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Parecer – Artigo 236, § 3,º da Constituição Federal, sobre Concurso Público

30-04-2016

Parecer – Artigo 236,§ 3,º da Constituição Federal, sobre Concurso Público

 

Por Marcelo Figueiredo

 

 

 

C O N S U L T A

 

 

 

 

Consulta-nos o SINDICATO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO – SINOREG/SP acerca da adequada interpretação que deve ser atribuída ao art. 236, § 3,º da Constituição Federal quando este se refere a“concurso de provimento ou de remoção” para o exercício da atividade notarial e de registro. Indaga ainda da constitucionalidade do disposto no art. 16 da Lei Federal n.º 8.935/94 (Lei dos notários e dos registradores), com a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 10.506/2002.

Informa o Consulente que leis de diversos Estados da Federação têm seguido estritamente o disposto no artigo 16 da Lei Federal nº 10.506/02, realizando concurso detítulos para a remoção de notários e registradores com o objetivo de preencher serventias que estejam vagas. O mesmo, todavia, não tem ocorrido no Estado de São Paulo. Segundo o informado, o Tribunal de Justiça desse Estado considerou inconstitucional a lei paulista que trata da matéria, e indiretamente o próprio artigo 16 da Lei Federal nº 8.935/94 (em face da nova redação que a ele foi dada pela Lei nº 10.506/02), na medida em que estes determinam a realização de mero concurso detítulos e não deprovas e títulos para esta remoção. Sustenta este órgão jurisdicional estadual que, nos termos da Constituição, o adequado seria a realização desta última forma de concurso, sendo assim inconstitucional a realização de mero concurso de“títulos” para esta particular forma de outorga de novas delegações a notários e registradores.

Também nos informa o Consulente que, no ano de 2006, propôs junto ao Supremo Tribunal Federal Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC nº 14), para que seja reconhecida e declarada pelo Supremo Tribunal Federal a plena adequação constitucional do texto do art. 16 da Lei nº 8.935/94, na sua vigente redação. Cópia integral desta ação nos foi entregue, cumprindo apenas observar que nela a Associação dos Titulares de Cartório do Estado de São Paulo – ATC requereu a sua intervenção como“amicus curiae”, juntando ainda aos autos, alentado e substancioso parecer do ilustre professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Prof. Dr. LUÍS ROBERTO BARROSO, sustentando a sua pretensão de que seja julgada improcedente este pedido de tutela jurisdicional.

É esta a Consulta que, em síntese, nos foi ofertada, e que agora, após esta rápida contextualização, reproduzimosin totum:

 

 

 

“Considerando-se as disposições constantes nos artigos 236 de nossa Lei Fundamental, e 16 da Lei n.º 8.935/94, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 10.506/02, abaixo transcritas:

 

Art. 236, CF/88: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º – Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º – Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

§ 3º – O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”.

Art. 16, da Lei 8935/94: “As vagas serão preenchidas alternadamente, duas terças partes por concurso público de provas e títulos e uma terça parte por meio de remoção, mediante concurso de títulos, não se permitindo que qualquer serventia notarial ou de registro fique vaga, sem abertura de concurso de provimento inicial ou de remoção, por mais de seis meses”.(Redação dada pela Lei nº 10.506, de 9.7.2002)

 

Pergunta-se:

 

 

 

1) Sob o ponto de vista de sua natureza jurídica, as atividades notariais e de registro são consideradas um serviço ou uma função pública, prestada por particulares, mediante ato de delegação do poder público?

 

 

2) Ainda sob o ponto de vista de sua natureza jurídica, o fato do “ingresso” em tais atividades se dar por meio de concurso público (a teor do que dispõe a parte inicial do art. 236, caput, da Constituição Federal), significa que os notários e registradores são considerados funcionários ou servidores públicos?

 

 

3) Ainda sob o mesmo enfoque, as atividades notariais e de registro têm natureza tipicamente administrativa?

 

 

4) A delegação, como ato sucessivo ao concurso de ingresso, e título jurídico que investe os exercentes de atividade notarial e de registro, atribuiu também aos mesmos a titularidade desses ofícios ou funções que lhe estão sendo delegadas pelo Poder Público?

 

 

5) O artigo 236, § 3.º da Constituição Federal determina que o “ingresso” na atividade notarial e de registro depende de concurso de provas e títulos. Em sua parte final, ao disciplinar que não será permitido “que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”, está o referido artigo constitucional determinando também que para o provimento das vagas por remoção deve ser obrigatoriamente realizado concurso público de provas e títu
los?

 

 

6) O artigo 16 da Lei n.º 8.935/94, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 10.506/02, ao regulamentar o referido artigo constitucional, disciplinando que duas terças partes das vagas deverão ser preenchidas por meio de concurso de ingresso, de provas e títulos, e uma terça parte por remoção, mediante concurso de títulos, padece de alguma inconstitucionalidade?

 

 

7)Poderá um Tribunal de Justiça Estadual deixar de cumprir o art. 16 da Lei nº 8.935/94, alegando a sua inconstitucionalidade?

 

8) O titular de uma delegação pode ingressar, por concurso de remoção, em outra serventia notarial ou de registro de natureza distinta daquela em que foi originalmente provido?

 

9) Na hipótese de ser reconhecida a inconstitucionalidade do art. 16 da Lei nº 8.935/94, seria possível a um Tribunal de Justiça Estadual disciplinar, por ato administrativo, a realização de concursos de remoção para notários e registradores, fixando a modalidade de provas e títulos?

 

 

 

 

 

 

 

P A R E C E R

 

 

A análise que nos é solicitada exige, em primeiro lugar, algumas considerações aprofundadas acerca da natureza jurídica dos serviços notariais e de registro. Esta consideração prévia nos permitirá identificar com clareza o regime jurídico que disciplina esta atividade, e naturalmente, os princípios que o informam. Dentre estes, por força do objeto da presente Consulta, se terá como necessário uma específica abordagem dosprincípios da legalidade e doconcurso público.

Superadas estas etapas, nos dedicaremos à análise direta do disposto nos artigos 236 da Constituição Federal e 16 da Lei n.º 8.935/94, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 10.506/02, fazendo as considerações que temos por indispensáveis para o enfrentamento de todas as questões que ora nos são ofertadas a exame.

Ao final, como síntese do pensamento aqui desenvolvido e sustentado, como de praxe, apresentaremos as respostas conclusivas aos quesitos ofertados pelo Consulente.

 

 

 

I.A NATUREZA JURÍDICA DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO

 

 

Forte controvérsia doutrinária tem marcado a discussão acerca da natureza jurídica da atividade notarial e registral. Atividade autônoma realizada por profissionais que gozam de independência no exercício de suas atribuições ou subordinada ao poder hierárquico do Estado pelo fato de serem verdadeiras “serventias” da Justiça? Atividade pública ou privada? Se pública, caracterizadora de verdadeiro exercício de função pública descentralizada ou centralizada por ser realizada por autênticos servidores públicos? Atividade passível de ser conceituada como um verdadeiro serviço público descentralizado ou como uma mera função administrativa que no conceito de serviço público não se enquadra? A respeito da matéria, têm oscilado os estudiosos e os cientistas do Direito através dos tempos.

A opção da vigente Constituição Federal, de 1988, todavia, em acentuada medida, acabou por reduzir o leque de discussões doutrinárias que poderia haver, em tese, sobre a questão, considerado o quadro histórico que marcou a sua evolução ao longo dos anos. Deveras, foi expresso o legislador constitucional ao estabelecer,in verbis,no art. 236 da nossa Lei Maior, que:

 

“Art. 236. Osserviços notariais sãoexercidos em caráter privado, pordelegação do Poder Público.

 

§1ºLeiregulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

 

§2ºLei federal estabelecerá normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registros.

 

§3ºO ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.” (grifos nossos)

 

O texto constitucional eliminaa priori algumas formulações que poderiam ser sustentadas.

A primeira delas, induvidosamente, seria a tese de que em nosso país os serviços notariais e de registro poderiam ser tidos comoatividades econômicas de titularidade privada, estranhas ao Estado ou apenas reguladas por este.

Como sabido, nas sociedades capitalistas, ao mundo privado compete livremente a realização daatividade econômica, respeitado o dispostoem lei. Não haveria de ser diferente em nosso país. Entre nós“é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (art. 170, parágrafo único, da C.F.). Estas atividades, assim, em regra, competem na sua titularidade e no seu pleno exercício às pessoas privadas, sendo sempre submetidas à “livre iniciativa” e à “livre concorrência”. Aliás, aliberdade de iniciativa e alivre concorrência são tidas como princípios orientadores de toda a ordem econômica, na conformidade do disposto no art. 170,caput,da nossa Lei Maior[1]. Ao Estado só excepcionalmente será permitida a exploração de atividade econômica, e apenas nos casos expressamente previstos na Constituição[2].

Logo, em nosso país, aatividade econômica é de livre exercício a todas as pessoas privadas, podendo ser, em certos casos excepcionais legalmente estabelecidos, submetida a uma autorização estatal. Ao mundo privado compete comlivre iniciativa realizá-la, admitida alivre concorrência entre todos os que pretendam igualmente atuar no mesmo campo[3]. Nada mais ou menos do que isso. Ao Estado, portanto, jamais caberádelegar o exercício de uma atividade econômica ao mundo privado. Sódelega a outrem uma atividade aquele que a possui comotitular.

Salta aos olhos, nessa medida, que na conformidade do precitado art. 236 da nossa Carta Constitucional, as atividades notariais e registrais jamais e em tempo algum, ao menos entre nós, poderão ser vistas como uma atividade econômica, de natureza privada, passível de ser exercida pelos cidadãos, sob o manto da livre iniciativa e da livre concorrência. Muito pelo contrário. De acordo com este mandamento constitucional o Poder Públicodelega a pessoas privadas o seu exercício, afastando-o, por conseguinte, dalivre iniciativa. E além de regulá-lo na sua prestaçãopor lei, afasta-o inteiramente do campo dalivre concorrência ao submetê-lo, na outorga da respectiva delegação, aconcurso público de provas e títulos. Pela Constituição, por conseguinte, é juridicamente qualificada comofunção pública, de titularidade do Estado, passível de ser delegada, na sua prestação, a pessoas privadas. Disso não se poderá ter qualquer dúvida.

A todos os que conhecem o mundo público, e a forma como se estrutura a Administração Pública, não deve causar espanto a possibilidade de uma atividade estatal ser delegada, na sua prestação ou no seu exercício, a pessoas privadas. É fenômeno próprio e comum dos Estados modernos. Como bem preleciona CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,“não se deve confundir a titularidade do serviço com a titularidade da prestação do serviço. Uma e outra são realidades jurídicas visceralmente distintas”.E acrescenta:“o fato de o Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) ser titular de serviços públicos, ou seja, de ser o sujeito que detém ´senhoria´ sobre eles (a qual, de resto é, antes de tudo, um dever em relação aos serviços que a Constituição ou as leis puseram ou venham a por seu cargo) não significa que deva obrigatoriamente prestá-los por si ou por criatura sua quando detenha a titularidade exclusiva do serviço. (…) Assim, tanto poderá prestá-los por si mesmo como poderá promover-lhes a prestação conferindo a entidades estranhas ao seu aparelhamento administrativo (particulares e outras pessoas de direito público interno ou da administração indireta delas) titulação para que os desempenhem, isto é para que os prestem segundo os termos e condições que fixe. (…)”É óbvio que nos casos em que o Poder Público não detém a exclusividade do serviço, não caberá imaginar esta outorga, pois quem o desempenhe prescinde dela para o exercício da atividade em questão”.[4]

Desse modo, dúvidas não podem existir de que, no âmbito do direito positivo brasileiro, é tida como estatal, e denatureza pública,a função notarial e registral[5]. Por delegação constitucional direta deverá ser prestada, mediante concurso público de provas e títulos, por pessoas privadas. É atividade deexecução da lei e, portanto, de natureza tipicamenteadministrativa. À luz da clássica tripartição das funções estatais originalmente proposta por MONTESQUI
EU, aceita dogmaticamente como um dos pilares de sustentação do denominado Estado de Direito, outra solução não será possível, uma vez que não haverá de ser tida comolegislativa(pois por ela não são produzidas normas genéricas disciplinadoras da vida em sociedade, ou seja, atos legislativos) ou comojurisdicional(uma vez que por ela também não são aplicadas sanções aos transgressores da ordem jurídica, ou seja, produzidas sentenças judiciais dotadas da autoridade de coisa julgada). É, portanto, típica e propriamente enquadrada no âmbito dafunção administrativa do Estado, integrando o objeto de estudo e de disciplina doDireito Administrativo por ser este, como ensina em breves e sábias palavras HARMUT MAURER,“les corps des règles juridiques (écrites et non écrites) qui s’appliquent de maniére spécifique à l’ administration – c´est-à-dire à l’activité administrative, à la procédure administrative et à l’organisation administrative. Il est le droit propre de l´administration”[6].

O texto constitucional, todavia, em que pese tenha apontado um rumo seguro para a definição ontológico-jurídica da natureza da atividade notarial e registral, em um segundo momento, acaba por propiciar discussões e polêmicas. É certo que a atividade notarial e de registro é juridicamente qualificada por ele como pública, e naturalmente como administrativa. Todavia, deverá ser vista como uma forma especial e própria de prestação de um serviço público? E seus prestadores, deverão ser definidos como servidores públicos?

Diverge a doutrina sobre ser ou não a atividade notarial e de registro passível de ser enquadrada como uma espécie de serviço público. Contudo, a bem da verdade, a discussão não se liga a qualquer dúvida ou polêmica relativa a características da função realizada por notários ou registradores. A sua origem se prende às próprias controvérsias existentes, historicamente, sobre o conceito deserviço público.

Como a ninguém é dado desconhecer, as primeiras noções acerca do conceito de serviço público foram lavradas em solo francês, com o surgimento da chamadaEscola do Serviço Público, capitaneada por LEON DUGUIT e que teve como seguidores, ROGER BONNARD e GASTON JÉZE, entre outros. Para DUGUIT, oserviço público seria o limite e o fundamento de todo o poder governamental e, portanto, todo o Direito Administrativo deveria ser visto como um conjunto de princípios e normas congregados ao derredor da idéia deserviço público. Mudava-se, assim, a compreensão desta disciplina, antes fundada sobre a idéia de“poder”do Estado. O fundamento agora passava a ser o “dever”do Estado, ou seja, o“serviço” a ser prestado à coletividade, de modo que oserviço público seria “o limite e o fundamento do próprio poder governamental[7].

Esta visão recebeu fortes críticas, como bem observou JEAN RIVERO ao anotar que a Escola do Serviço Público“acreditou poder explicar todas as particularidades do direito administrativo pelas necessidades do serviço público; no entanto cometeu o erro de não prestar suficiente atenção à exceção que acompanhava o princípio, quer dizer a gestão privada dos serviços públicos, atribuindo assim ao princípio um alcance mais lato do que a jurisprudência lhe dava”[8].

Esta excessiva amplitude atribuída ao conceito passou a ser por muitos objetada. Questionou-se a utilidade de se adotar um conceito que em seu contexto reuniria realidades tão díspares. Buscou-se então a sua reformulação, o estabelecimento de critérios menos fluidos para a definição de seus contornos. Negando-se a possibilidade sustentada de que todas as atividades do Estado (funções legislativa, administrativa e jurisdicional) fossem incluídas no conceito, diversos e diferentes cortes de abrangência conceitual foram sugeridos. Houve quem tenha sugerido que do conceito deveriam ser retirados todos os atos pertinentes à função legislativa e jurisdicional, de modo a se construir uma verdadeira identidade entre o serviço público e a função administrativa do Estado. Houve quem, por outro lado, sugerisse que o poder de polícia (atividade estatal que limita o exercício da liberdade e da propriedade) que é exercido ao longo da função administrativa, não fosse considerado englobado pelo conceito. Houve quem, excluindo do conceito o poder de polícia, nele incluísse apenas as atividades realizadas no exercício de atividade material, desde que submetidas ao regime de direito público. Houve finalmente quem, aprofundando o corte e restringindo ainda mais o conceito, tenha sugerido que na noção de serviço público apenas restem incluídas as atividades de oferecimento de utilidade ou de comodidade material fruíveis diretamente pelos administrados, excluídas, por conseguinte, as atividades administrativas que não tenham tais características. Não faltam, portanto, propostas e teses acerca da matéria.

Contudo, ao contrário do que alguns parecem compreender, a discussão sobre a abrangência que deve ser atribuída ao conceito de serviços públicos não se colocou em padrões de neutralidade axiológica ou de cientificidade pura. Ao revés, da mesma forma que as próprias concepções da Escola do Serviço Público foram marcadas, nas suas formulações, por uma dimensão ideológica e política da compreensão do papel Estado, toda a polêmica doutrinária e cient
ífica que se segue é caracterizada por esta mesma dimensão. Concepções liberais, estatizantes, neoliberais, socialistas influenciaram profundamente esta discussão[9], alterando a forma de ver dos estudiosos do tema. E acabaram por gerar aquilo que muitos convencionaram chamar de“a crise da noção de serviço público”, posta em tal dimensão que para alguns revelaria a própria necessidade de que fosse abandonada definitivamente a utilização do próprio conceito, pela confusão que ensejaria[10].

Deste ponto de vista não compartilham a maior parte dos constitucionalistas e administrativistas brasileiros contemporâneos. De fato, embora buscando pragmaticamente uma forma mais restrita de conceituar o serviço público, amparada no nosso próprio direito positivo[11], tem-se entendido que esta noção deve ser vista como um importante campo de atividades a ser localizado dentro do exercício da função administrativa do Estado. Partem, portanto, da concepção de que os elementos definidores do conceito de serviço público devem ser retirados das normas constitucionais e legais em vigor, e das concepções dominantes na sociedade, na medida em que, como bem diz DINORÁ GROTTI, em excelente monografia,“cada povo diz o que é serviço público em seu sistema jurídico. A qualificação de uma dada atividade como serviço público remete ao plano da concepção do Estado sobre o seu papel. É o plano da escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado tempo histórico”[12] .

Desse modo, entendemos com MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO que, além de a noção de serviço público não ter permanecido estática no tempo, ela depende da legislação de cada país, da abrangência dada às atividades que devem ser tidas como integradas ao conceito, embora não se possa dizer, respeitado um certo campo predefinido de aceitação jurídica ditado pelas normas em vigor e pelas concepções dominantes, que“dentre os conceitos mais amplos ou mais restritos, que um seja mais correto que o outro”[13].Há assim, dentro de parâmetros de aceitação dados pela ordem jurídica e pela visão dominante na sociedade, um certo campo aberto a ser normativamente definido ou doutrinariamente pactuado, conforme o caso, para a definição de um conceito de serviço público. Indubitavelmente, dentro dos marcos constitucionais, e reconhecido o que pela nossa Lei Maior necessariamente deve ser compreendido como tal, o legislador ordinário, de todas as esferas federativas, não deixa de gozar de certa zona de discricionariedade para estabelecer o que deve ser tido como serviço público e o que não deve. Em situação semelhante, dentro dos próprios marcos constitucionais e legais produzidos pelo legislador ordinário, existe também uma zona de indefinição jurídica que deve ser objeto de livre apreciação e estipulação pelo estudioso do Direito acerca de qual conceito adotará para definir o que entende por serviço público. Deveras, nesse último caso, pela inexistência de uma definição rígida e induvidosa, advinda da Constituição e da lei, acerca do que normativamente deve-se ter ou não como serviço público, ao cientista do Direito, naturalmente dentro do que reputa mais conveniente, caberá estipular livremente o conceito que tem por mais adequado. Haverá aqui, portanto, sem sombra de dúvida, como acontece em muitos conceitos atinentes ao campo do Direito Administrativo, uma margem de livre estipulação conceitual a ser utilizada pelo jurista[14].

Para que se evitem maiores delongas, na conceituação de serviços públicos, adotaremos no momento a definição de serviço público proposta por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, muito lembrada e citada por estudiosos e julgados contemporâneos. Segundo o mestre, deve-se entender por serviço público“toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade, em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo[15]. Assim, no campo deste conceito, deve-se entender como serviço público apenas o partic
ular segmento da função administrativa do Estado capaz de gerar aos administradosutilidades ou comodidades materiais individualmente por ele fruíveis (como luz, água, gás, telefone, transporte coletivo, etc.)[16].

Sendo assim, ao menos dentro destes específicos marcos conceituais, não poderemos incluir as atividades de notários e registradores no campo dos serviços públicos propriamente ditos. Deveremos ter tais atividades, de acordo com o afirmado anteriormente, como decorrentes do exercício de função pública, de natureza administrativa, mas não como um serviço público. As funções desenvolvidas por notários e registradores não geram aos administrados utilidades ou comodidades materiais de qualquer natureza. Produzem, isto sim,certeza e segurança jurídicaque, em si, não podem ser vistas como tal.

É o que ensina, aliás, JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao adotar o mesmo conceito de serviço público por nós ora acolhido. Afirma o constitucionalista, ao reconhecer que as serventias notariais e registrais exercem função pública tanto quanto as atividades de telecomunicações, de radiodifusão, de energia elétrica, de navegação aérea e aerospacial e de transportes, por força do disposto na Constituição Federal (art. 21, XI e XII), que:“a distinção que se pode fazer consiste no fato de que os últimos são serviços públicos de ordem material, serviços de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, enquanto os prestados pelas serventias do foro extrajudicial são serviços de ordem jurídica ou formal, por isso têm antes a característica de ofício ou de função pública, mediante a qual o Estado intervém em atos ou negócios da vida privada para conferir-lhes certeza, eficácia e segurança jurídica, por isso, sua prestação indireta configura delegação de função ou ofício público e não concessão ou permissão, como ocorre nas hipóteses de prestação indireta de serviços materiais.”(…)”A terminologia – função ou serviço -, para os fins aqui em vista, não é relevante. Apenas se pode notar que a Constituição fala em serviço de registro; só por esta razão vamos usar a terminologia constitucional, falando de preferência, em serviço, embora reconheçamos que melhor seria o termo ´função´”[17].

Para nós, portanto, em virtude da realidade conceitual adotada, os serviços notariais e de registro não poderão ser tidos como verdadeiros e própriosserviços públicos.Qualificam exercício de atividade pública, de verdadeira espécie de função administrativa, submetida ao regime e aos princípios do Direito Administrativo, delegada a terceiros por meio de concurso público. É por isso que a delegação referida, como indicado acima nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA, não pode ser vista como uma forma descentralizada de serviço público, realizada por meio de uma concessão ou de uma permissão de serviços públicos. Deveras, de acordo com o art. 175,caput, da nossa vigente Constituição Federal[18], o serviço público somente poderá ser prestado pelo Poder Público diretamente, ou indiretamente“sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação”. No caso das funções realizadas por notários e registradores, não há uma forma de prestação de um serviço público. Por isso, a delegação referida no art. 236 da Lei Maior não se efetiva por meio de uma concessão ou uma permissão de serviços públicos, nem por meio de licitação. É uma forma de delegação atípica de função administrativa, constitucionalmente estabelecida a particulares, por meio de concurso público de provas e títulos. Inadmissível, portanto, qualquer confusão a respeito. Não são notários e registradores concessionários ou permissionários de serviços públicos[19]. São delegados prestadores de função administrativa do Estado[20].

