referência para chegar a esse valor decorreu de aferição em função do volume, do peso ou de outra medida, como é o caso das bases do IPTU e do ITBI, mesmo que, à primeira vista, aparente ser fato desvinculado da atuação estatal. Conquanto tenham relação com bens ou atividades praticadas pelo particular, estão habilitados a auxiliar na quantificação da taxa, visto que não são, eles próprios, objeto da incidência tributária,sendo tomados como meros suportes para alcançar-se o efetivo custo da atuação estatal e possibilitar sua recomposição pelo contribuinte.

É apropriado, portanto, o teor da Lei nº 11.331/2002, visto que o legislador estadual de São Paulo, ao compor a base de cálculo da taxa de serviços notariais e de registro, relacionou os seguintes critérios: (i) tipo de ato notarial e de registro e (ii) o preço ou valor econômico da transação ou do negócio jurídico declarado pelas partes; valor tributário do imóvel estabelecido no último lançamento efetuado pela Prefeitura Municipal, para efeito de cobrança de IPTU, ou o valor da avaliação do imóvel rural aceito pelo órgão federal competente; e a base de cálculo utilizada para recolhimento do ITBI (art. 7º, I a III, da Lei nº 11.331/2002). Com isso, estabeleceu correlação lógica entre o montante da taxa e o custo das atividades desenvolvidas para a expedição dos atos notariais e registrais, já que, quanto maior for o valor do bem ou negócio jurídico objeto de registro, maior é a responsabilidade do prestador. E esse risco deve ser considerado para fins de determinação do custo da atuação estatal, visto que o direito positivo brasileiro prescreve sua adequada remuneração.

Efetuados esses esclarecimentos, nota-se que o valor tributário do imóvel estabelecido pela Prefeitura Municipal para fins de cobrança do IPTU e o valor empregado para cálculo e recolhimento do ITBI não são, eles próprios, base de cálculo da taxa em exame. São meros critérios que, conjugados a outros (os tipos de atos notariais e registrais, por exemplo), permitem aferir o custo da atuação estatal. Tem-se, por conseguinte, base de cálculo apropriada à instituição e exigência de taxa, não havendo como cogitar de base de cálculo própria de imposto.

                            3. Qual seria a forma de cálculo apropriada para a cobrança da contraprestação aos serviços notariais e de registro?

                           Resposta:Reitero minha convicção no sentido de que a Lei nº 11.331/2002, do Estado de São Paulo, está em harmonia com a Constituição da República, não violando o disposto em seu art. 145, § 2º. Isso porque, na esteira do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, referida Lei toma os valores estabelecidos para fins de cobrança de IPTU e de ITBI como meros parâmetros para aferição da intensidade da atuação estatal, empregando-os de forma integrada com outros aspectos que auxiliam no dimensionamento do serviço público.

Trata-se de critério objetivo, conferindo segurança jurídica e certeza do direito, nos exatos termos prescritos pela Lei Federal nº 10.169/2000. Agiu bem, portanto, o Estado de São Paulo, ao eleger, na Lei nº 11.331/2002, critério que tem por suporte valor determinado previamente pelo Poder Público, sujeito não interessado e não envolvido no negócio jurídico que se pretende registrar.

Deixo registrado, ainda, que não vislumbro outra forma de calcular a taxa pela prestação dos serviços notariais e de registro. Como os parâmetros para sua fixação devem ser seguros, não podem ficar sujeitos à vontade dos particulares, variando conforme os valores por eles atribuídos aos negócios jurídicos praticados. As prescrições concernentes à adoção de critério seguro e objetivo para cálculo das taxas de serviços notariais e de registro devem ser seguidas à risca pelos Estados, sob pena de instalar-se verdadeiro caos.

                           4. Supondo que a pretensão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, constante da ADIn nº 3.887, venha a prosperar, que conseqüências práticas isso poderá acarretar?

                           Resposta:Caso venha a prosperar a pretensãodo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, consistente em desvincular a tabela de emolumentos dos valores empregados pelo Poder Público para cálculo do IPTU e do ITBI – o que admito apenas para fins de argumentação e resposta a este quesito -, ter-se-á situação de potencial catástrofe jurídica, já que isso acarretará um vazio legislativo, com a ausência de dispositivo prescritor da base de cálculo da taxa de serviço notarial e de registro.

                            Se verificada essa hipótese, os cartórios de notas e registros ficarão impossibilitados de exigir a remuneração por seus atos, inviabilizando a própria prestação do serviço.