Esta definição nos permite preparar o terreno para a compreensão da resposta que deve ser atribuída à outra indagação acima formulada. É possível afirmar-se que notários e registradores sãofuncionáriosouservidores públicos?

A questão exige aguda reflexão. Em geral, quase sempre os doutrinadores atuais que reconhecem que notários e registradores exercem função pública admitem que estão eles incluídos na ampla categoria dosagentes públicos. Afinal, como bem ensina LÚCIA VALLE FIGUEIREDO em consonância com a melhor doutrina,“agentes públicos são todos aqueles investidos em funções públicas, quer permanente, quer temporariamente”.E acrescenta:“a expressão ‘agentes públicos’ é abrangente e abriga os agentes políticos, funcionários, servidores, contratados por tempo determinado para serviço de excepcional interesse
público e, ainda, os que obtiveram estabilidade por meio da Constituição de 1988, das ‘Disposições Gerais e Transitórias’. Também inclui os particulares em colaboração com a Administração Pública”[21]
.

São, pois, notários e registradores, como muitos reconhecem, uma espécie do gêneroagente público. Mas passíveis de serem classificados em que espécie? Em que categoria se situam? Na dos servidores públicos? Na dos funcionários públicos? Em outra diferenciada?

A resposta a estas indagações tem ensejado grandes controvérsias, tanto na doutrina como na própria jurisprudência.

Muitos estudiosos chegaram a sustentar que notários e registradores devem ser consideradosfuncionários públicos[22]. Durante longo período de tempo esta foi tida como a posição majoritária entre nós, como observou em sua magnífica monografia LEONARDO BRANDELLI[23]. Após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, porém, em face da não utilização pela nossa Lei Maior da expressão“funcionários públicos”,mas partindo da mesma concepção jurídica, muitos passaram a defender que notários e registradores deveriam ser classificados como espécies do gêneroservidor público.Aliás, é a tese esposada pela professora titular de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, MARIA HELENA DINIZ, ao referir-se especificamente à serventia imobiliária:o oficial imobiliário e seus funcionários são servidores públicos, subordinados a órgãos estatais, integrados ao Executivo e Judiciário.”(…)”O oficial de registro imobiliário não é um servidor público ordinário; é um técnico incumbido de registrar a aquisição de um imóvel ou a sua oneração, constituindo, com o assento, um direito real em favor de alguém. A tecnicidade de sua função requer qualidade de serviços prestados.O oficial titular do Cartório é servidor público, tendo autonomia administrativa, mas não é remunerado pelo Estado, e sim, pelos interessados no registro, pois terá direito, a título de remuneração, a emolumentos, fixados por órgão competente, pelos atos praticados. O Poder Público não arcará com o ônus dos serviços do Registro Imobiliário. Embora exerça função pública em interesse próprio, não estando vinculado ao Estado por uma relação hierárquica, ele se subordina aos critérios estatais quanto à fiscalização, disciplina e punição dos atos por ele praticados, oficializados ou privatizados; portanto, oserventuário é um servidor público[24].

Idêntica posição também é assumida por FLAUZELINO ARAÚJO DO SANTOS, inserida em interessante monografia, quando afirma, após cuidadosas referências doutrinárias, que: “à evidência, portanto, que o notário e o oficial de registro não exercem funções privadas, porém públicas, com destaque que a função não é exercida em seus próprios nomes, mas no do Estado através da delegação que lhes é conferida na forma da lei, o que os insere na categoria de servidores públicos[25].

Outros autores de igual renome, todavia, compartilham de diferente entendimento. Optam por incluí-los em uma categoria diferenciada de agentes públicos, constituída por particulares que exercem, em decorrência de delegação estatal, uma particular espécie de função administrativa. HELY LOPES MEIRELLES, por exemplo, os coloca na categoria que denomina “agentes delegados”, formada por“particulares que recebem a incumbência de determinada atividade, obra ou serviço público, por sua conta e risco, mas segundo normas do Estado e sob permanente fiscalização do delegante”[26].CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, seguindo os fundamentos de classificação originalmente proposta por OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, os situa na categoria que denomina “particulares em colaboração com administração”[27]< /a>, sendo aqui acompanhado de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO[28]. JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO prefere denominá-los “agentes particulares colaboradores”[29],enquanto MARÇAL JUSTEN FILHO, formulando uma original classificação dos“agentes estatais”,prefere enquadrá-los na categoria que denomina “agentes do Poder Judiciário não servidores”[30].

Mesmo após a entrada em vigor da Constituição de1988, a nossa jurisprudência também parece navegar em mar de incertezas sempre que é chamada a tratar, por diferentes razões, da matéria. Uma breve análise histórica dos julgados do Supremo Tribunal Federal assim o revela.

Durante um bom período de tempo, acolheu o nosso Supremo Tribunal Federal, pela maioria dos seus membros, a tese de que notários e registradores sãoservidores públicos. Em certos julgados ainda afirmou que, nesta condição, deviam ser considerados como verdadeiros titulares decargos públicos.

A respeito, reputamos oportuno analisar com alguma detença a importante decisão tomada quando do julgamento do Recurso Extraordinário de nº 178.236-6-RJ, em que foi relator o Ministro OCTAVIO GALLOTTI[31]. Debatia-se na oportunidade se os serventuários de notas e de registros estariam ou não sujeitos à aposentadoria compulsória estabelecida no art. 40, II, da Constituição Federal. Decidindo-se a questão por maioria de votos, prevaleceu a tese de que, sendo estes serventuários autênticosservidores públicos e ocupantes de cargos públicos criados por lei, deveriam estar sujeitos a esta forma particular de aposentadoria.

É esta a Ementa do v. Acórdão, que passou a ser tido como um paradigma decisório da nossa Corte Suprema durante algum tempo:

 

EMENTA: – Titular de Ofício de Notas da Comarca do Rio de Janeiro.

Sendo ocupantes de cargo público criado por lei, submetido à permanente fiscalização do Estado e diretamente remunerado à conta de receita pública (custas e emolumentos fixados por lei), bem como provido por concurso público – estão os serventuários de notas e de registros sujeitos à aposentadoria por implemento de idade (art. 40, II, e 236, e seus parágrafos, da Constituição Federal de 1988).

Recurso que se conhece pela letra “c”, mas a que, por maioria de votos, nega-se provimento.”

 

Como se observa pela leitura imediata da ementa acima transcrita, quatro argumentos são destacados para subsidiar a tese de que estes serventuários estão efetivamente inseridos na categoria deservidores públicos.O primeiro é o de que seriam “ocupantes de cargo público criado por lei”. O segundo, o de que seriam submetidos “à permanente fiscalização do Estado”. O terceiro, o de que seriam diretamente remunerados“à conta de receita pública”. E, finalmente, o quarto e último projeta-se no sentido de que os cargos por eles ocupados seriam providos“por concurso público”[32] .

A leitura integral do v. Acórdão revela que a ementa expressa fielmente a síntese da posição vencedora. A estas razões deve ser apenas acrescido o argumento utilizado pelo Ministro CELSO DE MELLO quanto a que“não se pode desconsiderar, neste ponto, a comunis opinio doctorum, que, sem maiores disposições, classifica os Serventuários entre os servidores públicos, eis que – conforme adverte AGUIAR DIAS – “só por supersticioso apego a essa tradição abandonada (a de atribuição dos cartórios a título de propriedade), continuaríamos a negar ao serventuário de Justiça a condição de funcionário público (RDA 31/120)” (…) “Essa mesma orientação é partilhada, dentre outros eminentes autores, por CAIO TÁCITO (RDA 50/252-236), ALAIM DE ALMEIDA CARNEIRO (RDA 3/447 E RDA 13/510) e L.C. DE MIRANDA LIMA (RDA 55/376-381”.

Apresentando fortes razões cont
rárias a este posicionamento, em magníficas e substanciosas razões de voto, pronunciaram-se os Ministros MARCO AURÉLIO e SEPÚLVEDA PERTENCE, afirmando que não se poderia admitir a tese de que notários e registradores fossem considerados comoservidores públicos[33].

A partir daí, apesar da divergência, consolidou-se durante algum tempo o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria. Diversos julgados se repetiram na linha de dar acolhimento à tese vencedora, reafirmando que notários e registradores seriam efetivamenteservidores públicos, e por assim ser haveriam de estar sujeitos à aposentadoria compulsória[34].

Tempos mais tarde, complexa discussão associada à matéria ocorreu quando do julgamento da ADI nº 1.531 – MC (medida cautelar), em que foi relator o Ministro SIDNEY SANCHES (Acórdão de 24.06.99). Nesta ação se discutiu a inconstitucionalidade do §2º do art. 25 da Lei nº 8.935/94, por estabelecer este que“a diplomação, na hipótese de mandato eletivo, e a posse nos demais casos”implicará o necessário afastamento da atividade notarial e de registro. Questionava-se se tal mandamento legal não colidiria com o preceito constitucional inserido no art. 38, III, da nossa Lei Maior que autoriza oservidor público investido no mandato de Vereador, desde que exista compatibilidade de horários, a exercer simultaneamente as duas funções, percebendo“as vantagens do seu cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração do cargo eletivo”.

As opiniões se dividiram. No entanto, para o que de momento nos interessa, podemos dizer, em síntese, que os posicionamentos registrados pelos ínclitos julgadores se apresentaram:

a) em colidência com o teor da ementa do julgamento proferido no Recurso Extraordinário de nº 178.236, no sentido de que notários e registradores“não são investidos em cargos públicos, mas sim exercem em atividade em caráter privado, por delegação do Poder Público”[35]. Seriam na verdadeservidores públicos “lato sensu”,a eles não se aplicando a regra do art. 38 da Constituição Federal por ser esta dirigida apenas aos servidores públicos em sentido estrito;

b) em colidência com o teor da ementa do julgamento proferido no Recurso Extraordinário de nº 178.236, ao partir do suposto de que notários e registradores não sãoservidores públicos.Por isso entende que o art. 38 da Constituição a eles não poderia ser aplicado[36];

c) em adequação lógica com o teor da ementa do julgamento proferido no Recurso Extraordinário de nº 178.236, ressalvando que notários e registradores são servidores“lato sensu”, mas sujeitos à incidência do art. 38 da Constituição[37];

d) em estrita correspondência com o teor da ementa do julgamento proferido no Recurso Extraordinário de nº 178.236, ressalvando que notários e registradores ocupam cargos públicos e, portanto, são servidores públicos. A eles se aplicaria o art. 38 da Constituição[38].

É importante observar que, em sua decisão final, firmou o STF o entendimento de que o art. 38, III, da Constituição Federal deveria ser aplicado aos notários e registradores, eliminando-se, portanto, apenas neste específico aspecto, a vigência do mandamento legal que determinava o afastamento obrigatório destes agentes de suas funções quando porventura fossem exercer mandato de Vereador. A liminar foi deferida parcialmente. Com isso, novamente, reforçou-se o entendimento de que as regras constitucionais firmadas para a regência de servidores públicos, a exemplo da aposentadoria compulsória a notários e registradores, também a eles deverão ser aplicadas[39].

Mais recentemente, todavia, começaram a surgir indicadores mais efetivos de que a tese originalmente sustentada de forma paradigmática, por maioria de votos, no Recurso Extraordinário de nº 178.236-6-RJ, começava a ser abandonada.


Interessante discussão, profundamente reveladora do questionamento pelo qual passava a tese até então majoritariamente aceita pela Suprema Corte, ocorreu no julgamento da ADI nº 2.415-9(medida cautelar- 13.12.2001) requerida pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR. Tinha esta ação o objetivo de ver declarado inconstitucional provimento do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo que reorganizava as delegações de registro e notas. Sendo relator o Ministro Ilmar Galvão, foi esta a ementa do julgado:

 

EMENTA: “AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDAS CAUTELARES. PROVIMENTO Nº 747/2000, DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE SÃO PAULO, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO PROVIMENTO Nº 750/2001. REORGANIZAÇÃO DAS DELEGAÇÕES DE REGISTRO E DE NOTAS DO INTERIOR DO ESTADO. ATOS NORMATIVOS ABSTRATOS E GENÉRICOS. CABIMENTO. LEGITIMIDADE ATIVA. ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL. RECONHECIMENTO. ORGANIZAÇÃO DO SERVIÇO NOTARIAL E DE REGISTRO. COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS. ART. 96, I, B, DA CF. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE DA ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL.

1. Evidenciada a presença de comandos que dispõem genericamente e para o futuro sobre todas as serventias de notas e registros do interior paulista, possui o Provimento impugnado a característica de ato normativo passível de exame no controle concentrado de constitucionalidade;

2. A legitimidade ativa da ANOREG – associação cujo enquadramento na hipótese prevista do art. 103, IX, 2ª parte da CF já foi confirmado por esse Tribunal – não pode ser afastada por mera manifestação em sentido contrário promovida por seccional de outra entidade similar.

3. Não se tratando da criação de novos cargos públicos, possuem os Tribunais de Justiça estaduais competência para delegar, acumular e desmembrar serviços auxiliares dos juízos, ainda que prestado por particulares, como os desempenhados pelas serventias extrajudiciais.

4. Medida cautelar indeferida, por maioria, pela ausência de conveniência na suspensão dos Provimentos impugnados e de plausibilidade dos fundamentos da inicial.” (grifo nosso)

 

Afirmou-se, então, a nosso ver, em posição rigorosamente divergente da expressa no julgamento do Recurso Extraordinário de nº 178.236-6-RJ, quenotários e registradoresnão ocupam cargos públicos.

Aliás, é expressiva a manifestação do Ministro Relator, em seu voto, quando afirma:

“É que os sujeitos titulados por delegação para o desempenho dos ‘serviços’ (rectius, funções) notariais e de registro, embora exerçam atividade pública, conservam a qualidade de particulares, visto que a exercem em caráter privado, conforme expressamente previsto no ‘caput’ do art. 236 da CF.Não obstante a ementa do RE 178.236, acima transcrita, mencione tais titulares como “ocupantes de cargo público criado por lei”, é fora de dúvida que quis referira condição de exercentes de cargo público, condição que foi considerada bastante para tê-lospor equiparados a ocupantes de cargo público, para efeito de aposentadoria compulsória,visto ser manifesto que não ocupa cargo público quem exerce serviço público em caráter privado, sendo fora de dúvida que, por isso mesmo, não podem ser agrupados em categorias ou em carreiras.” (grifos nossos)[40]

 

Com o advento da alteração do texto constitucionalintroduzida pela Emenda nº 20/98, a discussão da matéria teve de ser retomada pela Corte Suprema. Na sua redação original, afirmava o texto do art. 40, II, da nossa Lei Maior, que“o servidor” será aposentado“compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço”. Com a alteração realizada pelo poder constituinte derivado, este artigo passou a não mais se referir genericamente ao“servidor”,mas“aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações…”[41].

Obviamente, pelo novo texto constitucional, somente os servidores titulares decargos públicos efetivos poderiam ser submetidos à aposentadoria compulsória. A discussão acerca da qualificação jurídica de notários e registradores voltou, então, a ser apreciada pela mais alta Corte jurisdicional do nosso país[42]. Novas manifestações do Pretório Excelso foram firmadas, agora no entendimento de que a aposentadoria compulsória não poderia mais incidir sobre notários e registradores. Reconhecia-se qu
e, por não serem tais agentes públicosocupantes de cargos públicos efetivos,não poderiam estar submetidos à nova determinação constitucional. Com isso, naturalmente, não se eliminava totalmente a tese de que pertenciam notários e registradores à categoria deservidores públicos, mas se consolidava a jurisprudência de que titulares de cargos públicos não são.

Esta foi a decisão tomada quando da apreciação da medida cautelar na ADIN nº 2602, também requerida pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR, em que foi relator o Ministro MOREIRA ALVES. Decidida em 03.04.03, firmou o seguinte entendimento:

 

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO Nº 055/2001 DO CORREGEDOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

– Pela redação dada pela Emenda Constitucional nº 20/98 ao artigo 40 e seu parágrafo 1º, e inciso II, da Carta Magna, a aposentadoria compulsória aos setenta anos só se aplica aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, tendo, sem dúvida, relevância jurídica a argüição de inconstitucionalidade do ato normativo em causa que é posterior a essa Emenda Constitucionalsob o fundamento de que os notários e magistrados, ainda que considerados servidores públicos em sentido amplo, não são, por exercer suas atividades em caráter privado por delegação do Poder Público, titulares de cargos efetivos acima referidos.”

– Ocorrência quer do ‘periculum in mora’, quer da conveniência da Administração Pública, para concessão da liminar requerida.

– Liminar deferida para suspender ‘ex nunc’, a eficácia do provimento nº 055/2001 da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais até a decisão final desta ação direta”. (grifo nosso)

 

A mudança de posicionamento da Corte Suprema, porém, acabou sendo mais profunda do que se poderia imaginar. Ao apreciar, em 11 de novembro de 2004, o julgamento do mérito desta ADIN nº 2602, o STF alterou radicalmente, a nosso ver, o rumo da jurisprudência. Sendo relator originário o Ministro JOAQUIM BARBOSA, mas relator do Acórdão o Ministro EROS GRAU, manteve-se o entendimento de que não deveriam ser notários e registradores alcançados pela compulsoriedade imposta pelo art. 40, II, da Constituição Federal. Só que agora, como premissa de decisão, se avançou em campo até então não admitido, em clara colidência com a decisão paradigmática anteriormente tomada quando do julgamento do RE nº 178.236. Decidiu-se, consolidando a mudança da posição anterior já revelada nos julgados acima citados, que estes agentes públicos não só não são titulares de cargo público efetivo, como tampouco ocupam qualquer outra forma de cargo público. Mais ainda: em importante mudança de posicionamento, afirmou-se literalmente que notários e registradores“não são servidores públicos”.

É esta a decisão:

 

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO N.055/2001 DO CORREGEDOR-GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. NOTÁRIOS E REGISTRADORES. REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS. INAPLICABILIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 20/98. EXERCÍCIO DE ATIVIDADEEM CARÁTER PRIVADOPOR DELEGAÇÃO DO PODER PÚBLICO. INAPLICABILIDADE DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA AOS SETENTA ANOS. INCONSTITUCIONALIDADE.

1. O artigo 40, §1º, inciso II, da Constituição do Brasil, na redação que lhe foi conferida pela EC 20/98, está restrito aos cargos efetivos da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios — incluídas as autarquias e fundações.

2. Os serviços de registros públicos, cartorários e notariais são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público — serviço público não-privativo.

3.Os notários e os registradores exercem atividade estatal, entretanto não são titulares de cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público. Não são servidores públicos, não lhes alcançando a compulsoriedade imposta pelo mencionado art. 40 da CB/88 – aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade.

4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente”

 

A leitura atenta da íntegra do julgado, todavia, revela-nos que alguns aspectos que permeiam esta decisão devem ser avaliados e recebidos com cautela. Conquanto exista, de fato, uma ampla e real convicção dos membros da Corte Suprema de que a aposentadoria compulsória não pode mais ser aplicada a notários e registradores depois da Emenda Constitucional nº 20/98[43], e de que não são estes agentes titulares de cargos públicos, a discussão quanto a serem ou não servidores públicos ainda parece existir. É bem verdade que, nos dias atuais, parecem ser poucos os que assumem a tese de que seriam servidoresem sentido estrito. Mas ainda tem certa acolhida a visão de que seriam“servidores públicos em sentido amplo”[44].

Todas estas controvérsias e oscilações na nossa jurisprudência se prendem a algumas razões que não podem ser ignoradas.

A primeira delas reside na grande incerteza doutrinária e científica que existe em relação aos conceitos e às classificações deserviço público,função pública,agente,funcionário e servidor público< /i>. A divergência é imensa e acaba expressando-se na própria formulação legislativa, sempre que estes termos precisam ser adotados pelo legislador. E uma vez incorporados estes conceitos à redação das normas legais, a confusão se agrava ainda mais, pela ação não uniforme e divergente dos exegetas que se debruçam sobre o novo texto legislativo. Alimenta-se o círculo vicioso, e a incompreensão amplia o seu universo de existência.Omnis scientia a significatione verborum incipit.

A outra se prende ao fato de que a Constituição Federal de 1988 trouxe profundas mudanças na disciplina do exercício da atividade notarial e registral, realizando um verdadeiro divisor de águas na matéria[45]. Antes do advento da nossa vigente Lei Maior, apesar da polêmica que já se impunha, era forte a corrente de opinião que entendia seremfuncionários públicos estes agentes[46]. Entendia-se até que seriam“funcionários públicos vitalícios”[47].

É natural, assim, que o texto do art. 236 da nossa vigente Constituição Federal, no período que se segue à sua entrada em vigor, trouxesse dúvidas, perplexidades, apego incontido às concepções preexistentes, e desejo de transformação, a partir da ótica de análise de cada exegeta[48]. A interpretação do direito não é neutra, como supõem os adeptos de HANS KELSEN e do corte epistemológico que propõe este ilustre jusfilósofo para o estudo da ciência do Direito[49]. Tanto nos estudos teórico-especulativos próprios do mundo científico, como nas interpretações autênticas realizadas pelos órgãos aplicadores do direito, a visão de mundo, a ideologia, a dimensão cultural da compreensão da realidade se fazem presentes no ato de conhecimento da realidade normativa. Não existepureza ouneutralidade no conhecimento ou na aplicação do fenômeno jurídico. Por isso é natural que, quase sempre, estudiosos e juízes, quando apegados ao velho, interpretem o novo com os olhos amparados por visões que possuíam do antigo. Como também é natural que, de hábito, a manutenção do velho seja interpretada como uma grande transformação por aqueles que, desejosos da mudança, se forçam a ver realidade substantivamente idêntica com olhos voltados para o futuro.

Somente isso, a nosso ver, justifica a posição arraigada de que notários e registradores, após o advento da nossa atual Carta Constitucional, devam ser vistos como uma espécie deservidores públicos,seja a expressão utilizada em sentido amplo ou estrito. Ao contrário do sustentado por alguns, servidores públicos não são.Omnia mutandur. Somente o apego a uma arraigada visão antiga, ou uma inconsciente hostilidade ao novo, pode explicar, com a devida vênia, este ponto de vista[50].

A Constituição é clara. Afirma que as atividades de notários e registradores “são exercidas em caráter privado, por delegação do poder público“. Como já vimos, o Estado por ser apenas titular de atividades públicas não poderia delegar a alguém atividade privada. É evidente, então, que a atividade delegada é pública. E o que então é de caráter privado? Apessoa a quem se realiza a delegação. O que se quer é que apenas pessoas privadas e nãoentes públicos prestem essa particular espécie de função administrativa. O que se quer evitar não é a titularidade do Estado no exercício desta função (pois quem não é titular de uma atividade não podedelegá-la), mas a suaexecução, a suaprestação, por órgãos públicos. O que se quer garantir é que não sejaestatizada a prestação desta atividade, ou seja, que apenaspessoas privadaspossam, fazendo as vezes do Estado, prestá-la. Nem mais nem menos do que isso.