                            Con
vém anotar, ainda, que parte dos valores recebidos pelos serviços notariais e de registro são destinados ao Estado, à carteira de previdência das serventias não oficializadas da Justiça do Estado, ao custeio dos atos gratuitos de registro civil e ao fundo especial de despesa do Tribunal de Justiça, de modo que, vindo a ser inviabilizada a exigência da taxa em questão, todos esses destinatários serão afetados e terão suas atividades prejudicadas.

                            Além disso, a supressão dos critérios objetivamente fixados na Lei nº 11.331/2002 daria ensejo a constantes e incontroláveis simulações, mediante a indicação de valores falsos aos negócios jurídicos praticados, ocasionando não apenas sonegação das taxas em exame, mas, também, facilitando atividades escusas e a tão repudiada “lavagem de dinheiro”.

                            5. Que critérios devem ser levados em conta para a fixação dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro, tendo em vista que o parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.169/2000 prescreve a correspondência de tais emolumentos “ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados”?

                           Resposta:O valor da taxa devida pela prestação de serviços notariais e de registro deve ser suficiente para cobrir todos os custos da atuação estatal, inclusive a justa remuneração do titular da serventia. Essa remuneração, por sua vez, será adequada se proporcional ao risco que a atividade envolve, especialmente em face da responsabilidade atribuída aos notários e registradores.

                            Convém recordar que a Lei nº 8.935/94 atribui responsabilidade civil e criminal aos notários e oficiais de registro, enquanto o Código Tributário Nacional lhe atribui responsabilidade pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles ou perante eles, em razão do seu ofício.

                            Posto isso, considerando a responsabilidade civil e criminal a que se refere a Lei nº 8.935/94, bem como a responsabilidade tributária atribuída pelo Código Tributário Nacional, e tendo em vista que esta última tem por base o montante dos tributos devidos sobre os atos praticados em razão do ofício, é razoável que os emolumentos tenham como critério indireto de referência os valores empregados como base de cálculo de tais tributos. Quanto maior for a base de cálculo tributária, maior o risco envolvido, no que diz respeito à responsabilidade dos notários e registradores. Essa, inclusive, é a razão pela qual a Lei nº 10.169/2000 prescreve a fixação de emolumentos com suporte em faixas que estabeleçam valores mínimos e máximos, nelas se enquadrando o valor constante do documento apresentado aos serviços notariais e de registro.

                            Conclui-se, por mais esse motivo, que a taxa de serviço notarial e de registro do Estado de São Paulo, disciplinada pela Lei nº 11.331/2002, não apresenta base de cálculo própria de imposto. Referida Leinão adota base de cálculo idêntica à do IPTU, nem à do ITBI. Enquanto a base de cálculo desses impostos consiste no valor venal do imóvel, a taxa de serviços notariais e de registro é determinada em função do custo estimado do serviço, dividido entre seus usuários, sempre considerando (i) o custo efetivo da prestação e (ii) o risco e responsabilidade envolvidos no exercício dessa atividade. Só assim é possível falar em correspondência dos emolumentos ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados.

É meu parecer.

 

                   São Paulo, 05 de junho de 2007.

 

 

                            Paulo de Barros Carvalho
                                 OAB/SP nº 122.874

[1] Ricardo Guibourg, Alejandro Ghigliani e Ricardo Guarinoni,Introducción al conocimiento científico, Buenos Aires: EUDEBA, 1985.

[2]Teoria geral do direito tributário, São Paulo: Saraiva, 1963, p. 338.

[3]Hipótese de incidência tributária, 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 139-148.

[4]Curso de direito administrativo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 399.

[5] RE n° 89.876-RJ – RTJ n° 98/230.

[6] O uso já consagrou a equiparação dos termos “preço público” e “tarifa”. Entretanto, vale ressalvar que “tarifa”, na tradição do Direito Financeiro, denota a tabela de preços e não os preços em si.

[7]Taxa e preço público. Caderno de Pesquisa Tributária n° 10, São Paulo: Resenha Tributária, 1985, p. 174.

[8]Sistema de registro de imóveis, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 594.

[9]Base de cálculo, 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 65.

[10]Verdade e ficções em torno do tributo denominado taxa, RDP 17/337.

[11] Cf. Orlando Gomes,Obrigações, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 339.

[12]Curso de direito civil brasileiro, 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 7, p. 5.