Avancemos então. É óbvio que os servidores públicos, ao serem considerados em si mesmos,per se,na sua existência, sãopessoas físicas, e como pessoas do mundo,pessoas privadas. Entretanto quando exercem função pública não são nem podem ser juridicamente considerados, em si e por si, comopessoas. Eles sãopartes de uma pessoa. Integram ou constituem órgãos de uma pessoa jurídica estatal. Na qualidade de servidores públicos, na sua atuação funcional, naturalmente, não têm personalidade jurídica. Quando agem exercendo a função pública, não vinculam os direitos e deveres que produzem a si pr
óprios. São parte e instrumento de uma pessoa maior, de um ente estatal que tem personalidade jurídica. É a ele que, com suas ações, vinculam novos direitos e novos deveres.

Logo, dúvidas não podem existir de que servidor público não agesob delegação do Estado. Eleé o Estado. É sua parte integrante. Integra seuser. Quem pode receber uma delegação do Estado, para fazer suas vezes ou realizar em seu nome atribuições legais, só pode ser alguém queem si, enaquela função delegada,não é Estado,não é parte integrante dele. Quem recebe função delegada não pode ser quem delega. Servidor público não exerce, portanto, funçãodelegadapelo Estado. Caso assim fosse, estaríamos diante de uma estranha figura em que alguémdelega atribuições a si mesmo, ou a uma parte de si mesmo, em semelhante situação ao insano que viesse a afirmar que delegou à sua mão a função de apedrejar alguém. Por óbvio, delegar a si mesmo será sempre umacontraditioin adjectis. E é o que ocorreria se, diante do art. 236 da Constituição Federal, o Estado estivessedelegando funções a servidores públicos.

Aliás, devem ser lembradas as clarividentes palavras do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE quando do citado julgamento do RE 178.236, apresentou o seu bem elaborado voto. Sustentando, naquele momento, posição minoritária na Suprema Corte, verberou, embora utilizando a expressãoserviço público em dimensão mais ampla do que aquela que aqui adotamos, ao se referir à função realizada por notários e registradores, que:“Cuida-se sim de um serviço público, o que, porém, não resolve, por si só, o ‘status’ do seu agente; nem todo serviço público é executado por servidor público, e o exemplo típico é o do serviço público prestado por delegação do Estado, como está no art.236 da Constituição.Não se pode conceber que o Estado delegue a prestação de serviço público a quem é servidor público. O delegado, é elementar, exerce delegação em nome próprio; o servidor o faz em nome do Estado, ‘presenta o Estado’, por fazer honra à linguagem de Pontes de Miranda“(grifo nosso).

Além disso, outras razões podem ser aduzidas na defesa da tese em que se afirma a total falta de identidade ontológica entre a categoria de notários e registradores e a categoria dos servidores públicos.

Primeiro: os servidores públicos recebemvencimentosousubsídios pagos diretamente pelo Estado, ou seja, por meio dereceita carreada aoscofres públicos (receita pública). Os notários ou registradores recebem sua remuneração dosemolumentos diretamente pagos pelos usuários da função que realizam. Seu pagamento não se dá comdinheiro público, ou por meio dereceita pública. Sua remuneração se dá, portanto, em situação muito semelhante ao que acontece comconcessionários e permissionários de serviço públicos, que são particulares que atuam em colaboração com o Poder Público em decorrência dedelegação estatal (art. 175 da Constituição Federal), e em moldes muito diferenciados da que ocorre em relação aos autênticosservidores públicos. Recebem emolumentos pagos pelos usuários da atividade e não os repassam ao Poder Público. Incorporam esta receita ao seu patrimônio particular.

Segundo: os titulares das serventias de notas ou de registros, na conformidade do que admite o direito positivo brasileiro, podem contratar empregados, pagos por sua conta e responsabilidade, e a seu critério, sob o regime da legislação trabalhista, pagando-lhes diretamente remuneração livremente ajustada[51]. Estes empregados também nada recebem dos cofres públicos, percebendo salários daquele que os contrata. Jamais poderá um servidor público agir assim, em face da nossa Constituição, e dentro dos limites impostos pelo nosso ordenamento jurídico[52]. Ensina, a respeito, JOSÉ AFONSO DA SILVA em entendimento do qual compartilhamosin totum:“Como pode ser considerado servidor público alguém que tem tais faculdades? Servidor público não contrata empregado, não escolhe substituto, não tem poder para fixar remuneração de ninguém. Quando algum agente público firma alguma forma de contrato de trabalho, ele o faz em nome da entidade estatal a que está vinculado. Nunca tem competência para fixar ou ajustar a remuneração de quem eventualmente contrata em nome da entidade estatal, pois a remuneração é sempre prevista legalmente”[53].

Terceiro: as atividades de notários e registradores, não apenas no âmbito dos empregados que auxiliam na sua prestação,são de exclusiva e integral responsabilidade do titular da serventia. Todo o aspecto de gerenciamento administrativo e financeiro compete também a estes, com absoluta exclusividade, incluindo-se aqui as despesas de custeio e de investimento. Aos titulares das serventias cabe< i style=”mso-bidi-font-style: normal”>”estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços”[54].Tal situação é absolutamente incompatível com a atuação deservidores públicos, mas muito semelhante ao que ocorre comconcessionários e permissionários de serviços públicos, ou seja, próxima à daqueles que induvidosamente exercem delegação defunçãooutorgada pelo Poder Público.

Quarto: notários e registradores não estão subordinados a qualquer relaçãohierárquica em relação ao Poder Público, mas apenas sujeitos àfiscalização do Poder Judiciário, nos termos estabelecidos pela lei (art. 236, §1º, da Constituição Federal). Como se sabe, osservidores públicos,em quaisquer das suas espécies[55], estão submetidos aopoder hierárquico.Poder hierárquico“é o de que dispõe o Executivo para distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal”[56]. Esse poder, como habitualmente se reconhece em doutrina, envolve a prerrogativa do superior hierárquico em relação ao subordinado decomandar, defiscalizar,derever atos,depunir, dedirimir controvérsias de competência, dedelegar e avocar competências, sempre de modopressuposto,contínuo e permanentesobretoda a atividade administrativa dos subordinados[57]. Não é o que acontece com notários e registradores. Eles são apenas submetidos à merafiscalização do Poder Judiciário (uma pequena parcela das atribuições que o superior hierárquico mantém sobre o subordinado) e nostermos expressamente estabelecidos na lei, ou seja, de modonão pressuposto,não contínuo enão permanente sobretoda atividadepor eles exercida, mas limitada à verificação de se esta“está sendo corretamente exercida no interesse coletivo”[58].Note-se que“também os concessionários e permissionários de serviços públicos são submetidos à fiscalização do Poder Público”,e não seriam por isso considerados servidores públicos,“mesmo se fossem pessoas físicas”[59].

Observe-se, ademais, que em regra, os argumentos adotados por aqueles que sustentam pertencerem notários e registradores à categoria dosservidores públicos são difíceis de serem aceitos após uma reflexão mais aprofundada da matéria. Afirmam que pertenceriam a esta categoria porque exercem“serviço público”.Ora, nem todos os agentes públicos que prestam serviços públicos são necessariamente servidores públicos. O exemplo inconteste é obviamente o dosconcessionários e permissionários de serviço público, que ninguém ousaria afirmar, em face do próprio art.175 da Constituição Federal, que pertençam a esta particular categoria de pessoas que exercem função pública.

Talvez, o único argumento queprima facie poderia ter alguma consistência, seria o de que, pela Constituição,“o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”.De fato, o ingresso em cargo, emprego e função pública por meio deconcurso público é uma característica constitucionalmente estabelecida para os servidores públicos (art. 37, II, da Constituição Federal). Há nisso, indubitavelmente, uma proximidade de situações[60].

Contudo, essa proximidade em um aspecto secundário do seu regime jurídico não gera identidade absoluta das realidadesem comparação. O servidor público presta concurso público para ocupar cargos, ou exercer empregos e funções públicas que, nos termos do próprio art. 37 da nossa Lei Maior, existem no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta. E as serventias ou cartórios titularizados por notários e registradores não são nem nunca foram considerados como órgãos da Administração Direta, nem pessoas da Administração Indireta[61]. Ademais, o concurso público não é um procedimento aplicável apenas para a escolha deservidores públicosno sentido próprio da expressão. Por ele, como observa JOSÉ AFONSO DA SILVA, também são escolhidostradutores, intérpretes juramentados, leiloeiros oficiais e até despachantes[62]. A bem da verdade, o concurso público nada mais é do que um procedimento administrativo que visa permitir a escolha, com base em critérios isonômicos, da pessoa que maior capacitação demonstra para o exercício da função. Situação também semelhante acontece com osconcessionários e permissionários de serviços públicosque, por imposição constitucional (art. 175, caput, da C.F.), precisam ser necessariamente escolhidos porlicitação. Lembremos que as licitações nada mais são do que procedimentos administrativos destinados a permitir a escolha, com base em critérios isonômicos, da pessoa que apresente a proposta mais vantajosa para a realização de um futuro ato jurídico.Concurso públicoelicitação,portanto, são procedimentos administrativos realizados para a escolha, por critérios isonômicos, daquele que melhor poderá servir ao interesse público. Mais uma vez a analogia se coloca entre notários e registradores e as pessoas que titularizam concessões e permissões de serviços públicos.

Por isso, situamo-nos entre aqueles que entendem que notários e registradoresnão são servidores públicos.Seguindo estritamente o disposto no art. 236 da nossa Carta Constitucional, entendemos que são pessoas privadas que, por delegação, exercem função pública. Pertencem à particular categoria de agentes públicos, denominada por muitos administrativistas departiculares em colaboração com a administração. Nessa categoria encontramos os particulares que exercem atividades públicas: porrequisição (por exemplo, jurados do Tribunal do Júri, recrutados para o serviço eleitoral obrigatório e membros das Mesas receptoras de votos em período eleitoral);sponte própria ougestores de negócios (os que diante da falta da atuação estatal assumem voluntariamente o exercício da função pública para atender a necessidades públicas prementes); por seremcontratados por locação civil de serviços(por exemplo, advogado contratado, por notória especialização, para a realização de parecer); e pordelegação de função pública.Como sabemos, nesta última espécie estão os concessionários e permissionários de serviços públicos, e também os notários e os registradores.

Donde se explicar a natural proximidade, mas não identidade, de situações que existem entre, de um lado, concessionários e permissionários de serviços públicos, e de outro, notários e registradores. Proximidade, mas repita-se, não identidade, uma vez que mantêm relações jurídicas distintas com o Poder Público. Como observado anteriormente, os primeiros exercem serviços públicos propriamente ditos. Já os segundos realizam apenas uma particular espécie de função administrativa[63].

Concluímos, portanto, que notários e registradores não são servidores públicos. Sãoagentes públicos, compreendidos na categoria departiculares em colaboração com a Administração, onde, em situações jurídicas distintas, convivem, lado a lado, com concessionários e permissionários de serviços públicos. Ao contrário destes, não exercemserviço público, mas apenas uma particular espécie defunção administrativa do Estado.

 

 

II. O REGIME JURIDICO DA ATIVIDADE NOTARIAL E REGISTRÁRIA

 

Firmada a premissa de que as atividades notariais e registrais devem ser compreendidas como espécies de função administrativa obrigatoriamente prestada de forma descentralizada por particulares[64], fica em muito facilitada a compreensão do regime jurídico
que,em nosso Direito, as disciplinam.

Embora o notário e o registrador sejam pessoas privadas, e a estrutura organizacional que montam para a realização de suas atividades também integre o mundo privado, a prestação da sua atividade, em si, e pela sua própria natureza, é submetida ao regime de Direito Público e aos seus princípios[65]. As normas que regulam a delegação, as que tratam da fiscalização dos serviços prestados e das sanções administrativas aos delegados impostas pelo inadequado exercício da sua atividade, são normas administrativas, e como tais devem ser compreendidas e analisadas em toda a sua complexidade[66].

Ao jurista não deve trazer nenhuma perplexidade esta observação. Pessoas privadas que são, notários e registradores, atuam nas suas relações organizacionais sob o manto da autonomia e da liberdade que caracteriza o seu mundo. Contratam diretamente, e com liberdade de escolha, os seus auxiliares, pelo regime trabalhista próprio das pessoas privadas (regime da CLT). Estão libertos do dever de licitar para celebrarem seus contratos, e não se vinculam às rígidas regras que disciplinam os orçamentos públicos, ou às normas de Direito Financeiro, quando planejam e fazem seus gastos e investimentos para o exercício da atividade estatal que lhes foi delegada. Seus contratos não são regidos pelo Direito Público, não podendo ser chamados em nenhuma hipótese de contratos administrativos, no sentido próprio e estrito do conceito.

Assim, no campo da sua atuaçãosubjetiva ou orgânica, são pessoas privadas comuns, que não sofrem os limites impostos aos órgãos públicos ou aos entes estatais que integram a denominada Administração Pública Direta e Indireta. Também não recebemna condição de sujeitos dotados de personalidade de direito privado e não integrados à estrutura estatal,as prerrogativas e os poderes próprios do mundo público. No âmbito da sua atuação subjetiva, como pessoas privadas e comuns que são, ficam longe da incidência dos princípios básicos que fundamentam o regime próprio do Direito Administrativo, isto é, dos denominados princípios dasupremacia dos interesses públicos e da indisponibilidade dos interesses públicos.

Por força do já exposto, porém, o mesmo não ocorrerá quanto à função administrativa que, mediante delegação estatal, exercem. Ao seu exercícioobjetivo se aplicarão os princípios próprios do mundo público, com todas as suas características e nuances[67]. Seus atos jurídicos, no exercício desta função praticados, serão atos administrativos e terão os atributos peculiares a estes, como, por exemplo, a própriapresunção de legitimidade.

A situação jurídica de notários e registradores, portanto, sob este aspecto, é análoga, mais uma vez, àquela que se apresenta para concessionários e permissionários de serviços públicos. São pessoas privadas, e no âmbito subjetivo da sua figuração e dos atos que lhes são próprios, serão submetidas ao regime de direito privado. Quando, porém, atuam no exercício da função administrativa que lhes foi delegada pelo Poder Público, têm seus atos submetidosin totum ao regime peculiar e próprio do Direito Administrativo.

Assim sendo, e considerando o objeto da presente Consulta, nos parece de imprescindível reflexão teórica, nesse momento, a análise da incidência dos princípios dalegalidade e doconcurso público na prestação da atividade notarial e registraria.

É o que faremos a seguir, em tópicos diferenciados.

 

 

II.1. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

 

Princípio fundamental nos modernos Estados de Direito, o princípio da legalidade tem uma presença central no exercício da função administrativa, na medida em que, por definição, como diria DIÓGENES GASPARINI “o princípio da legalidade significa estar a Administração Pública, em toda a sua atividade, presa aos mandamentos da lei, deles não se podendo afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor. Qualquer ação estatal sem o correspondente calço legal, ou que exceda ao âmbito demarcado pela lei, é injurídica e expõe-se à anulação. Seu campo de ação, como se vê, é bem menor que o do particular”.[68]

Deveras, o comando contido no art. 5º, II, da Constituição Federal, ao dizer que“ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”,conforme pacificamente reconhecem constitucionalistas e administrativistas, tem distinta aplicação no mundo público e privado. No privado, ele implica que as pessoas podem fazer tudo o que quiserem, com ampla lib
erdade, desde que a lei não as proíba, uma vez que aqui se entende quetudo que não é proibido é permitido.No público, a matéria se apresenta em formulação rigorosamente inversa. Nele, na qualidade de executor da lei, o administrador só pode fazer o que a lei autoriza, de modo que para eleo que não é permitido é proibido.

Este princípio, naturalmente, atinge não apenas a atuação de todos os órgãos e pessoas vinculados à Administração Pública, mas também a todos os que são chamados ao exercício da função administrativa, inclusive no exercício de atividades delegadas. É forçoso reconhecer, desse modo, como o fazem estudiosos pátrios e alienígenas, que “l´exercice de la fonction administrative est domine par le principe fondamental de la legalité. Ce principe signifie que les autorités administratives sont tenue, dans le décisions qu´elles prenent, de se conformer à la loi ou plus exactement à la légalité, cést-à-dire à un ensemble de régles de droit de ranges et de contenus divers, qui sont fonction, dans chaque cas, de la place et des competences de l´autorité administrative qui agit. (…) Ce principe concerne toutes les activités des autorités administratives…”[69](grifo nosso).

A ninguém deve causar surpresa ou dúvida, portanto, que o exercício da função notarial e registrária,sob todos os aspectos que disciplinam a sua prestação descentralizada e delegada a particulares, está condicionado integralmente peloprincípio da legalidade. Notários e registradores, no exercício das atividades que lhes foram delegadas nos termos do art. 236 da Constituição Federal,apenas receberão suas delegações dentro das condições e regras legalmente estabelecidas, e ainda, no exercício de suas competências, só poderão fazer aquilo que a lei os autorizar. Omodus da outorga das suas delegações, e suas competências, portanto, sempre serão definidos porlei. Se a lei fixa regras ou condições para a outorga da delegação da atividade notarial e registraria, desde que atendidos os pressupostos constitucionais vigentes, estas regras e condições deverão ser rigorosamente atendidas. Se a lei lhes atribui competência para a prática de certos atos terão odeverde realizá-los. Se os proíbe, ou se omite em autorizá-los,não devemrealizá-los[70].

Inteira razão assiste assim a CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO quando designa como“deveres-poderes” as competências administrativas, invertendo a clássica doutrina de SANTI ROMANO que preferia denominá-las“poderes-deveres”.Quando a lei determina que um administradordeve realizar um dado ato integrado à função administrativa do Estado, outorga explícita ou implicitamentepoderes para que tal seja realizado. Daí se falar em“dever-poder” para a sua prática. Dodever de executar a lei nasce opoder para a prática do ato administrativo, e para a decorrente busca da satisfação do interesse público que será sempre a sua finalidade maior[71]. E será por isso que, induvidosamente, se afirma que as competências administrativas são deexercício obrigatório, irrenunciáveis, intransferíveis, imodificáveis pela vontade do próprio titular e imprescritíveis[72].

Os notários e registradores, desse modo, têm odever-poder de prestar à coletividade,nos termos estritos das suas competências legalmente a eles outorgadas pela delegação estatal,a atividade objeto desta mesma delegação. Ao recebê-la em atendimento ao disposto na Constituição e na Lei, têm não só dever de realizá-la, mas também os decorrentes poderes necessários a esta realização. Afinal, como disse PAUL BENOITce regime d´inégalité qu’organize le droit administratif est un véritable regime de droit parce que tant les compétences que les obligations propres de l’Administration sont exercées est assumées conformément à des régles générales posées soit directement par les constitutions elles-mêmes, soit par le lois et les décrets selon les modalités prévues par les constitutions.C´est là ce que l’on apelle le ´principe de la légalité´ que domine toute l’action administrative.(…) Le principe de la légalité s’aplique tout d’abord aux compétences propres des autorités administratives”.[73]

Aliás, pondere-se, o cumprimento da lei é a razão primeira e última do exercício da função notarial e de registro. É alei impõe a sua outorga, nos termos e condições que determina, aos delegados. É alei que define os limites dos seus deveres e dos seus poderes no exercício da atividade delegada. É alei que se busca satisfazer, como umfim, na sua prestação.

Por isso se explica que, ao apontarem os estudiosos do Direito Notarial os princípios específicos que regem a atividade que é peculiar a este campo do Direito, relacionam diretivas normativas que, via de regra, são apenas meros desdobramentos do princípio da legalidade.

É o caso, por exemplo, dos princípios dajuridicidadee dacautelaridade, tão bem analisados por LEONARDO BRANDELLI em sua monografiaTeoria Geral do Direito Notarial[74].

Ao ver desse estudioso, o princípio dajuridicidade se manifestaria como específico e próprio do Direito Notarial, na medida em que aponta aos notários dois caminhos que deveriam ser por eles percorridos. O primeiro seria o que denomina de“polícia jurídica notarial”, por ser odever-poder que tem o notário de analisar“a conformidade do direito dos atos que realiza”.O segundo seria odever-poder que tem o notário de moldar“juridicamente o desígnio das partes, devendo adequá-lo ao direito”.E a este último aspecto acrescenta:“o notário não pode ser o sustentáculo de ilicitudes. Nos atos que preside, deve verificar a sua conformidade ao direito, rechaçando os atos que sejam contrários ao ordenamento jurídico. Estes, ou deverão ser reformulados, caso seja possível, ou não deverão ser realizados”[75].

Sob idêntica consideração deverá ser analisado oprincípio da cautelaridade. Como o notário molda juridicamente negócios privados com o objetivo de que se enquadrem no sistema jurídico vigente, no exercício regular de sua função,“adianta-se a prevenir e precaver os riscos que a incerteza jurídica possa acarretar a seus clientes”[76].Visa assim esta particular espécie de agente público, dando segurança e certeza ao cumprimento da lei, impedir o surgimento de conflitos de interesses, e em decorrência, de lides futuras.

Também no campo do que poderia ser denominado“Direito Registral”[77] observaremos situação idêntica. Afirmam os estudiosos que no seu âmbito“o princípio da legalidade funda-se na tarefa da qualificação, incumbindo ao registrador o controle do documento apresentado ao registro, a fim de averiguar se reúne os requisitos legais necessários para lograr a inscrição pretendida”[78]

Vê-se por estas rápidas referências exemplificativas, assim, a dimensão maior que ocupa o princípio da legalidade no exercício da função notarial e de registro. Recebendo a sua competência legal, o notário e o registrador, a exemplo do que ocorre com os órgãos e pessoas da Administração Pública direta e indireta, devem apreciar sempre a adequação dos seus atos à lei, não tendo liberdade para atuar na sua desconformidade ou na sua omissão. De outro lado, tem por missão fazer com que os atos do mundo privado que lhes são submetidos atendamin totumao que nela resta estabelecido. A lei é seu ponto de partida, sua rota, e seu ponto de chegada.

Lei, função notarial e registral, portanto, são realidades indissociáveis. Tudo na prestação delegada desta função gira em torno da mais estrita legalidade. A suaontologia é de execução da leifunção administrativa). A suadelegaçãoa particulares éimposta por lei (art. 236 da Constituição Federal). A definição das suascompetências édefinida por lei (art. 236, §1º, da C.F., e legislação ordinária
). A suaprestaçãoem si é voltada teleologicamente aocumprimento da lei (atividade que molda os atos privados paraadequá-los à lei, no caso dos notários, e para lhes atribuir a necessária publicidadeexigida por lei, no caso dos registradores). A suafiscalização pelo Poder Judiciário se realiza ao amparo do queestabelece e delimita a lei (art. 236, §1º, da C.F., e legislação ordinária). Finalmente, a sua própria remuneração pela percepção dos emolumentos que lhes são pagos éfixada por lei (art. 236, § 2º, da C.F., e legislação pertinente).

Feitas estas considerações, uma importante conclusão deve ser firmada, desde já, com reflexos importantes para a análise do objeto da presente consulta. É a conclusão de que, em síntese firmada a partir de tudo o que resta exposto nesse tópico,a lei deve reger, sob todos os aspectos, a investidura (outorga da delegação) e a competência de notários e de registradores no exercício das funções que lhes são delegadas. A vontade dos órgãos que exercem a fiscalização dos seus atos (Poder Judiciário), a praxe, o querer privado destes particulares que atuam em colaboração com a Administração, em si e por si próprios, não podem inovar ou mesmo acrescentar qualquer elemento na configuração jurídica dos pressupostos exigidos para a outorga das suas delegações, ou para o exercício de seus peculiares“deveres-poderes”. É a lei quem define e delimita o processo de outorga da sua delegação e o exercício das suas atribuições gerais e específicas.

Naturalmente, será dentro desta perspectiva jurídica que deveremos considerar o procedimento de delegação e a realização da função administrativa de notários e a registradores. A Constituição Federal e a legislação que disciplina o art. 236 desta Carta serão os trilhos dos quais não poderá se desgarrar, a qualquer título, a investidura e o exercício funcional desta particular espécie de agentes públicos.

 

 

II.2. O PRINCÍPIO DO CONCURSO PÚBLICO

 

Como uma decorrência direta dos princípios gerais que devem disciplinar a atuação da Administração Pública e o exercício da função administrativa do Estado, consagrou o texto da nossa Lei Maior oprincípio do concurso público para o acesso a cargos e empregos públicos, e para o exercício da função notarial e de registro. Com efeito, partindo do pressuposto de que a função administrativa deve em todos os aspectos obedecer aos princípios daisonomia,impessoalidade,moralidade eeficiência[79], estabelecem, respectivamente, os artigos 37, II, e 236, § 3º, da Constituição Federal, que:

 

“art. 37. (…)

II. a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia emconcurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” (grifo nosso).

 

“art. 236. (…)

§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende deconcurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura deconcurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses (grifos nossos).

 

Desse modo, exige a nossa ordem jurídica que a ocupação de cargos e empregos públicos, bem como que o exercício da atividade notarial e de registro, seja realizado,em regra, por pessoas selecionadas por critérios objetivos de capacitação. Determina, assim, que se promova um adequado procedimento administrativo, aberto a todos, e realizado entre quaisquer interessados que atendam às exigências legalmente estabelecidas para o exercício da atividade funcional, objetivando a escolha de quem poderá ser provido no cargo, contratado no emprego, ou beneficiário da delegação para o exercício da função públicaem questão. Deveras, como ensina magistralmente ADILSON DE ABREU DALLARI, oconcurso público é um“procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados”[80]. É, portanto, um conjunto de atos administrativos que se destina a uma escolha isonômica e impessoal da pessoa que de modo objetivo melhor comprove a sua capacitação para o exercício de uma determinada competência administrativa. Força com isso o atendimento de padrões de estrita moralidade na escolha das pessoas que irão exercer atividades públicas, gerando maior eficiência na execução da lei e na prestação de serviços públicos[81].

Impende observar, todavia, que a expressão“concurso público” envolve a conjugação de duas palavras que claramente definem a essência do seu significado jurídico. A palavra“concurso” designa a idéia de um procedimento destinado a uma competição entre pessoas interessadas em um dado resultado ou benefício, e que, na conformidade de regras isonômicas preestabelecidas, será decidido por um critério impessoal que apontará, dentre os competidores, o vencedor. Já a palavra“público” representa umacréscimo qualificador à idéia de “concurso“.

Não é difícil perceber, pois, que umconcurso, enquanto procedimento destinado à escolha entre interessados que competem entre si para a obtenção de um cargo, de um emprego ou de uma delegação de função pública, pode serpúblico ou não. Serápúblico quandoaberto a toda a coletividade, admitida a possibilidade de fixação de critérios mínimos e gerais tidos como indispensáveis para o bom exercício da atividade. Não será públicoquando, aberto apenas entre a uma categoria predefinida e individualizada de pessoas, veda-se o acesso àqueles que não pertencem a esse restrito conjunto de cidadãos, mesmo que, eventualmente, possam vir a atender aos critérios mínimos exigidos para o bom exercício da atividade disputada.

Assim, por exemplo, será umconcurso “público” para o provimento de cargos de médicos, o procedimento seletivo aberto paratoda a coletividade, que tenha como requisito mínimo estabelecido para a participação na competição, a exigência de que os interessados demonstrem ter concluído curso superior de medicina, e exercido a profissão de médico durante um determinado período mínimo de tempo. Ao revés, será apenas um “concurso”,ou uma mera “seleção competitiva restrita ou interna“, o procedimento seletivo que, realizado para provimento de cargos de médico, seja aberto, apenas, entre servidores públicos providos em cargos de auxiliares de enfermagem e que sejam médicos. Nesse último caso, naturalmente, faltará a esteconcurso a dimensão deuniversalidade ou degeneralidade que é própria apenas dos concursos “públicos”.

Vêm a calhar as palavras sempre bem postas e iluminadas, da Ministra de nosso Supremo Tribunal Federal, CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, quando, em festejada monografia, sintetiza pensamento pacificamente aceito pela doutrina e pela jurisprudência ao afirmar que o“concurso público não se confunde nem se cumpre por seleção interna. Esta é a modalidade de avaliação e de escolha adstrita a servidores que compõem os quadros da Administração Pública ou os cargos de determinada carreira”. (…) “Há que ser ressaltada essa distinção entre concurso público – que é o processo constitucionalmente estabelecido para a escolha do melhor candidato a investir-se em cargo público – e o processo interno à Administração Pública e circunscrito aos servidores que a compõem e que se denomina “seleção competitiva interna'”[82].

De outras citações doutrinárias ou jurisprudenciais não necessitamos para a fundamentação desta constatação, em face da sua notória e indiscutível obviedade. Umconcurso público sempre terá a dimensão deuniversalidade, degeneralidade, deabertura ampla para toda a coletividade. Umconcurso que não se reveste desta condição, e limita a sua convocação e abrangência apenas para uma categoria predeterminada e individualizada de agentes públicos preestabelecida, jamais terá a qualificação jurídica de“público”. Será apenas um procedimento seletivo restrito ou interno, ou umconcurso de participação limitada, em que por critérios objetivos se buscará encontrar, dentre o restrito universo de eventuais competidores, os vencedores.

Firmadas estas premissas, passemos a analisar a imposição constitucional de realização de “concursos públicos” para o provimento de cargos públicos ou para a contratação de empregos públicos. Em tópico posterior desta manifestação opinativa analisaremos o problema do concurso público para a outorga da delegação para o exercício da atividade notarial e de registro.

No campo dos servidores públicos, ou mais propriamente da acessibilidade aos cargos e empregos públicos, oprincípio do concurso público, como já referido e retratado acima, foi afirmado com grande rigor pelo texto do artigo 37, II, da nossa vigente Constituição. Rigor, aliás, superior ao que permeava o texto da nossa antiga Constituição.

Deveras, o artigo 97, § 1º, da Constituição antecedente[83], ao disciplinar este mesmo princípio determinava que“aprimeirainvestidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei”(grifo nosso).

Como se observa, ao contrário do disposto no texto constitucional vigente, além de ser limitada esta regra unicamente a acessibilidade de cargos públicos, na medida em que não fazia qualquer menção aos “empregos públicos“, afirmava que apenas a “primeira investidura” dependia de concurso público. Ficavam, assim, irrestritamente liberadas desta exigência, pela Constituição de 1967, as denomin
adas “investiduras derivadas”, e se admitia implicitamente, com isso, a adoção de outros critérios, a serem estabelecidos por lei, para que estas investiduras fossem validamente realizadas. Apenasas primeiras investiduras, ou seja, asinvestiduras originárias ou autônomas, é que exigiam que o provimento do cargo fosse antecedido de prévio concurso público de provas ou de provas e títulos[84].

A Constituição de 1988 foi, porém, mais rigorosa. Estabeleceu, conforme se depreende da imediata leitura do seu texto que “a investidura” depende de aprovação em concurso público. Ou seja: determinou que, em princípio, todas as formas de investidura – as originárias e as derivadas – dependem de concurso público.

Aliás, dignos de serem aqui lembrados são os dizeres do saudoso constitucionalista CELSO BASTOS com quem tivemos a oportunidade e o privilégio de conviver na academia e na vida profissional. Afirmou o mestre que“a atual Constituição utiliza a expressão investidura para designar o ato de preenchimento do cargo ou emprego público. Não se fala mais, como ocorreu no passado, em primeira investidura para deixar certo que se cuida de todas as hipóteses em que se dá condição de ingresso no quadro de servidores públicos. Com esta ênfase na mera investidura, excluindo, pois, a referência tão-somente à primeira investidura, o Texto Constitucional quis, sem dúvida nenhuma, repudiar aquelas modalidades de desvirtuamento da Constituição anterior criadas por práticas administrativas, muitas vezes até com abono jurisprudencial, que acabavam por costear o espírito do preceito”[85].

Com isso não se quer dizer, naturalmente, que ao adotar o princípio do concurso público para a investidura em cargos e empregos públicos, o legislador constitucional não abriu nenhum tipo de exceção.Várias exceções, explícitas ou implícitas, foram abertas pela própria Constituição a este principio. Desta forma, em diversos casos excepcionais, tanto em algumas formas de investiduras originárias como de derivadas, o provimento do cargo pode ainda, nos dias atuais, vir a ser,legitimamente e em total consonância com o nosso direito positivo, realizadosem concurso público. Necessidades administrativas e a total compatibilidade destas hipóteses com os princípios daisonomia,impessoalidade,moralidade eeficiência, determinaram a admissibilidade destas situações no texto da nossa lei maior.

No que concerne às exceções abertas em relação aos provimentos geradores deinvestiduras originárias, bem ensina o ilustre Professor JOSÉ EDUARDO MARTINS CARDOZO que, em acréscimo à exceção estabelecida no próprio art. 37, II, para provimento, sem concurso público, dos cargos“em comissão”, declarados“em lei de livre nomeação e exoneração”, também devem ser citadas as seguintes hipóteses expressamente previstas no texto constitucional:

 

“a. a admissão de pessoal, estabelecida em lei, nos casos de ‘contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público'(art. 37, IX, da CF);

b. o provimento de cargos vitalícios de Ministros ou Conselheiros dos Tribunais de Contas (art. 73, § 2º, c/c. art. 84, XV e art. 75, todos da CF);

c. o provimento de cargos de Ministro do Supremo Tribunal Federal (art. 101, da CF);

d. o provimento de cargos de magistrados nos Tribunais Superiores (STJ, art. 104; TST, art. 111, § 1º, e STM, art. 123, todos da CF);

e. 1/5 dos cargos de magistrados de segunda instância (art. 94 da CF);

f. o provimento de certos cargos de Ministros do TSE (art. 119 da CF) e de juiz do TER (art. 120 da CF);

g. casos excepcionais em que as empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) exploradoras de atividade econômica estejam liberadas deste dever em decorrência de que a exigência de concurso público frustraria ‘a necessidade de uma situação expedita inerente ao cumprimento de seus fins e requerida pelas circunstâncias do momento’ ou implicaria na perda da possibilidade de ‘admitir pessoal qualificado que não se interessaria em disputar concursos, por ser de pronto absorvido pela demanda do mercado'(interpretação decorrente da análise sistemática dos arts. 37, II, e 173, § 1º, II, da CF);

h. aproveitamento no serviço público do ‘ex-combatente que tenha efetivamente participado de operações bélicas, durante a Segunda Guerra Mundial, nos termos da Lei n. 5.315, de 12 de setembro de1967″ (art. 53, I, do ADCT da CF)”.

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Muitas são, portanto, mesmo no âmbito dos provimentos iniciais ou autônomos, as exceções estabelecidas, pela nossa lei maior, ao princípio do concurso público consagrado no art. 37, II, do seu próprio texto.

Já no que concerne aos provimentos geradores de investidurasderivadas, é igualmente elucidativa a lição de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO. Diz a ilustre administrativista, ao comentar o art. 37, II, da Constituição Federal que“o dispositivo trouxe algumas inovações quando comparado com o art. 97, § 1º,
da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de1969”. Após afirmar que “enquanto a norma anterior exigia concurso apenas para investidura em cargo público, a atual impõe a mesma exigência para cargo e emprego; só não faz referência à função, porque deixou em aberto a possibilidade de contratação para serviços temporários (art 37, IX) e para funções de confiança (art. 37, V), ambas as hipóteses sem concurso”,
também pondera a mesma autora que“enquanto o dispositivo anterior fazia exigência para a primeira investidura, o atual fala apenas em investidura, o que inclui tanto os provimentos originários como os derivados, somente sendo admissíveis as exceções previstas na própria Constituição, a saber, a reintegração, o aproveitamento, a recondução e o acesso ou remoção, além da reversão ex officio que não tem base constitucional, mais ainda prevalece pela razão adiante exposta”[86]
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Parece, claro, assim, que o legislador constitucional, a exemplo do que fez com as investiduras originárias,não fechou totalmente as portas para que algumas situações de investidura derivada pudessem ser legitimamente realizadas sem concurso público.

Nesse sentido, aliás, tem sido torrencial a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Todas e quaisquer formas de investiduras derivadas afirmadas sem qualquer lastro constitucional explícito ou implícito passaram a ser tidas como inconstitucionais[87]. Dentre estas, cumpre destacar a denominadatransposição ou ascensão que, por permitir que um servidor passasse para cargo de conteúdo ocupacional diverso daquele para o qual havia sido provido por meio de concurso público, veio a ser tido como uma forma de provimento que implicava em clara violação da regra consagrada no art. 37, II, da Constituição Federal[88].

Merecem destaque, a propósito, os seguintes julgados de nossa Corte Suprema:

 

“Servidor Público. Ingressoem outra carreira sem o concurso público exigido pelo art. 37, II, da Constituição Federal. Esta Corte, a partir do julgamento da ADIn n. 231, firmou o entendimento de que, em face do art. 37,II, da Constituição Federal,estão banidas das formas de investidura admitidas pela Carta em vigor as formas de ingresso, sem concurso, em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso. Recurso extraordinário conhecido e provido (RE n. 1.637/11-1, rel. Min. Moreira Alves, informativo STF. N. 37)

 

“Não mais restrita a exigência constitucional à primeira investidura em cargo público,tornou-se inviável toda a forma de provimento derivado de servidor público em cargo diverso do que detém, com a única ressalva da promoção, que pressupõe cargo da mesma carreira; inadmissibilidade de enquadramento do servidor em cargo diverso daquele de que é titular, ainda quando fundado em desvio de função iniciado antes da Constituição. Votação: unânime. Resultado: conhecido e provido. Indexação. AD2549, servidor público, enquadramento, carreira diversa, concurso público, ausência, alegação, desvio de função, inconstitucionalidade (RE n. 209.174/ES, rel.Min Sepúlveda Pertence)

 

“O critério do mérito é aferível por concurso público de provas e títulos e, no atual sistema constitucional, indispensável para o cargo ou emprego isolado ou de carreira. Para o isolado, em qualquer hipótese: para o de carreira, só se fará na classe inicial e pelo concurso de provas e títulos, não o sendo, porém, para os cargos subseqüentes que nela se escalonam até seu final, pois, para estes, a investidura se dará pela forma de provimento que é a promoção.Estão banidas, pois, as formas de investidura antes admitidas – ascenção e transferência -, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso. O preceito constitucional inserto no art. 37, II, não permite o aproveitamento, uma vez que nesse caso, há igualmente o ingresso em outra carreira, sem o concurso público exigido(…)

(ADIn n. 402-6/DF, rel.Min. Moreira Alves, DJU de 24.5.2001, p. 24 – RTJ 165/684)

 

“O ingresso em cargo isolado ou cargo inicial de certa carreira deve dar-se obrigatoriamente por concurso público à vista do que dispõe o art. 37, II, da Constituição Federal, com a ressalva dos cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração. O Supremo já proclamou, em mais de um juízo plenário,a inconstitucionalidade da ascenção funcional enquanto forma de ingresso em carreira diversa daquela que o servidor público começou por concurso“.

 

“A investidura em cargos ou empregos públicos depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos,não havendo possibilidade de edição de lei que, mediante agrupamento de carreiras, opere transformações em cargos, permitindo que os ocupantes dos cargos originários fossem investidos nos cargos emergentes, de carreira diversa daquela para a qual ingressaram no serviço público, sem concurso público.ADIn n. 231-RJ (RTJ 144/24) (Pleno, Adin n. 1030/SC, rel.Min Carlos Velloso, j. em 22.8.19196 (Informativo STF n. 41)</o:p >

 

Esta pacificada posição jurisprudencial ensejou a edição da Súmula n. 685, pelo próprio STF, que estabelece:

 

É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido

 

Podemos concluir, portanto, que o princípio do concurso público, embora adotado com grande rigor para a acessibilidade de cargos e empregos públicos, encontra várias exceções expressa ou implicitamente admitidas pelo texto da Constituição de 1988. Uma delas, que nos interessa ressaltar pela própria análise que mais tarde aqui se fará, é a que decorre do provimento porpromoção (ou acesso em certas leis da nossa Federação). Pensando no estímulo funcional do servidor, na sua progressão, e no bom exercício de competências administrativas mais complexas por aqueles que acumularam experiências funcionais anteriores, admitiu o legislador constitucional a existência de carreiras (conjunto de série de classes de cargos escalonada em decorrência do grau de responsabilidade e do nível de complexidade das atribuições funcionais). É que determina o próprio art. 39, § 1º, I, da Constituição Federal[89] ao estabelecer que“a fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará (…) a natureza, o grau de responsabilidadedos cargos componentes de cada carreira“.

Note-se que seria inadmissível a existência de uma “carreira” na Administração Pública, se os servidores não pudessem ser investidos nos cargos superioressem concurso público. Deveras, conforme já salientado acima, um concurso é “públicoapenas quando é aberto entrequaisquer interessados que atendam às condições legalmente estabelecidas pela lei para a ocupação do cargo. Um procedimento seletivo realizado apenasentre servidores, como visto, até poderá adequadamente ser conceituado como umconcurso, mas não será jamais um “concurso público”.

Por isso, ao admitir a possibilidade de que os cargos públicos podem ser integrados em carreiras, de modo a que apenas servidores que ocupavam cargos inferiores possam ser providos nos cargos superiores, numa perspectiva de evolução funcional posta dentro do mesmo campo de atribuições, o legislador constitucional admitiu implicitamente a possibilidade de uma forma de provimento derivado: apromoção ou o acesso. Esta forma de provimento pressupõe, naturalmente, que a investidura no cargo superior dependa da anterior relação daquele que será provido com a unidade de competência (cargo) escalonada em nível inferior.

Todavia, devemos ponderar que, como as carreiras sempre são definidasdentro do mesmo campo de atribuição funcional, a evolução constitucionalmente admitida foi estritamente esta. O provimento de servidores em cargos superiores deatribuição diversa daquele cargo que originariamente ocupa, sem realização de novo concurso público, foi tido como inconstitucional (ascensão ou transposição). De fato, nenhuma regra constitucional existe, implícita ou implicitamente, a amparar esta possibilidade.

Na verdade, a lógica de que partiu o legislador constitucional foi muito clara. Uma vez que no sistema que estabelece a nossa Constituição o ingresso no nível mais baixo das carreiras se dá por concurso público, se pressupõe que o provido em cargo ou contratado em emprego público, por ter prestado e sido aprovado nesse procedimento seletivo amplo para o exercício das suas atribuições funcionais, seja efetivamente capacitado para progredir e exercer competências mais complexas, desde que, claro, tenham estas uma relação de pertinência com aquele mesmo campo de atribuições. Deveras, o fato de alguém ser habilitado para um determinado campo de atividades funcionais (auxiliar de jardinagem, por exemplo), em nada autoriza que se deduza que esteja capacitado para exercer outro campo distinto de competências administrativas (ser advogado público, por exemplo). Admitir-se tal possibilidade será dar-se preferência indevida a alguém que não passou por um concurso público e não demonstrou sua capacitação para aquele campo de atividades, pelo simples fato de ter sido aprovado em outro procedimento seletivo público que avaliava diferentes aptidões ou diferente habilitação. Seria agir em detrimento daqueles que, na sociedade, podem vir desempenhar melhor as funções públicas, e favorecer, com acentuada dose de imoralidade, aqueles que, pelo mero fato de serem servidores públicos providos por concurso público em outras áreas, passaram a ter uma não isonômica reserva de mercado, para galgar novos postos públicos de natureza distinta daquelas para as quais tinham demonstrado capacitação objetiva para exercer.

Esta foi, induvidosamente, a premissa de que partiu o nosso legislador constitucional, ao vedar, em regra, no art. 37, II, a admissibilidade de todas e quaisquer formas de investidura derivada que não estivessem implicitamente previstas no texto constitucional.

Temos, pois, que para o acesso a cargos e empregos públicos, o princípio do concurso público foi estabelecido de formarígida (em análise comparativa com as Constituições anteriores), mas nãoabsoluta. Há exceções que, em plena compatibilidade com os princípios da Administração Pública, podem ensejar investiduras originárias e derivadas advindas de provimentos que não exigem, legitimamente, a realização prévia de concursos públicos de provas ou de provas e títulos.

Por fim, impende observar que para a realização de concursos públicos para provimento de cargos ou contratação de empregos públicos, o art. 37, II, da Constituição Federal admite que este procedimento administrativo possa ser realizado por meio de duas modalidades distintas. São estas: a modalidade de“provas” ou a modalidade de“provas e títulos”.

Naturalmente, a escolha destas modalidades dependerá uma decisãodiscricionária da administração. Contudo, como afirmam REINALDO MOREIRA BRUO e MANOLO DEL OMO, no caso,“o exercício da discricionariedade deverá ser realizado em atendimento ao princípio da razoabilidade, ou seja, a escolha pela realização do concurso de provas e títulos deve estar reservada a cargos que tenham atribuições de natureza mais complexa, e quanto mais titulado o futuro titular, maior eficiência será alcançada”[90]

 

 

III. O ART. 236 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A LEI Nº 8.935/94

 

III.1. ASPECTOS PRELIMINARES

 

Será dentro do quadro de referência teórico e principiológico desenvolvido nos tópicos acima que deveremos analisar não só o art. 236 da Constituição Federal, mas como também toda a legislação que o regulamenta.

Buscando implementar as inovações estabelecidas pela nossa Lei Maior no exercício das funções administrativas delegadas a notários e a registradores, em 18 de novembro de 1994, entrou em vigor a Lei nº 8.935 que ficou conhecida como “lei dos notários e dos registradores”.Após longo processo de elaboração, e fundada na competência da União para legislar sobre registros públicos (art. 22, XXV, da Constituição Federal), cuidou este estatuto de definir o que denominou“serviços notariais e de registro”, osprofissionaisque podem exercê-los (arts. 1º a 3º),as condições da sua prestação (arts. 4º e 8º), e ainda as suascompetências (arts. 5º a 12). Disciplinou oingresso na atividade notarial e de registro (arts.14 a 19), osprepostos (arts. 20 e 21), asincompatibilidades e impedimentos no exercício da função (arts.25 a 27), osdireitos e deveres (arts.28 a 30), e asinfrações disciplinares a que estão sujeitos notários e registradores. Finalmente, regulou ainda afiscalização dessa atividade pelo Poder Judiciário (arts. 37 e 38), as formas deextinção da delegação(art. 39), e aseguridade social de notários, oficiais de registro, escreventes e auxiliares (art. 40).

Assim, como se pode constatar, ao abrigo do mandamento contido no art. 236 da Constituição Federal, a“lei dos notários e dos registradores”veio a regrar a essência da organização e da prestação da particular espécie de função administrativa a estes agentes públicos delegada. É bem verdade que outras leis, anteriores e posteriores ao início da sua vigência (como a Lei nº 6.015/73, que disciplina os registros públicos, e a Lei nº 9.492/97, que define a competência e regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de dívida), com ela mantêm intenso relacionamento no regramento e na disciplina do seu objeto. Contudo, indubitavelmente, é a Lei nº 8.935/94 o principal diploma legislativo que rege a matéria, qualificando-se como o alicerce orgânico e material a partir do qual será estruturada e definida a atividade de notários e registradores. Não é superior, e nem poderia ser, aos outros atos legislativos editados pela União acerca da mesma matéria, mas, naquilo que não foi alterada por leis posteriores, é o estatuto normativo que ilumina a compreensão de tudo o que se faz no exercício desta função administrativa delegada.

De início, cumpre ponderar que a Lei nº 8.935/94 procurou firmar uma distinção entrenotários e registradores, acolhendo vertente doutrinária há muito desenvolvida[91].

Costumam ensinar os estudiosos do Direito Notarial que oserviço notarial é a“atividade de redigir, formalizar e autenticar, com fé pública, instrumentos que consubstanciam atos jurídicos extrajudiciais do interesse dos solicitantes”[92]. Desse modo, como bem ponderou JOSÉ MARIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO“em atos jurídicos solenes concentram-se as funções do Notário. Quando escreve em seu livro de notas, está o Tabelião elaborando atos jurídicos, enquadrados nas categorias previstas no Código Civil”[93].Afinal, “o notário escreve ou formula os termos ou instrumentos, geralmente chamados de escritu
ras, segundo os dados ou apontamentos (notas) fornecidos pelos interessados. Mas é de sua obrigação enquadrar os atos na forma legal, seguindo as regras e exigências instituídas pela lei, a fim de que os mesmos atos ou contratos não possam ser inquinados de irregulares. (…) Seus escritos, tidos como documentos públicos ou instrumentos públicos, são reconhecidos como documentos autênticos, pois que o notariado ou as funções de notário são tidas como de caráter público ou de fé pública, valendo, salvo casos excepcionais, como prova plena”[94].

Já o serviço de registro ou registral, por sua vez, não tem em si a finalidade de elaboração de atos jurídicos, mas o de proceder a um “assentamento de título de interesse privado ou público para garantir a oponibilidade a todos os terceiros, com a publicidade que lhes é inerente.”[95]. O assentamento de um fato juridicamente relevante[96], com a outorga de publicidade para conhecimento de terceiros, sem dúvida, é o objeto nuclear e fundamental da definição da função registral. Confirmando esta compreensão, ensina WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO acerca do registro, que “ele fornece meios probatórios fidedignos, cuja base primordial descansa na publicidade que lhe é imanente. Essa publicidade de que se reveste o registro tem função específica: provar a situação jurídica do registrado e torná-la conhecida de terceiros[97].

Partindo desta distinção, a Lei nº 8.935/94 relacionou no seu art. 5º as diferentes espécies denotários e deregistradores, denominando os primeiros de“tabeliães”, e os segundos de “oficiais de registro”. São estes os seus dizeres,in verbis:

 

“Art. 5º. Os titulares de serviços notariais e de registro são os:

I – tabeliães de notas;

II – tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos;

III – Tabeliães de Protesto de Títulos;

IV – oficiais de registro de imóveis;

V – Oficiais de Registro de Títulos e Documentos e civis das pessoas jurídicas;

VI – oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas;

VII – oficiais de registro de distribuição.”

 

Note-se, portanto, que entre os titulares de serviços notariais estão relacionados os “Tabeliães de Notas” (inciso I) e os “Tabeliães de Protesto de Títulos” (inciso III). Por sua vez, dentre os titulares de serviço de registro estão os“Oficiais de Registro de Imóveis” (inciso IV), os“Oficiais de Registro de Títulos e Documentos e Civis das Pessoas Jurídicas”(inciso V), os “Oficiais de Registro Civis das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas”(inciso VI), e finalmente os“Oficiais de Registro de Distribuição” (inciso VII). Em uma categoria híbrida que congrega e conjuga a atividade notarial e de registro temos os“Tabeliães e Oficiais de Registro de Contratos Marítimos”(inciso II).

Há que se observar, contudo, que embora tenha a nossa lei designado o serviço de protesto de títulos como uma atividade de natureza“notarial”, muitos autores, não sem razão, têm reconhecido um forte componente“registral” em suas atividades. Ainda que o protesto seja o“ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento da obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”, lavrado pelo agente público competente e, portanto, de naturezanotarial, na medida em que por ele se atesta e certifica formalmente, a pedido de alguém, uma dada situação jurídica para fins probatórios[98], ele também não deixa de apresentar um indiscutível componenteregistral. Deveras, não se pode negar a dimensão depublicidade frente a terceiros que o ato de protesto possui. Nos dias atuais o protesto se apresenta como uma verdadeira coerção, um constrangimento moral imposto ao inadimplente, cujos efeitos, por óbvio, ultrapassam em muito a dimensão negocial do título protestado. Como ensinou PONTES DE MIRANDA,“pelo protesto, dá-se conhecimento ao público do que acontece a título cuja vocação é caminhar, atando a si pessoas que talvez não se conheçam, mas talvez se tenham ligado à mesma sorte. Em relação ao próprio obrigado principal, o protesto ameaça-o de lhe desonrar o título cambiário e, pois, a firma. As conseqüências extracambiárias são conhecidas”[99].

Donde afirmar, em compreensão com a qual concordamos integralmente, MAURO GRINBERG que o protesto é “um ato misto notarial/registral; é notarial pois quem o pratica exerce atividade pública não estatal, portanto notarial, mas com função de publicidade, logo registral[100]. A função exercida pelo Tabelião de Protesto de Títulos, por conseguinte, é híbrida[101]. Qualificada pela leia priori como notarial, não deixa de possuir também uma forte dimensão registral pela dimensão que sua publicidade propicia quanto aos efeitos pejorativos e de advertência que projeta perante a coletividade.

Dito isso, e considerando o específico objeto da presente Consulta, passemos a abordar, de imediato e de modo mais detalhado, as questões específicas apresentadas pelo Consulente quanto ao provimento de vagas por remoção, na conformidade do estabelecido nos artigos 236, § 3.º, da Constituição Federal e 16 da Lei n.º 8.935/94, com a redação que a este último dispositivo foi dada pela Lei n.º 10.506/02.

 

 

 

III.2. O ART. 236, § 3º, da CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O PRINCÍPIO DO CONCURSO PÚBLICO

 

Conforme já salientado anteriormente, a exemplo do que determina o artigo 37, II, da Constituição Federal, para o acesso a cargos e empregos públicos, o art. 236 da mesma Carta Constitucional também adota o princípio do concurso público para“o ingresso na atividade notarial e de registro”.Na conformidade do que estabelece o § 3º deste dispositivo constitucional“o ingresso na atividade notarial e de registro depende deconcurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem a abertura deconcurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses” (grifo nosso).

A redação deste mandamento firmado pela nossa lei maior tem ensejado grande polêmica. Da sua imediata exegese, induvidosamente, resulta claro que qualquer pessoa, para“ingressar” na atividade notarial ou de registro, precisa ser aprovada em“concurso público” na modalidade de“provas e títulos”. Todavia, e após o“ingresso na atividade notarial e de registro”, qual será a formatação que deverá ter o“concurso” para a remoção? Será obrigatoriamente um concurso de“provas e títulos”? Poderá ser um concurso só de“provas”, ou só de“títulos”? A Constituição Federal já predetermina ummodus específico de realização desse procedimento, ou possibilita que o legislador ordinário o faça? Este é o ponto central da discussão que motiva a presente Consulta. E, em face da sua natural complexidade, precisa ser analisado com devido cuidado e detença.

Inicialmente, temos por necessário ponderar que toda a análise exegética da regra contida no art. 236 deva partir das já assentadas premissas acerca da natureza jurídica atribuída, no direito positivo brasileiro, à atividade notarial e de registro. Já vimos que esta atividade é espécie do gênerofunção administrativa do Estado, e que deve ser exercida, via e regra, mediante delegação do Poder Público aparticulares. Também já vimos que notários e registradores não são“servidores públicos”,mas autênticosagentes públicos que devem ser classificados na categoria de“particulares em colaboração com a Administração”. Finalmente, cumpre relembrar ainda que, conforme já ponderado, notários e registradores devem ser qualificados como uma categoria específica, inteiramente distinta dosconcessionários e permissionários de serviços públicos,apesar destes últimos também integrarem a categoria de particulares em colaboração com a Administração.

Os notários e os registradores constituem, de acordo com tudo aquilo que já restou afirmado neste estudo, uma categoriasui generis de agentes públicos que sempre deverá ser compreendida e analisada dentro das suas próprias especificidades e particularidades. Possui aspectos semelhantes à categoria dos servidores públicos, porque a delegação estatal que os investe no exercício da competência administrativa se dá, por concurso público, e em relação a pessoas físicas que exercem em seu nome próprio a função. Possui aspectos semelhantes aos concessionários e permissionários de serviços públicos porque também não são remunerados diretamente pelos cofres públicos, e não estão submetidos à relação de subordinação característica a que estão submetidos os servidores públicos (poder hierárquico). De outro lado, como já observado anteriormente, possuem também os notários e dos registradores, aspectos que os diferenciam tanto da categoria dos servidores públicos, como da categoria dos concessionários e dos permissionários de serviços públicos. São, aliás, possuidores de competências administrativas em decorrência de uma forma atípica de delegação de função pública[102].

Por isso, para a melhor definição de questões pertinentes ao regime jurídico de notários e de registradores, sempre que tivermos de recorrer à analogia para a melhor compreensão interpretativa de uma norma de direito positivo, ou mesmo para a supressão de lacunas constitucionais, deveremos agir com a máxima cautela exegética. Buscar, de modo dogmático, a analogia entre categorias funcionais que apenas em parte se assemelham, poderá, em alguns casos, ser um grave e desastroso equívoco hermenêutico. A analogia apenas pode ser adotada como uma forma de compreensão sistêmica de uma regra, ou como modo de auto-integração de um ordenamento jurídico, quando estivermos diante de situações semelhantes ou muito próximas. Buscar a analogia entre categorias que não se identificam, mas se aproximam ontologicamente, em questões ou aspectos em que as dimensões jurídicas de ambas são assimétricas, será um equívoco grosseiro e pueril em que os bons exegetas jamais poderão incorrer.

Assim, em certos casos, a aplicação analógica de regras pertinentes aos servidores públicos em relação a notários e registradores poderá ser rigorosamente equivocada, e até absurda, e em outros, um método hermenêutico digno de aplausos. O mesmo se poderá dizer em relação a concessionários e a permissionários de serviços públicos. Tudo depende da percepção prévia e adequada dos aspectos em que se identificam ou se diferenciam estas categorias de agentes públicos.

No caso do ingresso na atividade notarial ou de registro, nos parece perfeitamente possível a aplicação da analogia com o provimento de cargos públicos. Embora notários e registradores não ocupem cargos e nem sejam contratados em empregos públicos, a exigência da realização de concurso público para a “investidura” no exercício da função pública, traz grande proximidade (embora não identifique) às duas situações, e tornaa priori admissível o emprego da analogia, em situações interpretativas que exijam um aclaramento sistemático do exato conteúdo e sentido do comando contido no § 3º do art. 236 da nossa Lei maior. Por esta mesma razão, temos por inadmissível aqui a aplicação de eventual raciocínio analógico em relação aos concessionários e permissionários de serviços públicos. Estes estão submetidos, em regra, à aprovação de prévia lei autorizadora e a realização de prévio procedimento licitatório para a celebração de seus respectivos contratos (art. 175,caput, da C.F.), o que os coloca distantes de notários e de registradores, quanto ao específico aspecto domodus de outorga da sua delegação.

Assim, embora sem ignorar o tratamento específico da questão feito pelo nosso direito positivo constitucional em relação a notários e a registradores, é possível, com algumas óbvias ressalvas, a analogia entre o procedimento de outorga de suas delegações e o provimento de cargos públicos, com o objetivo de melhor compreensão do disposto no art. 236, § 3º, da Constituição.

Estabelecida esta consideração preliminar, podemos adentrar diretamente ao núcleo final da controvérsia. Terá o aludido dispositivo constitucional exigido que os concursos de remoção sejam sempre“concursos de provas e títulos”?

Em que pesem as opiniões que se afirmam em sentido oposto, entendemos que não. Diferentes razões de direito nos conduzem a este particular entendimento. Todas, naturalmente, se prendem àquela que entendemos ser a melhor exegese do art. 236, § 3º, da nossa vigente Carta Constitucional. Busquemos então explicitá-la.

A mera leitura deste dispositivo constitucional nos revela a necessidade de procedermos, para a sua natural compreensão, à dissociação lógica do seu texto em duas normas ou comandos normativos distintos[103]. Para melhor compreensão do que ora se afirma, passemos a analisá-las separadamente.

Na primeira parte do § 3º do art. 236, temos descrita a norma que determina que oingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos”(grifo nosso). O comando normativo é claro: quer a nossa lei maior que todas as pessoas que pretendamoriginariamente receber uma delegação para o exercício de funções notariais ou de registro sejam regularmente aprovadas em concurso público de provas e títulos. Dizem os nossos léxicos que“ingresso”significa“ato de ingressar ou entrar; introdução ou admissão; início, princípio, intróito”[104]. Logo,“o ingresso na atividade notarial ou de registro”significa a “entrada“, o “início“, a “admissão originária” de alguém no exercício desta particular espécie de função administrativa do Estado.

Note-se que aqui o legislador está disciplinando oingresso na atividade notarial e de registro globalmente considerada, e não a atribuição de uma nova unidade de competência (serventia) que estava vaga para quem já tinha iniciado anteriormente o exercício desta mesma atividade. Fosse assim, e teria dito o legislador constitucional em assertiva direta que“o ingresso em serventias vagas se dará sempre por aprovação em concurso público de provas e títulos”. Não foi essa, porém, a determinação constitucional. O comando literal da nossa lei maior foi o de que o“ingresso na atividade”,
ou seja,“o início do exercício da atividade” exigirá sempre aprovação em concurso público de provas e títulos. O que quer dizer que qualquer pessoa que ainda não tenha recebido originariamente uma delegação para o exercício de atividade notarial ou de registro, para que possa recebê-la, deverá ser aprovado em prévioconcurso público de provas e títulos.

Se fizermos aqui uma adequada analogia com as formas de investidura em cargos públicos, poderíamos então classificar as delegações firmadas com base no art. 236 da Constituição Federal em duas distintas espécies: as delegações origináriase as derivadas. Asoriginárias são aquelas em quea outorga da delegação não se vincula a nenhum exercício de atividade notarial ou de registro anterior. Asderivadas são aquelas em quea outorga da delegação pressupõe um anterior ingresso no exercício da atividade notarial ou de registro, e o seu regular exercício no momento da sua efetivação.

Claro está, portanto, que a norma contida na primeira parte do§ 3º doart. 236 se refere exclusivamente àdelegação originária. É ela que, de acordo com este comando normativo, deverá ser submetida a prévio concurso público de provas e títulos. Disso,data máxima venia,ninguém poderá discordar, posto que caso assim não fosse seria incompreensível a norma descrita na segunda parte do §3º do art. 236, como se verá a seguir. E o“avoir du bonsens” é um imperativo impostergável em qualquer ato de exegese.

A segunda parte do § 3º do art. 236 da Constituição Federal abandona a disciplina dadelegação originária da atividade notarial e de registro e passa a tratar do preenchimento de serventias vagas. E o faz estabelecendo a vedação de que qualquer serventia possa ficar vaga“sem a abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”.

A compreensão exata do conteúdo jurídico dessa específica diretiva normativa exige agora uma análise mais detida. Cuidando davacância das serventias notariais e de registro[105], estabelece a norma em comento, a determinação temporal de que, ao ocorrer esta situação, em prazo não superior a seis meses, deverá ser aberto um procedimento seletivo destinado ao seu respectivo preenchimento. Este preenchimento, diz a mesma norma, poderá ser realizado de duas formas distintas: ou pela realização de umconcurso de provimento da serventia vaga ou pela realização de umconcurso de remoção.

Cumpre então, preliminarmente, que se indague: qual o significado que esta norma pretende atribuir às expressões“provimento” e“remoção”?

A palavra“provimento é aqui, com a devida vênia, muito mal empregada pelo nosso legislador constitucional. Como já vimos, provimento é o ato administrativo pelo qual alguém é designado para titularizar um cargo público[106]. E notários e registradores não são servidores públicos, e não ocupam cargos públicos, conforme reiteradamente já salientamos ao longo desta manifestação opinativa. Tem razão assim WALTER CENEVIVA quando afirma que“chama-se provimento inicial o ato pelo qual o servidor é designado para o cargo público. Trata-se de termo mal empregado no dispositivo, pois o notário e o registrador não são providos em cargo público, mas recebem a outorga da delegação, como investidura que decorre da natureza da sua função de agente público”[107].

Reitere-se a pergunta: na medida em que a palavra“provimento” foge ao seu sentido jurídico doutrinário habitual e normal, no dispositivo constitucional em comento, em que sentido terá pretendido o legislador empregá-la?

Nosso ponto de vista se afirma na linha de que isso só poderá ser esclarecido se viermos a fazer o confronto terminológico e de conteúdo entre as expressões“provimento” e“remoção”, inseridas no mesmo dispositivo normativo. Ao buscarmos a fixação do sentido do que entendeu o legislador por“remoção”, poderemos delimitar com maior nitidez a expressão“provimento” que lhe é contraposta alternativamente, naquele específico contexto normativo. Pergunte-se então agora: o que é“remoção”?

No sentido doutrinário habitualmente indicado para a expressão,remoçãoé a“simples deslocação do servidor de uma repartição para outra, ou de um órgão para outro – dentro do mesmo Ministério (na órbita federal) – sem que haja mudança de cargo. Altera-se, apenas, o local em que ele servirá”[108]. Nisto, aliás, difere a remoção da denominada “transferência“, uma vez que esta última é uma autêntica forma de provimento derivado que se realiza sem qualquer elevação funcional. Na “transferência“, ao contrário do que ocorre na“remoção”, o servidor muda de um cargo para outro, sendo exonerado do primeiro
e provido no segundo.

Também aqui foi mal utilizada pelo legislador constitucional a expressão“remoção”. Conceito utilizado no campo dos servidores públicos, acabou sendo introduzido, de modo acrítico, no campo pertinente aos notários e registradores, sem maior precisão de significado[109]. Contudo, por uma aproximação analógica com o conceito próprio de“remoção” no campo dos servidores públicos, não parece difícil entender o que pretendeu dizer neste comando a nossa Lei Maior. “Remover” significa“mover de um lugar para outro”. No plano do exercício funcional de notários e de registradores, nessa medida,“remoção” só pode significar a mudança do titular de uma serventia para outra que esteja vaga. Ou seja:“remoção” é a passagem daquele que por concurso público já ingressou na atividade notarial ou de registro,para outra serventia distinta daquela que originalmente titularizava[110].

A nosso ver, portanto, o conceito de“remoção”deve ser identificado no art. 236, § 3º, da nossa Carta Constitucional com a formaderivada de outorga de delegação a notários e a registradores. Quem estava numa dada serventia, mediante concurso, poderá serremovido para outra que se encontrava vaga. Este é o único sentido possível e admissível para a expressãoin casu[111].

Com isso, fica em muito facilitada a compreensão do sentido que pretendeu dar o legislador à palavra“provimento”, no mesmo dispositivo constitucional. Se por“remoção” devemos entendera forma de delegação derivada no exercício da atividade de notários e de registradores, por“provimento” devemos entender a forma dedelegação originária, ou seja, aquela que deve ser realizada sem que se pressuponha qualquer delegação anteriormente outorgada ao seu beneficiário.

Fica assim evidenciada a intenção do legisladorconstitucional, nesta regra disposta no art, 236, § 3º, da nossa Lei Maior: sempre que uma serventia ficar vaga, em prazo não superior a seis meses, deverá ser realizado um concurso para o seu preenchimento. Este concurso poderá ser abertoa quaisquer pessoas que atendam aos requisitos legalmente exigidos para o exercício da atividade notarial ou de registro (“concurso de provimento“, nos termos da Constituição, ouconcurso para a efetivação de uma delegação originária, na expressão que nos parece tecnicamente mais acertada), ou poderá ser restrito exclusivamenteàqueles que já exercem esta atividade (“concurso de remoção“, nos termos da Constituição, ouconcurso para a efetivação de uma delegação derivada, na expressão que nos parece tecnicamente mais acertada)[112].

Impõe-se agora a questão: qual espécie de “concurso” deverá ser realizada, nos termos do art. 236, § 3º, para o“provimento”? E para a“remoção”?

A resposta, no que concerne ao concurso de“provimento” é elementar e induvidosa. Sendo oprovimento a realização da delegação da atividade notarial e de registro atítulo originário, e considerando-se o disposto na primeira regra descrita neste mesmo parágrafo, só poderá ser o“concurso público de provas e títulos”. De fato, se todo o ingresso na atividade notarial e de registro só pode ocorrer por meio desta particular espécie de concurso, inexiste qualquer possibilidade de dúvida no caso. Somente oconcurso público de provas e títulos poderá ser realizado para que se tenha o legítimo e válido“ingresso na atividade notarial e de registro” (“provimento”)[113].

Já no caso do concurso de“remoção” a questão não se coloca de forma tão simplificada como em tese poderia parecer. A primeira vista, em leitura apressada do dispositivo, se poderia imaginar que a afirmação feita na primeira norma descrita no art. 236, § 3º, da Constituição Federal, de que a expressão“o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos”, seria aplicável também ao concurso de “remoção[114]. Esta leitura da norma, porém, é insustentável.

Dizemos isso porque, em primeiro lugar, é evidente que a expressão em referência tem por campo de abrangência literal apenas o“ingresso” na atividade notarial e de registro. E como já salienta
do, o“concurso de remoção” não visa o“ingresso” nessa atividade, mas apenas a realização de uma forma dedelegação derivada que pressupõe uma disputa apenas entre notários e registradores que já tenham obtido anteriormente adelegação originária nos termos da lei.

Em segundo lugar, mesmo que assim não fosse, a realização de um “concursopúblico” é manifesta e induvidosamenteincompatível com a idéia de“concurso de remoção”.Já salientamos anteriormente que um concurso só será“público” quando o procedimento seletivo foraberto a toda a coletividade, admitida a possibilidade de fixação de critérios mínimos e genéricos tidos como indispensáveis para o bom exercício da atividade disputada pelos interessados[115]. Ora, um concurso realizado apenas entre aqueles que já são notários ou registradores, assim, por definição, jamais poderá ser tido juridicamente como um verdadeiro “concurso público”. Será, indubitavelmente, um“concurso”, um “procedimento seletivo interno“, mas não“público”, no sentido jurídico adequado e próprio da expressão. Aliás, a afirmação de que o“concurso de remoção” teria que ser necessariamente“um concurso público”, ao implicar na formulação da expressão“concurso público de remoção,” gerará uma intransponível“contradictio in adjectis”. Se é concurso de“remoção” realizadoapenas entre notários e registradores, data máxima venia,“público”não é.[116]

Em terceiro e último lugar, parece evidente que se pretendesse o nosso legislador que toda e qualquer serventia vaga fosse preenchida por meio de um“concurso público”, a vigente forma redacional do dispositivo jamais seria adotada. Bastaria afirmar, em uma única regra, por exemplo, que“a ocupação da serventia se dará sempre por concurso público de provas e títulos, a ser realizado em prazo nunca superior a seis meses do momento em que se der a sua vacância”, e o mandamento constitucional com tal conteúdo estaria rigorosamente estabelecido, sem maiores rodeios, redundâncias, ou dificuldades. Ao optar por uma forma mais complexa de redação (“o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”), que logicamente engloba dois comandos normativos distintos (um para o ingresso e outro para a vacância de serventias), só podia ter o nosso legislador outra realidade em mente:queria admitir a possibilidade de uma forma de delegação derivada aos notários e registradores que fosse realizada por meio de um procedimento seletivo que, isonomicamente e de forma objetiva, viesse a garantir o acesso às serventias vagas aos mais capacitados. Por isso desmembrou o comando constitucional em duas normas distintas: uma determinando oconcurso público de provas e títulos para o ingresso na atividade (concurso de provimento); outra admitindo para a“remoção” (forma dedelegação derivada constitucionalmente assegurada como exceção ao princípio do concurso público) a realização de um“concurso“, sem utilizar para a sua adjetivação a qualificação de“público”.

Temos, pois, como evidente que a expressão“concurso público de provas e títulos”, firmada na primeira norma estabelecida no art. 236, § 3º, não pode ser aplicada literal e incondicionalmente para a definição do conteúdo do“concurso de remoção” mencionado na segunda norma indicada neste mesmo dispositivo constitucional. E isto valerá tanto para a qualificação de ser este concurso“público”, como para a definição de uma de suas espécies que é a de ser de“provas e títulos”. A afirmação normativa da primeira regra, por tratar de hipótese diferente da delegação“por remoção”, não pode em nenhuma medida englobá-la.

Voltamos então agora, praticamente, ao mesmo ponto de que partimos algumas linhas acima. Dizemos “praticamente” porque, ao menos agora, temos ciência agora de que o art. 236, § 3º, da nossa lei maior,per se, não permite ao exegeta tirar qualquer conclusão acerca de que o concurso de remoção deva ser“público” e realizado obrigatoriamente pela modalidade de“provas e títulos”. Resta saber então se alguma outra razão de direito poderia levar a esta conclusão a partir de uma interpretação sistemática do nosso texto constitucional.

Alguns argumentos interessantes têm sido apresentados na linha de que, dentro de uma análise sistemática, a Constituição Federal imporiain casu a realização de um concurso de “provas e títulos” para adelegação derivada(por “remoção”), descartando qualquer outromodusde concurso(procedimento de seleção competitiva interna), em especial o de“títulos”. São estes, em síntese[117]:

 

a) só existiriam “duas modalidades de concurso aceita
s pela Constituição, dependendo da função em cada caso
“, que seria a de“provas” ou a de“provas e títulos”. Isto porque,“a expressão concurso de provas ou de provas e títulos é repetida na Constituição Federal praticamente todas as vezes em que o texto se refere a concurso público”.Assim, dentro de uma interpretação sistemática, a realização de um concurso público apenas poderia ser efetivada como uma opção entre estas duas hipóteses, vedada a escolha de uma “terceira via” (por exemplo: modalidade“concurso de títulos”).A expressão concurso público“inclui necessariamente ao menos uma etapa de provas, podendo ser organizado apenas em provas ou em provas e títulos”[118], uma vez que a expressão“concursos de títulos” não é admitida em um único dispositivo da Constituição Federal[119];

 

b) a realização de um concurso apenas de “títulos” para a remoção de notários e registradores ofenderia aos princípios daisonomia, impessoalidade, moralidade e da eficiência[120];

 

c) a previsão de realização de concurso apenas de“títulos” subverteria todo o sistema constitucional, na medida em que este se encontra“assentado na exigência de concurso de provas ou de provas e títulos, mas nunca no concurso apenas de títulos(cf. CF/88, art. 37,II). Até porque o entendimento contrário implicaria em que para a“remoção basta a realização de um concurso, qualquer que seja a natureza dele. Portanto, se é lícito o concurso de títulos, legítimo também seria um concurso de idade, de altura e até de beleza”[121] ;

 

Passemos então a analisá-los topicamente:

 

A) Não nos parece aceitável o argumento de que pelo fato da Constituição Federal só fazer referência explícita a concursos de“provas” ou de“provas e títulos” em diversos dispositivos, isto implicaria em que o“concurso de remoção”,(concurso para delegação derivada) previsto no art. 236, § 3º, da Constituição Federal, não pudesse jamais ser realizado sob a forma de concurso apenas de“títulos”.

De fato, cumpre observar que sempre que a Constituição Federal faz referência a“concurso público”, explicita ou implicitamente, a referência normativa indica tratar-se de“concurso público de provas” ou de“concurso público de provas e títulos”. Da mesma forma, é correto afirmar-se que em nenhum momento a Constituição Federal faz referência a uma eventual admissibilidade de um“concurso público de títulos”.

Por isso, somos obrigados a concordar que, no que concerne aos procedimentos seletivos denominados“concursos públicos”, uma interpretação sistemática parece conduzir a uma vedação clara de que possa no nosso sistema constitucional existir um“concurso público de títulos”. Subscrevemos, integralmente, esta tese.

Contudo, convém que venhamos a permanecer“au-dessus de la mêlée”.A sistemática constitucional em vigor veda a realização“concursos públicos de títulos”, e não,data máxima vênia, que“concursos que não são públicos”por serem meras“seleções competitivas internas” possam vir a ter esta formatação. Por isso, o argumento não se aplica ao“concurso de remoção”estabelecido no art. 236, § 3º, da nossa lei maior. Como já visto e reiterado, esse concurso não é, e nem nunca poderia ser, um“concurso público”. Ele é um mero procedimento seletivo, realizado entre notários e registradores para a obtenção de uma “delegação derivada”. E nas delegações derivadas, como nas investiduras derivadas no campo dos servidores públicos, inexiste a possibilidade lógica de se realizar concursos“públicos”, no sentido próprio da expressão.

Não se aplica, portanto,a priori de qualquer tratamento legislativo ordinário da matéria, a vedação implícita à realização de concursos públicos“de títulos” aos concursos de “remoção” previstos no art. 236, § 3º, da Constituição Federal. Esta vedação se afirma – repita-se – apenas em relação aos“concursos públicos”, e não para simples “concursos internos ao sistema notarial ou de registro para outorga de delegações derivadas“, ou mesmo para os concursos internos da Administração para a efetivação de investiduras derivadas em cargos públicos(seleções competitivas internas).

Seria ainda inaceitável o argumento de que a vedação da realização de concursos públicos“de títulos” deveria ser ampliada, por analogia, para alcançar obrigatoriamente todos e quaisquer concursos que objetivassem delegações ou investiduras “derivadas” admitidas pelo texto constitucional. A analogia deve ser buscada sempre que entre realidades semelhantes uma razão comum de tratamento normativo se imponha de maneira uniforme. Não é, em bom direito e em boa compreensão de fato, o que acontece aqui. Quando o legislador constitucional
exigiu necessariamente uma fase de“provas” no concurso público, foi justamente para permitir uma avaliação, por este critério, de uma habilitação mínima para o exercício da função pública. O concurso público é aberto para toda a coletividade, e como tal, é correto, saudável e necessário que uma prova objetiva de conhecimentos se imponha para que um cabedal mínimo de informações técnicas básicas seja exigido daqueles que ingressarão originariamente no mudo administrativo para o exercício da função pública. Não é, todavia, o que ocorre nas “delegações ou investiduras derivadas“. Nelas, os eventuais candidatos já exercem a função pública, e assim, já se presumem habilitados para o exercício das funções que há algum tempo exercem. Exigir habilitação básica de quem já se pressupõe habilitado para continuar fazendo em outra unidade semelhante o que já faz há algum tempo, é, de certo modo, umplus de pouca ou nenhuma racionalidade.

Donde resultar descabida qualquer extensão analógica obrigatória domodus imposto pela Constituição para a realização de“concursos públicos” (“concurso de provas ou de provas e títulos“) para o“concurso de remoção” estabelecido no texto do art. 236, § 3º, da nossa lei maior.Se eventualmente for necessária a aplicação analógica de regras para os procedimentos destinados à efetivação dadelegação derivada da função notarial e de registro (“remoção”), estas deverão ser as regras estabelecidas para a disciplina dos procedimentos deinvestidura derivada em cargos públicos admitidas pela Constituição, como ocorre com os procedimentos que propiciam apromoção de agentes públicos em suas respectivas carreiras. E como sabido, inexiste qualquer vedação constitucional para que possam ser realizados“concursos internos de títulos entre servidores” (seleções competitivas internas.)com o objetivo de se proceder à “investidura derivada” em cargos superiores [122].

De fato, embora no sistema notarial e de registro não se possa falar da existência de carreiras, uma vez que inexiste qualquer escalonamento entre as diferentes unidades de competência, de modo a que pudesse ficar condicionado o acesso a uma serventia “superior” pelo exercício de uma prévia titularidade de uma serventia “inferior”, não se pode negar que existe alguma semelhança desta situação com a promoção no mundo dos servidores públicos (provimento do titular de um cargo inferior em um cargo superior de uma carreira). Em ambos os casos o que querem notários, registradores e servidores públicos é galgar situação funcional que lhes seja mais vantajosa do ponto de vista “financeiro”, do “status” funcional, ou as vezes até de “deleite pessoal”. Se assim não fosse não desejariam estes jamais passar de um posto a outro. Nisto a proximidade das situações justificadora da analogia.

Forçoso concluir, nessa medida, que da mesma forma que podem ser admitidosconcursos internos de títulos para a promoção de servidores (investidura derivada em cargos públicos), não é vedada pela Constituição a possibilidade deconcursos internos ao sistema notarial e de registrospara a remoção de titulares de uma serventia para outra (delegação derivada para uma serventia), a ser realizado na modalidade de“títulos”. A situação,in casu,é de absoluta equivalência.

 

B) É insustentável a tese de que um concurso de títulos para a remoção de notários e registradores, na conformidade do estabelecido no art.236, § 3º, da Constituição Federal, seria ofensivo aos princípios daisonomia, impessoalidade, moralidade e eficiência.

De imediato, é forçoso reconhecer que se o julgamento de candidatos por “títulos” for imoral porque implica em favorecimentos não isonômicos, ofensivos a impessoalidade, imorais e propiciadores de ineficiência, os próprios concursos de“provas e títulos” seriam maculados pelos mesmos vícios. Afinal, nestes concursos,o julgamento dos títulos interfere diretamente no resultado final, e por si só, sua influência, pode permitir que alguns possam vir a ter acesso a cargos e a delegações, enquanto que outros podem ser afastados dessa mesma possibilidade pela simples apreciação dos seus“títulos”. Se um concurso em que se aprecia, para fins de aprovação e classificação, exclusivamente, os“títulos de um candidato”, implica em ofensa direta a todos estes princípios, por que este mesmo fato também não inquinaria de vícios, em igualdade de condições, um concursode “provas etítulos”?

Este questionamento nos parece,data máxima venia,irrespondível. Se correta fosse a tese sustentada, qualquer apreciação de títulos, em qualquer concurso, inclusive o de“provas e títulos”, haveria de ser rejeitada de plano. E sendo assim, a única espécie de concurso isonômico, pessoal, moral e capaz de produzir a eficiência administrativa seria o de“provas”.

A contradição desse ponto de vista, portanto, é flagrante, e nos traz à mente a elegante ironia cravada pela cáustica pena de ANATOLE FRANCE, emCrainquebille, quando afirmou que“… nous apellons immoralité toute morale qui n’est pás la nôtre…”[123].


Fosse realmente ofensiva à isonomia, à impessoalidade, à moralidade e à eficiência a apreciação de“títulos” em um concurso, ao menos dentre nós, esse argumento não poderia ser tomado como propiciador de inconstitucionalidade, uma vez que a própria Constituição a admitiu nos concursos públicos de“provas e títulos”. Poder-se-ia reprovar a nossa lei maior e propugnar por uma mudança. Sustentar, todavia, que um concurso que adotasse tal critério, puramente ou seguido de prova, seja inconstitucional, salvo melhor juízo, seria inadmissível.

Ademais, a idéia de que um concurso de“provas” é sempre o adequado para se aferir, em qualquer caso e circunstância, a melhor qualificação para o exercício da função pública, não passa de ser uma assertiva retórica. Será que o tempo que uma pessoa emprega em cursos de especialização, mestrados, doutoramentos, concursos para livre-docências, é sempre menos relevante que um conjunto de respostas dadas a um universo de perguntas pré-selecionadas pelo elaborador de uma prova objetiva? Será que o tempo de exercício de uma atribuição, de comando de unidades funcionais, deve ser tido como insignificante diante das respostas dadas em uma prova direcionada para um conjunto parcial de conhecimentos teóricos? Será que uma prova sempre mede, com rigor absoluto e sem desvios, a efetiva aptidão pessoal de alguém para um dado exercício funcional?

Em sendo favorável as respostas, que nos seja permitido abusar um pouco da ironia, o melhor seria pensar em introduzir novos modelos de gestão administrativa não só em nosso país, mas em todo o mundo. Generais no Exército, Brigadeiros na Aeronáutica e Almirantes na Marinha, por exemplo, haveriam de ser escolhidos para os seus postos, especialmente nas guerras, por meio de provas objetivas abertas entre quaisquer soldados. Se nunca tiverem comandado, feito cursos ou participado de treinamentos especiais, isso seria, dentro dessa ótica, absolutamente irrelevante. Afinal,“títulos” não demonstram a capacitação de uma pessoa, de acordo com esta especial forma de ver a realidade da vida. O importante para a busca da eficiência seria sempre uma pessoa ter tido uma boa soma de pontos numa“prova”. Aliás, soubessem disso os ingleses, e com certeza teriam aberto um concurso de provas para a escolha do general que enfrentaria Napoleão Bonaparte, o imperador francês, reconhecidamente um dos maiores gênios militares da história. E, ao ver dos que sustentam este ponto de vista, seguramente, não teriam esperado tanto tempo para derrotá-loem Waterloo… Por que então não modificar a nossa Constituição, e fazer-se também a escolha dos Ministros da nossa Suprema Corte por uma prova objetiva nacional aberta entre todos os bacharéis de direito, ignorando-se a titulação individual capaz de conferir a alguém, ao longo de toda uma vida, a qualificação de ser possuidor de um“notório saber jurídico”? Não será a“prova” o único procedimento isonômico, impessoal, moral, capaz de propiciar a absoluta eficiência no exercício de qualquer função pública? Não será então o currículo de uma pessoa, suas experiências funcionais, enfim a “titulação”, algo desprezível, insignificante, dentro dessa ótica, para medir sua aptidão para a ocupação de uma unidade de competência destinada ao exercício da função pública?

De muita reflexão e ironia não necessitamos para fazer ruir o uso retórico da idéia de que o exame de títulos, em qualquer circunstância, é indevido, inconveniente ou inoportuno para uma apreciação objetiva da melhor capacitação para o exercício de uma função pública.

Donde ser inaceitável, portanto, o ponto de vista que sustenta a inadequação e a impropriedade jurídica e fática do critério de julgamento por “títulos” em um concurso de seleção interna, seja isoladamente ou em conjunto com provas, tanto no âmbito do quadro dos servidores públicos, tanto no âmbito do sistema notarial e de registro.

Não temos, pois, absolutamente nenhum temor em afirmar em alta voz que nenhuma ofensa,a priori, trará a adoção de um concurso de títulos para a remoção prevista no art. 236, § 3º, da Constituição Federal, considerando-se os indigitados princípios constitucionais. Um concurso detítulospode ser tão isonômico, tão impessoal, e tão fundado na moralidade administrativa como um concurso deprovas. E em certos casos muito mais apto a definir um perfil de pessoa mais capacitado para o exercício de uma dada função pública especial que um concurso de provas, puro e simples.

 

C) Inexistirá qualquer subversão do sistema constitucional com a eventual admissibilidade de um concurso de títulos para a remoção prevista no art. 236, § 3º, da ConstituiçãoFederal. Subversão existiria, indiscutivelmente, se fosse esse concurso um autêntico“concurso público” aberto a toda a coletividade. Contudo, como já salientado, ele assim não se define, na medida em que é um concurso interno ao sistema notarial e de registro, aberto exclusivamente entre aqueles que já se encontram investidos na titularidade de serventias (delegação derivada). Nosso sistema constitucional, reconhecida e indiscutivelmente admite para as formas de provimento derivado, situações que independem de necessário concurso em que exista uma etapa de “provas“. Isto ocorre não só para os servidores públicos em geral, mas também para a Magistratura e para o Ministério Público, na medida em que se determina por imperativo constitucional, para estes últimos, a promoção e o acesso por critérios de“antiguidade e merecimento”(art. 93, II e III, e 129,§ 4º da C.F).

Inexiste no nosso sistema constitucional, portanto, um princípio, uma diretiva, uma orientação, ou mesmo uma simples regra especial, que obrigue a realização de concursos em que exista uma etapa de “provas” para quaisquer das formas de investiduras derivadas em cargos públicos admitidas pela nossa lei maior.Se a aplicação da analogia, no caso, é correta, por que haveria de ser diferente então para a realização da delegação derivada a notários e a registradores (“remoção”)? Não há nenhuma razão jurídica, com a devida vênia, que sustente essa compreensão.

Ademais, causa-nos espécie a assertiva de que “se é lícito o concurso de títulos, legítimo também seria um concurso de idade, de altura e até de beleza” deduzid
a na ação declaratória de constitucionalidade que trata dessa matéria[124]. A tal questionamento, poderia ser argumentado, na mesma linha retórica que“se é lícito o concurso de provas e títulos,também seria lícito um concurso de “provas e idade”, de “provas e altura”, e de “provas e beleza”.Ao uso retórico do questionamento, se devolve o uso retórico da resposta. Armas de igual calibre se neutralizam na produção da névoa retórica que, muitas vezes, turva a melhor compreensão do fenômeno jurídico. Todavia, o que mais chama a atenção no argumento que ora buscamos refutar, reside na aparente confusão que produz entre a possibilidade de adoção jurídica,em tese, de um “concurso de títulos” para a remoção de notários e registradores, e a adoção de critérios não isonômicos “para o julgamento de determinado e específico concurso de títulos“. Da mesma forma que em um caso concreto, um concurso por títulos pode implicar na adoção de critérios ofensivos a isonomia, a impessoalidade e a moralidade, um concurso da mesma natureza pode ser perfeitamente realizado sem a ofensa a quaisquer destes princípios. Um concurso por títulos não é “em si” ofensivo a estes princípios, uma vez que é perfeitamente possível que os critérios definidos para o seu julgamento sejam estritamente adequados a estes mandamentos constitucionais. O mesmo, aliás, se poderá dizer, até mesmo, de um concurso de “provas“. É possível que um procedimento seletivo dessa natureza, em dadas situações, também possa violar estes mesmos princípios, uma vez que inexiste concurso que sejaa prioriimune a quaisquer formas de desvios ou de irregularidades[125]. Logo, eventuais vícios que possam vir a ocorrer na realização de concursos de provas, de títulos, ou de provas e títulos, não se relacionam diretamente com a espécie de procedimento seletivo adotada, mas com desvios que podem ocorrer no caso concreto, e que como tais, devem ser combatidos também “in concreto“, e não pela vedação “em tese” do que, em si mesmo, ein abstrato, como violador de qualquer princípio não é.

Vêm a calhar aqui as bem postas ponderações firmadas por REINALDO MOREIRA BRUNO e MANOLO DEL OLMO, quando demonstram que os problemas que eventualmente podem vir a ocorrer em um concurso de títulos, se prendem não a situações que decorrem da natureza do critério julgamento adotado, mas de desvios que podem ocorrer, de fato, em casos concretos. Com efeito, afirmam que“o cômputo de títulos em concurso público é matéria que tem causado certa controvérsia, levando o Judiciário a manifestar-se quanto a previsões editalícias de concurso público que afrontam aos princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade. (…) “Ainda tratando do permissivo constitucional que admite a realização de concursos de provas e títulos, cumpre observar que os títulos podem constituir-se, via de regra, em instrumento de manipulação de concursos, quer para privilegiar quer com o fato de promover perseguições (…) Diante do caráter discricionário da elaboração do edital e na atribuição de pontuação nos títulos, novamente a razoabilidade torna-se o grande instrumento limitador de abusos e que permite o controle da Administração, no sentido de evitar desvio de poder (…) A análise da razoabilidade implica verificar a adequação do título considerado e o exercício das funções atribuídas ao cargo em disputa, ou seja, há de existir uma efetiva e necessária correlação entre o título e as atividades a serem exercidas pelo futuro servidor, sob pena de constituir-se em desvio de finalidade.”[126]

Nota-se, portanto, que não se pode ter o concurso de títulos como um procedimento queper se viole princípios constitucionais de qualquer natureza. O que pode ocorrer é que, em casos concretos, a violação destes princípios possa vir a se materializar, por equívocos jurídicos, ou mesmo por má-fé, daquele que promove o concurso. Isso, todavia, não serve para que se sustente que, sempre e em qualquer caso, um concurso que propicie o julgamento de títulos será constitucionalmente inadmissível. Da mesma forma que o descumprimento de uma norma legal não a torna inconstitucional, a realização ilícita ou imoral de um concurso de títulos não o torna uma modalidade de procedimento seletivo ofensiva à Constituição.

 

Diante de todo o exposto, dúvidas não podem existir de que nenhum argumento de direito digno de aplausos e reverências se projeta na linha de que se tenha por vedada, em tese, a possibilidade de que o concurso de remoção previsto no art. 236, § 3º, da Constituição Federal possa ser realizado pela modalidade de“títulos”. Tudo dependerá da lei que disciplina a matéria. Terá total liberdade o legislador de estabelecer a espécie de concurso que julgar mais apropriada para a realização dadelegação derivada da atividade notarial e de registro. Poderá adotar umconcurso de provas, um concurso de títulos ou um concurso de provas e títulos.Para o legislador constitucional será rigorosamente indiferente a solução firmada. Ao deixar de firmar uma posição explícita ou mesmo implícita a respeito, outorgou ao legislador ordinário a necessária discricionariedade para o tratamento da matéria.

Naturalmente, a mesma solução não se impõe para os concursos públicos exigidos para o ingresso na atividade notarial e de registro (“concurso de provimento”). Dentro do estabelecido no art. 236, § 3º, da nossa Lei Maior, nesse caso, o caminho imposto pelo legislador constitucional é único. Exige-se aqui, obrigatoriamente, que o concurso público seja“de provas e títulos”.

 

 

III.3. O ART. 16 DA LEI Nº 8.935/94 E O PRINCÍPIO DO CONCURSO PÚBLICO

 

 

 

Aceita a análise constitucional empreendida no tópico anterior, seguramente a matéria em exame nessa manifestação opinativa perderá, por inteiro, a sua complexidade jurídica. Ao legislador ordinário caberá, com liberdade discricionária, disciplinar omodus pelo qual será realizado o concurso de remoção para o preenchimento das serventias que estiverem vagas.

E assim foi feito pelo art. 16 da Lei n. 8.935/94, tanto no seu texto original, como na sua alteração posterior. Na sua redação original, o art. 16 do diploma legal em apreço estabelecia que:

 

 

“art. 16. As vagas serão preenchidas alternadamente, duas terças partes por concurso público de provas e títulos e uma terça parte por concurso de remoção,de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia notarial ou de registro fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”. (grifo nosso)

 

Embora tivessem surgido discussões sobre a constitucionalidade deste dispositivo, segundo nos parece, a sua adequação ao texto da nossa Lei Maior era total e indiscutível. Valendo-se da sua faculdade discricionária o legislador federal adequadamente determinou que o tanto o concurso para ingresso na atividade notarial ou de registro (concurso para a realização da delegação originária ou de provimento), como o concurso de remoção (concurso para a realização da delegação originária) deveriam ser realizados pela modalidade de“provas e títulos”[127].

Este texto foi, porém, alterado pela Lei n. 10506, de 9 de setembro de2002. A partir de então, o texto do artigo 16 da Lei n. 8.935/94 passou a ser o seguinte:

 

 

“art. 16. As vagas serão preenchidas alternadamente, duas terças partes por concurso público de provas e títulos e uma terça parte por meio de remoção,mediante concurso de títulos, não se permitindo que qualquer serventia notarial ou de registro fique vaga, sem abertura de concurso de provimento inicial ou de remoção, por seis meses.”(grifo nosso)

 

O objetivo da mudança legislativa foi óbvio, e dispensa comentários. O concurso de“provas e títulos” que era exigido para os concursos de remoção foi alterado para concurso“de títulos”. Nada mais.

A mudança foi, a nosso ver, em face de todo o exposto, foi rigorosamente legítima. Valendo-se do seu poder discricionário, o legislador ordinário firmou esta nova regra, sem que nenhuma objeção de natureza constitucional possa contra ela ser suscitada. Pelas razões sustentadas no tópico anterior, o art.236, § 3º, da nossa Lei Maior, admite que esta particular espécie de concurso possa ser adotada para a outorga dadelegação derivada da atividade notarial e de registro. Nenhum outro princípio ou regra constitucional também o impediu ou o impede de fazê-lo.

O argumento de que o concurso de provas e títulos é o que melhor afere o mérito dos candidatos é uma crítica que não deve ser considerada como relevante para fins de consideração de eventual questionamento da constitucionalidade deste dispositivo legal. A convicção de um intérprete de que o legislador não seguiu o melhor caminho ao regular uma matéria não tem força para retirar a legitimidade constitucional de um texto legal. Pode servir como crítica política, orientadora de futuras mudanças legislativas, mas não como um argumento jurídico válido.

Da mesma forma uma possível antinomia que possa existir entre a nova redação do artigo 16 e a norma contida no artigo 14 da Lei n. 8.935/94, também não serve para infirmar a legitimidade daquele primeiro dispositivo legal.

Deveras, cumpre observar que, a partir de uma leitura ligeira destes dois dispositivos legais, parece realmente existir uma aparente antinomia entre ambos. Ao estabelecer os requisitos necessários para a efetivação da“delegação para o exercício da atividade notarial e de registro”afirma o art. 14, no seu inciso I, que se tem por necessário“a habilitaçãoem concurso público de provas e títulos” (grifo nosso).

Ora, como a ninguém do mundo do direito é dado ignorar, as antinomias normativas devem ser sempre solucionadas por critérios de interpretação. No caso, a solução é evidente. A norma do art. 14, I, da Lei n. 8.935/94, nunca se reportou ao concurso deremoção(delegação derivada), mas ao concurso deprovimento (delegação originária). E isso, diga-se bem da verdade, mesmo antes da modificação do texto do art. 16 da Lei n. 10506/02.

Não é difícil a demonstração do que se acabou de dizer. Vejamos a redação original do art. 16 da Lei n. 8.935/94. Dizia ela que: “as vagas serão preenchidas alternadamente, duas terças partes porconcurso públicode provas e títulos e uma terça parte porconcurso de remoção, de provas e títulos…”. (grifos nossos). É nítido que o legislador ordinário, apercebendo-se da diferença necessária que deveria existir entre o concurso para a outorga dadelegação originária e o concurso para a realização dadelegação derivada, chamou o primeiro de “concurso público de provas e títulos” e o segundo apenas de“concurso”.Ou seja: utilizando-se agora a linguagem do art. 236 da Constituição Federal: o concurso para provimento seria“púb
lico”
e o para remoção seria“interno” ao sistema notarial e de registro.

Observemos agora a determinação contida no art. 14, I, da Lei n. 8.935/94. A que concurso ela está se referindo quando ela menciona explicitamente“a habilitação em concursopúblico de provas e títulos”? (grifo nosso) A resposta é óbvia: unicamente aoconcurso de provimento, ou seja,ao concurso para a outorga da delegação originária. Ao fazer referência expressa à qualificação de“público”,por óbvio, descartou intencional e deliberadamente qualquer possibilidade de estar fazendo referência direta, ou mesmo indireta, ao concurso deremoção (concurso para a outorga da delegação derivada).

Com a mudança da redação do art. 16 feita pela Lei n. 10506/02, naturalmente, nada restou alterado. O art. 14 continuou a se referir exclusivamente ao concurso público de provas e títulos exigido para a outorga da delegação originária. Nenhuma colisão existiu ou existe, portanto, entre os artigos 14 e 16 da Lei n. 8.935/94. Em uma boa exegese dos seus respectivos termos, a harmonização é total.

Restou, pois, inteiramente resolvida, a aparente antinomia que por alguns chega a ser alegada entre estes dois dispositivos.

Concluímos, portanto, que o art. 16 da Lei n. 8.935/94, na sua vigente redação dada pela Lei n. 10.506/02, tem plena e total adequação ao texto da Constituição Federal, devendo ser cumpridoin totum quando da realização dos concursos de remoção estabelecidos no art. 236, § 3º, da nossa Lei Maior.

 

Questão interessante e complexa que devemos agora abordar diz respeito ao campo de admissibilidade funcional que deverá ser admitido para os concursos de remoção de notários e registradores. De acordo com a Constituição qual a amplitude que deverá ser tida como juridicamente aceitável para a realização dos concursos de remoção em apreço? Será admissível que um titular de uma serventia de uma certa especialidade funcional possa participar de um concurso de remoção para a outorga de uma delegação de outra serventia de especialidade distinta (por ex: o titular de uma serventia de registro de imóveis pode participar de um concurso de remoção para uma serventia de protesto de títulos, ou o titular de uma serventia de notas pode participar de um concurso de remoção para uma serventia de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas)?

 

O exame desta questão deve ser feito de forma rigorosa e cuidadosa. Como já reiteradamente foi salientado anteriormente, o texto da nossa lei maior estabeleceu que a outorga da delegação originária para o exercício da atividade notarial e de registro exige aprovação em concurso público de provas e títulos. Claro, por conseguinte, que se alguém é aprovado em concurso público para o exercício de uma serventia pertinente uma dada especialidade funcional, a admissibilidade de qualquer remoção futuraapenas poderá se dar no âmbito desta mesma especialidade. Seria absurdo e claramente desrespeitador do princípio do concurso público que o contrário viesse a ser admitido. Prestando um concurso para um dado campo de atividades, disputou o notário ou o registrador com outros cidadãos interessados em exercer aquela específica atividade notarial ou de registro objeto do procedimento seletivo. Sendo assim estará habilitado apenas a exerceraquele específico campo de atividades tanto na serventia que passou a titularizar, como em remoções futuras. Imaginar que alguém possa ingressar em um específico campo de atividades para depois, por meio de um concurso restrito, migrar para outro diferente, seria desdotado de razão e claramente ofensivo de qualquer perspectiva isonômica. E, como sabido, um dos valores jurídicos que fundamentam a realização dos concursos públicos é exatamente a perspectiva da igualdade.

Há, todavia, que se perguntar: o que são serventias que possuem a mesma natureza de atribuições? Olhando-se estritamente o campo constitucional demarcado nitidamente pelo art. 236 da nossa Lei Maior, é possível afirmar-se que existem dois grandes núcleos de atuação substantiva nas atividades em comento: onotarial e o deregistro. Dentro destes campos, o legislador ordinário, no art. 5º da Lei nº 8.935/94, como já salientado anteriormente, definiu as diferentes especialidades de atuação funcional a serem nucleadas nas serventias, a partir do critério de conveniência de prestação do serviço que julgou ser mais recomendável (tabeliães de notas; tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; tabeliães de protesto de títulos; oficiais de registro de imóveis; oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas; oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas; oficiais de registro de distribuição). O exercício destas especialidades funcionais, em princípio, não pode ser acumulado, de acordo com o que determina o artigo 26 deste mesmo diploma legal. Todavia, excepcionalmente,“poderão ser acumulados nos Municípios que não comportem em razão do volume dos serviços ou da receita a instalação de mais de um dos serviços”(art. 26, parágrafo único). Donde nos parecer, portanto, que os concursos públicos para a outorga da delegação originária devem ser realizados para as serventias vagas, considerando-se as suas respectivas especialidades funcionais. Os concursos de remoção, por sua vez,devem apenas ser admitidos entre titulares de serventias que tenham a mesma especialidade funcional. Se o notário ou o registrador titular de uma serventia pretender receber delegação de especialidade distinta, terá de se submeter a concurso público para a obtenção de nova delegação originária.

Por fim, impende observar que, seguindo-se a mesma linha de raciocínio, no caso de serventias que admitam a acumulação de funções nos termos do art. 26, parágrafo único, da Lei nº 8.935/94, deverá ser reconhecido que o seu titular tem direito de participar de concursos de remoção para quaisquer serventias que tenham atuação em especialidade funcional já exercida por ele, em caráter cumulativo, no âmbito da sua delegação originária. Isto desde que, naturalmente, ao prestar o concurso público, a serventia que passou a ser por ele titularizada já possuísse a acumulação de especialidades admitida, em caráter excepcional, pela lei.

 

 

 

III.4. OS ATOS NORMATIVOS DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DOS ESTADOS QUE DISCIPLINAM OS CONCURSOS PARA A OUTORGA DE DELEGAÇÃO ORIGINÁRIA OU DERIVADA PARA O
EXERCÍCIO DE ATIVIDADE NOTARIAL OU DE REGISTRO

 

 

Afirmada a adequação constitucional da vigente redação dada ao art. 16 da Lei nº 8.935/94, será desnecessário sustentar a óbvia posição de que todos os atos administrativos que tenham por objetivo a disciplina dos concursos abertos para a realização da delegação prevista no art. 236 da Constituição Federal devam guardar irrestrita e incondicionada obediência a seus termos. Eventual desobediência implicará na invalidade destes atos e, naturalmente, de todos os concursos que com base nele forem realizados.

Segundo informa o Consulente, grande parte dos órgãos jurisdicionais estaduais do país, ao firmarem atos normativos disciplinadores dos concursos em tela, tem respeitado a legislação federalem vigor. Há, porém, quem assim não o tenha feito, como o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em decisão tomada na ADIn nº 134.113/0/9-00 aquela Corte suspendeu, com eficáciaex nunc, a vigência da Lei Estadual nº 12. 227,de 11 de janeiro de 2006, e firmou o entendimento de que, apesar do disposto na legislação federal em vigor, os concursos de remoção devem ser não apenas de“títulos”, mas de“provas e títulos”[128].

Não temos qualquer dúvida de que o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo contraria frontalmente o disposto no art. 16 da Lei nº 8.935/94, com a sua vigente redação dada pela Lei n. 10506/02, e como tal acabará por ser revisto pelos mecanismos jurisdicionais cabíveis.

Contudo, a questão que agora nos colocamos é a seguinte: independentemente de qualquer consideração acerca do desrespeito à legislação ordinária federal em vigor, possuiria um mero ato administrativo, de natureza normativa, legitimidade constitucional para estabelecer diretamente que um concurso para a outorga de delegação derivada para a prestação de atividade notarial ou de registro deverá ser realizado por“provas e títulos”? Em outras palavras: é juridicamente aceitável, em face dos princípios constitucionais vigentes, que atos administrativos dos nossos Tribunais possamper se“inovar” determinando omodus de realização do concurso de remoção referido no art. 236, § 3º, da Constituição Federal?

Não nos parece,data maxima venia, que tal seja possível. Mesmo que inexistisse legislação disciplinando a matéria, não poderia um ato administrativo pretender,in casu, fixar tal diretriz normativa. A ofensa ao art. 236, § 1º, da nossa lei maior, aoprincípio da legalidade e ainda aoprincípio da separação de poderes, coloca-se, a nosso ver, como indiscutível.

Deveras, conforme já salientamos acima, o texto constitucional não fixa nenhuma diretriz sobre qual deva ser, ou quais possam ser, a formas de concurso admitidas para a remoção de notários e de registradores. Deixou ao livre critério dolegislador ordinário definir esta matéria.

Por que apenas dolegislador ordinário, se poderá então indagar? Por que não também da autoridade administrativa competente? Por que um ato administrativo não pode regrar esta matéria, e somente uma lei poderá fazê-lo?

Naturalmente, por força doprincípio da legalidade, será a resposta apropriada e óbvia a ser dada diante de tais questionamentos. Como já se disse acima,é semprea lei que deve reger, sob todos os seus aspectos, a outorga da delegação prevista no art. 236 da Constituição Federal.Não se pode admitir, em tal campo, por ausência de qualquer delegação ou exceção constitucional explícita, a existência de quaisquerregulamentos administrativos autônomos ou independentes. Ato administrativo, por si só, jamais poderá ter legitimidade jurídica para,em caráter inovador, determinar a forma de processamento de um procedimento que implica na definição de direitos subjetivos de eventuais competidores[129].

Com efeito, omodus de realização destes concursos de remoção afetará diretamente a possibilidade de notários e registradores virem a ter acesso a outras serventias, definindo eventuais direitos subjetivos que possam existir neste campo. As regras jurídicas que podem delimitar este acesso, portanto, somente porlei poderão ser estabelecidas. No silêncio da lei, o administrador não poderá agir, realizando a seu livre talante e critério procedimentos seletivos de remoção. Afinal, como já se disse em bom tempo,“administrar é aplicar a lei de ofício”. E onde inexiste lei, inexiste poder de ação administrativa, seja ele vinculado ou discricionário[130].

Ademais, é a própria Constituição que reafirma escancaradamente este entendimento ao estabelecer no próprioart. 236, § 1º, que“alei regulará as atividades” dos notários, oficiais de registro e seus prepostos,“e definirá a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário”(grifo nosso).Não pode, portanto, sem lei a ser regulamentada, um órgão jurisdicional administrativamente disciplinar qualquer questão atinente a esta atividade, inclusive no que concern
e aomodus pelo qual haverá de ser, por concurso, outorgada a particulares.

Aliás, caso assim não fosse, notários e registradores poderiam vir a ter direito, ou ser impedidos no acesso, à novas serventias, sem prévia lei que regulasse a matéria. E como diz a Constituição Federal, ao definir no seu art. 5º, II, o princípio da legalidade,“ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O princípio da separação de poderes, na conformidade do estabelecido no art. 2º da nossa Carta Constitucional, também será ferido no caso. É o Poder Legislativo que deve, por lei, fixar omodusde realização do concurso de remoção para o exercício da atividade notarial e de registro, e não o Poder Judiciário no exercício de função administrativa atípica ou imprópria. Ao assim proceder, o Judiciário Estadual estará indo além do campo constitucional das suas atribuições, e assumindo o exercício de função legislativa de forma abusiva e indevida.

Desse modo concluímos, assim, que todo e qualquer ato administrativo de natureza normativa que tenha sido já estabelecido, ou venha ainda a ser firmado, por Tribunal Estadual, e que estabeleça a obrigatoriedade de que os concursos de remoção de notários e de registradores devam ser realizados por meio de concurso público de provas e títulos seráinválido. Além de ofender ao disposto no art. 16 da Lei nº 8.935/94, na sua vigente redação, acabará por colidir diretamente com o texto da Carta Constitucional de 1988. Ofenderá aoprincípio da legalidade (art. 5º, II, e 37,caput, da C.F.) e aoprincípio da separação de poderes (art. 2º da C.F.). Será, assim, simultaneamente, passível de ser juridicamente qualificado, em face do nosso direito positivo, comoilegal einconstitucional.

 

 

 

IV – CONCLUSÕES FINAIS

 

 

 

Diante de tudo o que restou exposto, podemos agora ofertar as nossas respostas objetivas aos quesitos que nos foram ofertados pelo Consulente:

 

 

1) Sob o ponto de vista de sua natureza jurídica, as atividades notariais e de registro são consideradas um serviço ou uma função pública, prestada por particulares, mediante ato de delegação do poder público?

 

R: Na conformidade do art.236, da Constituição Federal, as atividades notariais e de registro devem ser consideradas como uma particular espécie da função administrativa do Estado (função pública), e por isso, submetida à disciplina do regime jurídico próprio do Direito Administrativo. Seu exercício, todavia, por força do mesmo dispositivo constitucional, deverá ser delegado a particulares.

 

 

2) Ainda sob o ponto de vista de sua natureza jurídica, o fato do “ingresso” em tais atividades se dar por meio de concurso público (a teor do que dispõe a parte inicial do art. 236, caput, da Constituição Federal), significa que os notários e registradores são considerados funcionários ou servidores públicos?

 

R:Não. Por razões exaustivamente apresentadas ao longo desta manifestação opinativa, a nossa conclusão é a de que, a despeito da controvérsia ainda hoje existente, notários e registradores não são espécie de servidores públicos. Devem ser considerados como agentes públicos integrados à categoria dos particulares em colaboração com o Poder Público que atuam mediante delegação. O fato do ingresso na atividade notarial e de registro, por força do disposto no art.236, § 3º, da Constituição Federal, se dar por meio de concurso público de provas e títulos, em nada altera esta conclusão. O ingresso na atividade notarial e de registro por meio de concurso público de provas e títulos apenas caracteriza um aspecto de semelhança entre a categoria dos notários e dos registradores e os servidores públicos. Vários outros aspectos atinentes aos respectivos regimes jurídicos que lhes são próprios acabam por diferenciá-los, com grande nitidez.

 

 

 

3) Ainda sob o mesmo enfoque, as atividades notariais e de registro têm natureza tipicamente administrativa?

R:Sim.O disposto no art236, da Constituição Federal, não deixa a menor dúvida de que as atividades notariais e de registro têm natureza tipicamente administrativa, e se submetem aos princípios e ao regime próprio que disciplina esta particular espécie de função estatal (regime jurídico-administrativo ou regime de direito público). O fato de por força deste mesmo mandamento constitucional ter de ser prestada por pessoas privadas mediante delegação do Poder Público, em nada modifica esta conclusão.

 

 

4) A delegação, como ato sucessivo ao concurso de ingresso, e título jurídico que investe os exercentes de atividade notarial e de registro, atribuiu também aos mesmos a titularidade desses ofícios ou funções que lhe estão sendo delegadas pelo Poder Público?

R:Sim.A delegação firmada a notários e a registradores os investe na titularidade do exercício das funções que lhe são delegadas. E aqui será absolutamente indiferente se a delegação foi firmada a título originário (provimento por meio de concurso público de provas e títulos) ou derivado (remoção por meio de concurso de títulos). O delegado será sempre titular da serventia que ocupa e responsável direto pela atividade que realiza no exercício de suas competências administrativas.

 

 

5) O artigo 236, § 3.º da Constituição Federal determina que o “ingresso” na atividade notarial e de registro depende de concurso de provas e títulos. Em sua parte final, ao disciplinar que não será permitido “que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”, está o referido artigo constitucional determinando também qu
e para o provimento das vagas por remoção deve ser obrigatoriamente realizado concurso público de provas e títulos?

R:Não. O concurso de remoção previsto no art.236, § 3º, da Constituição Federal é um procedimento de seleção interno ao sistema notarial e de registro passível de ser disputado apenas por aqueles que já receberam a delegação originária do Poder Público, ou seja, por aqueles que já são notários e registradores (“concurso”). Logo, jamais será um“concurso público” no sentido próprio da expressão, na medida em que não é aberto à disputa de todos os membros da coletividade que atendam aos requisitos mínimos legalmente estabelecidos para o exercício da atividade notarial e de registro. Também não decorre da nossa vigente Constituição de que necessariamente deva ser um concurso de “provas e títulos”. O legislador constitucional deu liberdade discricionária para que o legislador ordinário estabeleça o “modus” de realização desse concurso que, poderá ser, de acordo com o que dispuser a lei, de “provas”, “de títulos”, ou “de provas e títulos”.

 

 

6) O artigo 16 da Lei n.º 8.935/94, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 10.506/02, ao regulamentar o referido artigo constitucional, disciplinando que duas terças partes das vagas deverão ser preenchidas por meio de concurso de ingresso, de provas e títulos, e uma terça parte por remoção, mediante concurso de títulos, padece de alguma inconstitucionalidade?

R:Não.Na medida em que a Constituição deu, ao legislador ordinário, liberdade discricionária para estabelecer o “modus” pelo qual deve ser realizado o concurso de remoção para o preenchimento de serventias vagas, o artigo 16 da Lei nº 8.935/94, na sua vigente redação, em nada afronta o texto da nossa lei maior. Pelas razões detalhadamente expostas no corpo desta manifestação opinativa, é necessário concluir que este dispositivo legal está plenamente adequado ao texto do art. 236, § 3º, e ainda a todas as demais regras e princípios da Constituição Federal.

 

7) Poderá um Tribunal de Justiça Estadual deixar de cumprir o art. 16 da Lei nº 8.935/94, alegando a sua inconstitucionalidade?

R:Não. Fosse inconstitucional este dispositivo, e em tese se poderia admitir que mesmo sem uma suspensão liminar deste dispositivo legal por decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, este comportamento seria legítimo. Todavia, esta inconstitucionalidade não existe e, nessa medida, os Tribunais de Justiça Estaduais que assim agirem estarão exercendo atividade administrativa atípica em claro e escancarado descumprimento da lei. Os concursos públicos que eventualmente forem realizados com a ofensa do disposto no art. 16 da Lei nº 8.935/94 deverão ser invalidados.

 

8) O titular de uma delegação pode ingressar, por meio de concurso de remoção, em outra serventia notarial ou de registro de natureza distinta daquela em que foi originalmente provido?

R:Não. Os concursos públicos para a outorga da delegação originária devem ser realizados para as serventias notariais e de registro, considerando-se as suas respectivas especialidades funcionais definidas no art. 5º da Lei nº 8.935/94. Nessa medida, para que o princípio do concurso público e o da isonomia sejam respeitados, os concursos de remoção devem apenas ser admitidos entre titulares de serventias que tenham a mesma especialidade funcional. Se o notário ou o registrador titular de uma serventia pretender receber delegação de serventia de especialidade distinta terá de se submeter novamente a concurso público para a obtenção de nova delegação originária.

 

 

9)Na hipótese de ser reconhecida a inconstitucionalidade do art. 16 da Lei nº 8.935/94, seria possível a um Tribunal de Justiça Estadual disciplinar, por ato administrativo, a realização de concursos de remoção para notários e registradores, fixando a modalidade de provas e títulos?

R:Não.Somente a lei poderá regular o “modus” pelo qual poderá ser realizado o concurso de remoção estabelecido no art. 236, § 3º, da Constituição Federal. Ato administrativo de natureza normativa, mesmo que firmado por Tribunal de Justiça Estadual no exercício de suas funções atípicas, não tem legitimidade para fazê-lo. Isto porque, em primeiro lugar, é o próprio artigo art. 236, § 1º, da nossa Constituição, que afirma que é a “lei” que deve regular as atividades dos notários e dos registradores e definir a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário. Em segundo lugar, porque o princípio da legalidade (arts. 5º, II, e 37 da C.F.) e o princípio da separação de poderes (art. 2º, da C.F.) também restarão igualmente ofendidos caso um ato administrativo venha a estabelecer quaisquer regras a respeito.

 

É o que, s.m.j., nos pareceu adequado ponderar, argumentar e responder, nos termos da consulta que nos foi apresentada.

 

São Paulo, 3 de Setembro de 2007

 

Marcelo Figueiredo

OAB/SP 69.842

Professor Livre-Docente e Associado de Direito Constitucional da PUC-SP

 

 

 

 

 

 

 


[1] “Art.170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e nalivre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princ
ípios:

(…)

IV –livre concorrência; (…)”

[2] A respeito, estabelece a Constituição Federal:

“Art.173.Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado será permitidaquando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. (grifos nossos)

[3] Vem a talho relembrar aqui os sempre festejados ensinamentos do ilustre professor titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:“… a Administração Pública não tem título jurídico para aspirar reter em suas mãos o poder de outorgar aos particulares o direito ao desempenho da atividade econômica tal ou qual: evidentemente, também lhe faleceria o poder de fixar o montante da produção ou comercialização que os empresários porventura intentem efetuar. De acordo com os termos constitucionais, a eleição da atividade que será empreendida assim como o ‘quantum’ a ser produzido ou comercializado resultam de uma decisão livre dos agentes econômicos.O direito de fazê-lo lhes advém diretamente do Texto Constitucional e descende, mesmo, da própria acolhida do regime capitalista, para não se falar dos dispositivos constitucionais supramencionados” (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 22ª. Ed., 2007, p. 766) (grifo nosso).

[4]Curso, p. 659 e 660.

[5]Esta é também a opinião categórica de JOSÉ AFONSO DA SILVA ao declarar que: “É fora de qualquer dúvida que as serventias notariais e registrais exercem função pública” (in Comentário Contextual à Constituição, Malheiros, 2005, p. 873). Cabe observar, porém, que ainda hoje há quem não pense assim, por entender que a função exercida por notários e registradores seria “pública” e “privada”, submetendo-se assim a um regime especial de natureza híbrida. Esta posição reflete, a nosso ver, uma clara confusão, entre a natureza privada dapessoa que, aprovada em concurso público, passa a titularizar a serventia notarial ou registral, e aatividade pública que a ele foi outorgada pelo Poder Público. A respeito ,registre-se a opinião da qual, pelas razões expostas, discordamos, do ilustre publicista JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, queem seu Manual de Direito Administrativo chega a sustentar que: “No que concerne especificamente aos titulares de registros e ofícios de notas, cujas funçõessão desempenhadas em caráter privado,por delegação do Poder Público, como consigna o art. 236 da CF, sujeitam-se elesa regime jurídico singular, contemplado na Lei nº 8.935, de 18/11/94.Apesar de a função caracterizar-se como de natureza privada, sua investidura depende de aprovação em concurso público e sua atuação se submete a controle do Poder Judiciário, de onde se infere quese trata de regime jurídico híbrido. Não há dúvida, todavia, de que estes agentes, pelas funções que desempenham, devem ser qualificados como colaboradores do Poder Público, muito embora não sejam ocupantes de cargo público, mas sim agentes que exercem, em caráter de definitividade,função pública sujeita a regime especial” (17ª. Ed., Lumen Júris, Rio de Janeiro, p. 513).

[6] Droit Administratif Allemand, L.G.D.J., traduit par Michel Fromont, 1994, p. 36.

[7]Traité de Droit Constitutionnel, 2ª. Ed., Librairie Fontemoing, 1923, v. II, p. 70).

[8]Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, 1981, p. 191.

[9] Como chegou a observar o saudoso mestre e sempre lembrado Reitor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO acerca do conceito de serviço público:“A substituição da concepção individualista pela socialista de Estado deu-lhe especial destaque, pois fez crescer, extraordinariamente, o seu campo. O Estado erige uma atividade em serviço público quando entende o interesse geral não poderia ser satisfeito, ou o seria de maneira insuficiente, se não assumisse tal encargo (in Princípios Gerais de Direito Administrativo, Forense, 1979, vol. I, p. 16. Naturalmente, com o renascimento da visão neoliberal do Estado, uma outra visão ideológica passou a permear os estudos que se deixaram influenciar por esta visão do Estado. E assim, até hoje, permanece ideológica e politicamente condicionada, a formulação das diferentes formas de se conceber e de se conceituar o serviço público.

[10] Por oportuno, vale citar breve comentário feito a respeito por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO quando ao reconhecer que o“serviço público constitui-se em uma das mais importantes noções do direito administrativo brasileiro” pontua que“diante da orquestrada zoeira da privatização, em diferentes partes do mundo, mas sobreposse entre os sub ou semi-desenvolvidos (como é natural) e até mesmo no Brasil – em desrespeito aos dizeres da Constituição – chegou-se a apregoar o fim da noção de serviço público e uma suposta superação do Direito Administrativo até então existente, substituídos um e outro pelas maravilhas da livre iniciativa e da auto-regulamentação do mercado, tudo no melhor estilo e sotaque norte-americano. Os que disso se fizeram arautos cumpriram, em sua maioria sem se aperceber, o papel de massa de manobra para a portentosa campanha de ‘marketing’ conduzida pelos organismos financeiros internacionais manejados pelos países cêntricos, nos quais, para penetrar livremente nos mercados dos países emergentes e praticar o ‘vampirismo econômico’ foram elaborados os motes ‘globalização’ e ‘reforma do Estado’, em termos que lhes facilitassem os objetivos” (Curso, p. 652, nota 5).

[11] Lembremos que, ao lado de outras normas de direito positivo, o nosso texto constitucional faz expressa menção ao conceito de serviço público no seu art. 175,caput,ao afirmar que:“Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Desse modo a definição do que seja serviço público, dentro de uma interpretação sistemática das nossas normas constitucionais, não pode ser ignorada ou abandonada, por maior que seja a polêmica que exista sobre o tema.

[12]O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988, Malheiros Editores, 2003, p. 87.

[13]Direito Administrativo, Atlas, 19ª. Ed., 2006, p. 113 e 114

[14] Valemo-nos aqui dos magistrais ensinamentos de AGUSTÍN GORDILLO quando analisa a liberdade de estipulação relativamente aos conceitos do Direito Administrativo. Como ensina o mestre argentino“todas las palabras del lenguaje tienen una zona central donde su significado es más o menos cierto y una zona exterior en la cual su aplicación es menos usual y se hace más dudoso saber si la palabra puede ser aplicada o no. Ello se resuelve en parte buscando cuál es el contexto en que la palabra ha sido empleada por quien la utiliza, la expresión en que aparece, o incluso las situaciones con las cuales está en uma función de conexión. (…) Pero ello no soluciona suficientemente la cuestión en el caso de las palabras del derecho administrativo, pues su zona periférica de incertidumbre es muy amplia: se torna por ello metodologicamente necesario tratar de estipular un campo de aplicación lo más preciso que sea posible (nunca lo será totalmente) para saber entonces cuál es el campo de aplicación de un determinado régimen jurídico y no outro. Esto no le dará exactitud al análisis de los problemas jurídicos, pero si más racionalidad en el tratamiento de tales problemas que empleando palabras que el autor supone ‘verdaderas’ o necesariamente válidas’ (Tratado de Derecho Administrativo, Del Rey, tomo 1, 7ª.Ed., p. I-17).

[15]Curso, p. 650.

[16] Observe-se que este conceito é extremamente limitador e restritivo, na medida em que como reconhece o seu próprio autor, inclui em seu campo de definição apenas os serviçosuti singuli,ou seja os serviços passíveis de serem fruídos individualmente por todos os administrados. Deles afasta, por conseguinte, os denominados serviçosuti universi que prestados pelo Poder Público podem ser coletivamente fruídos por todos. Isso tem propiciado algumas críticas a esta formulação, que em momento próprio devem ser analisadas e debatidas. Todavia, por fugir inteiramente ao escopo do presente trabalho, a elas não nos referiremos, e nos limitaremos a adotar este conceito apenas como uma natural pactuação para o desenvolvimento das linhas que a seguir temos necessidade de desenvolver.

[17] Op. cit., p. 874

[18]V. texto na nota 11, supra.

[19] Cumpre observar que o próprio CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, em obra monográfica específica, ao comentar o seu conceito de serviço público, faz idêntica observação. Pondera que“na definição de serviço público proposta no presente trabalho, vale encarecer que, deliberadamente, encaramos o objeto em termos estritos, de acordo com a técnica jurídica que nos parece a melhor, ou seja: referimo-nos apenas aos serviços de ordem material prestados pelo Estado;donde ficarem excluídos os de ordem puramente jurídica, tais os serviços cartorários e de tabelionatos ou registros públicos. Estes correspondem a intervenções do Estado em atos da vida particular volvidos basicamente ao oferecimento de certeza jurídica e segurança jurídica aos indivíduos. Por isso, sua prestação indireta, que configura a delegação de função ou ofício público, é instituto nitidamente diferenciado da concessão de serviços públicos. A forma de encarar o serviço público, por nós adotada, coincide coerentemente com a distinção que acolhemos entre ‘atividade material’ e ‘atividade jurídica da Administração’, ou seja, entre funções públicas administrativas de um lado, e serviços públicos de outro” (in Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta,Ed. Revista dos Tribunais, 2ª.Ed., 1979, p.1, nota 1).

[20] Esta constatação tem fortes raízes históricas. A respeito lembremos a lição de De Falco, citada por João Mendes Júnior, em sua obra “Orgams da Fé Pública“: “Até a metade do século XIII não se acham notários com a qualidade de officiaes publicos; mas ás vezes, o officio de notario via-se confundido com o de juiz, por força das tradições historicas que, até aquelle tempo, tinham tornado necessário o ministerio do magistrado para dar caracter publico ao acto notariado. Entretanto, os juizes pela multiplicidade dos actos que deviam cumprir como notários, começaram a delegar essas funcções aos seus escrivães e chancelleres, os quaes pouco a pouco foram se tornando peritissimos na sciencia das fórmas e constituiram uma classe de officiaes publicos separada e independente. Operou-se, então, uma mudança substancial no caracter e na indole do officio notarial: o ministerio dos notário não foi mais uma emanação da autoridade judiciária, como nos primeiros tempos o tinha sido da autoridade sacerdotal, mas tornou-se uma delegação immediata do poder soberano. Os notarios foram os delegados directos e especiais do governo, para tornar executórios os actos e contractos a que as partes devessem ou quizessem imprimir o caracter de autenticidade proprio dos actos de autoridade pública.”(apud In “Sobre a responsabilidade civil dos notários e registradores”, São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade Paulista, UNIP, 1997 disponível no sítiowww.primeirosp.com.br/Flauzilino.rtf).

Acerca da matéria também já se havia pronunciado com a habitual precisão OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, muito antes da Constituição de 1988. Disse o mestre que“ao se considerarem tabeliães e escrivães, titulares de ofício público, como delegados de atividade jurídica do Estado, não se dá com isso a sua equiparação aos delegados de encargos públicos, ou melhor, aos concessionários de obras e serviços públicos. Ambos recebem do Estado delegação para exercer, em nome e conta própria, atividades próprias do Estado, mas de natureza absolutamente distinta, como sejam as de ofício público, que envolvem o exercício de atividades ou de efeitos jurídicos, e as de empresa pública, mediante concessão de obra ou de serviço, em que efetivam a prestação de atividade material, de comodidade oferecida ao público. Por isso, os concessionários se organizam em empresas ou sociedades comerciais ou civis e aqueles, em princípio, não podem isso fazer(op. cit.,vol. II, p. 368)

[21]Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 8ª. Ed., 2006, p.597.Voz discordante deste ponto de vista, nos dias atuais, é a da ilustre Ministra do Supremo Tribunal Federal CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA. Frisando que sua posição contraria os ensinamentos de HELY LOPES MEIRELLES e CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, afirma a administrativista mineira que“agente público é a pessoa física que, vinculando-se juridicamente a uma pessoa pública, dispõe de competência legalmente estabelecida para o desempenho de função estatal em caráter permanente ou transitório. (…) Como agente público é considerado aquele que mantém um vínculo como Estado, em geral sempre se deixou de considerar como tal quem, conquanto atuando em nome do Estado não o compunha. Assim, os particulares que, por meio de um elo contratualmente firmado, por exemplo, e sem integrar a pessoa estatal, desempenhavam funções que lhes eram delegadas não eram compreendidas no universo dos agentes públicos. Continuavam particulares agindo com o Estado e não como Estado, qualidade inerente ao integrante da pessoa pública. Nesse sentido, aliás, é cuidadoso o constituinte brasileiro de 87/88 na referência a agente público. Quando menciona o particular que atua no exercício de função pública mediante delegação, por exemplo, não emprega a expressão agente público, mas apenas agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (art.5º, LXIX, entre outros), ficando claro, então, que, no sistema constitucional brasileiro, a expressão agente público não inclui os particulares, mesmo aqueles que atuam em regime de colaboração com o Poder Público, mas que permanecem naquela condição jurídica (de particulares, agentes de pessoas jurídicas de direito público e não de agentes públicos) (Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos, Saraiva, 1999, p. 60 e 61).

[22] Antes da Constituição Federal de 1988, muitos afirmavam que notários e registradores seriam“funcionários públicos”. JOSÉ MÁRIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO,no seu Manual dos Tabeliães (Saraiva, 1975), por exemplo, sustentava que“os Serventuários da Justiça, mesmo os do foro extrajudicial,são funcionários públicos.” (…) “Pode-se, pois, afirmar que os Serventuários da Justiça do foro extrajudicial, na categoria incluídos os Tabeliães,são funcionários do Estado, funcionários públicos vitalícios, quando preencham requisitos do aludido tempo de serviço. Em prol dessa vitaliciedade, falam assim reiteradamente os textos constitucionais, o modo de investidura, o exercício de função eminentemente pública, a fé que se atribui a seus atos, as dependências hierárquicas ao Poder Judiciário, sendo irrelevante, para a descaracterização, a forma de estipêndio” (grifos nossos)

[23]In Teoria Geral do Direito Notarial, Saraiva, 2ª. Ed., 2007, p.43.Afirma, a respeito, o estudioso que “havia uma profunda discussão acerca de ser o notário um funcionário público ou um agente delegado, sendo a primeira solução a que mais se difundiu, tornando-se esmagadoramente majoritária, ao contrário da segunda que minguou entre alguns juristas”.

[24]Sistemas de Registros de Imóveis, Saraiva, 2006, p. 619 e 620.

[25]Op. cit. (v. nota 20, supra).Ao final desse mesmo estudo firma a seguinte conclusão: “os delegados dos serviços de notas e de registros – tabeliães e oficiais de registro, embora desempenhem atividades de caráter privado por delegação do poder público,guardam a qualificação de servidores públicos(grifo nosso).

[26]Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 32ª ed., 2006, p. 80.Esclarecendo seu ponto de vista afirmou ainda o saudoso administrativista que“esses agentes não são servidores públicos, nem honoríficos, nem representantes do Estado; todavia, constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público. Nesta categoria encontram-se os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos, os serventuários de ofícios ou cartórios não-estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, as demais pessoas que recebem delegação para a prática de alguma atividade estatal ou de interesse coletivo” (op. cit., p. 80 e 81).

[27]Curso, p. 241 e 242.

[28] Op. Cit., p. 505.

[29] Op. Cit., p. 513.

[30] Curso de Direito Administrativo, Saraiva, 2005, p. 573 e 574.

[31] O Acórdão tem a data de 7 de março de 1996.

[32] Em seu voto, o Ministro SIDNEY SANCHES, de passagem, menciona também como argumento o fato de o art. 236, §3º, da Constituição Federal mencionar o concurso de remoção nos casos em que a serventia fique vaga. Diz ele que“até o concurso de remoção de serventuários (§3º) está a evidenciar que se trata de função pública, pois concurso para se remover alguém de uma atividade privada é que me parece incompatível com o sistema constitucional”.

 

[33] Estes votos serão referidos e analisados a seguir quando do oferecimento da nossa posição pessoal sobre o tema. Observe-se que também votou contrariamente à tese vencedora o Ministro FRANCISCO REZEK. Ademais, cumpre ainda aqui mencionar a interessante posição manifestada naquele julgamento pelo Ministro MAURÍCIO CORREA. Embora sustentando que os serventuários dos cartórios de notas e registrosnão são servidores públicos, mas“particulares em colaboração com a administração”, reconheceu a necessidade de que fossem submetidos à aposentadoria compulsória. Afirmou que“a melhor tese é a que sustenta a compulsoriedade da aposentadoria aos notários e registradores, porque exercem função pública delegada pelo Poder Público, pois não é da tradição do nosso direito a vitaliciedade em função pública”.Desse modo, votou com a maioria, mas partindo de premissa distinta da apresentada pelos Ministros que acompanharam o voto vencedor do Relator.

[34] Incorreu assim em equívoco, s.m.j., o eminente JOSÉ AFONSO DA SILVA quando em obra datada de 2005 afirmou, ao se referir à decisão proferida no RE 178.236-6, que“essa decisão do colendo STF, com a devida vênia, não pode ser tida como jurisprudência consolidada sobre o assunto, porque – salvo engano – é única a apreciá-lo depois da Constituição de1988” (op. cit., p. 876).Com efeito, várias decisões do Pretório Excelso se seguiram àquela, adotando idêntico entendimento. Veja-se, a respeito, a decisão tomada no julgamento do Recurso Extraordinário nº 189.736-SP, em que foi Relator o Ministro Moreira Alves, logo após o julgamento do aludido RE 178.236-6 (26.03.96). É esta a ementa do v. Acórdão:

“EMENTA: Aposentadoria dos titulares das serventias de notas e registros. Aplicação a eles da aposentadoria compulsória prevista no art. 40, II, da Constituição Federal.

– Há pouco, o plenário desta Corte, por maioria de votos ao julgar o R.E. 178.226, relator o Sr. Ministro Octavio Gallotti, decidiu que os titulares das serventias de notas e registros estão sujeitos à aposentadoria compulsória prevista no art. 40, II, da Constituição Federal. Entendeu a maioria deste Tribunal, em síntese, que o sentido do art. 236 da Carta Magna foi o de tolher, sem mesmo reverter, a oficialização dos cartórios de notas e registros, em contraste com a estatização estabelecida para as serventias do foro judicial pelo art. 31 do ADCT; ademais, pelas características desses serviços (inclusive pelo pagamento por emolumentos que são taxas) e pelas exigências feitas pelo art. 236 da Carta Magna (assim, o concurso público de provas e títulos para provimento e o concurso de remoção), os titulares dessas serventias são servidores públicos em sentido amplo, aplicando-se-lhes o preceito constitucional relativo à aposentadoria compulsória determinada pelo citado artigo 40, II, da Constituição Federal.

– Dessa decisão não diverge o acórdão recorrido

Recurso extraordinário conhecido pela letra “c” do artigo 102 da Constituição, mas não provido.”

Em idêntico sentido devemos mencionar as seguintes decisões da nossa Corte Suprema: RE 191030, relator Ministro OCTÁVIO GALLOTTI, 05.12.97; RE 189741, relator Ministro CARLOS VELLOSO, 25.11.97; RE 199801, relator Ministro MARCO AURÉLIO, 17.04.98, SS-AGR 1817-PE (Agravo Regimental na Suspensão de Segurança), relator Ministro CARLOS VELLOSO, 01.03.01. Observe-se que no citado julgamento do RE 199801, o relator Ministro MARCO AURÉLIO, fazendo ressalva da sua convicção pessoal em sentido contrário e reproduzindo integralmente o seu voto divergente proferido no RE 178.236-6, “visando à eficácia da unidade do direito“, e em atendimento à posição da maioria dos membros do Tribunal, negou acolhimento ao recurso. Com isso demonstra-se que, efetivamente, a posição jurisprudencial do STF estava consolidada no entendimento de que notários e registradores deveriam ser entendidos comoservidores públicos, ao menos, como veremos a seguir, até dias mais recentes.

 

[35] Esta foi a posição sustentada pelo relator Ministro SIDNEY SANCHES, que, quando da votação do RE 178.236, não havia apresentado voto divergente ao do Relator. Foi, com a mesma argumentação, neste julgamento, acompanhado pelo Ministro NELSON JOBIM.

[36] Desse modo se posicionou o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, em estrita consonância com o seu posicionamento minoritário assumido quando da votação do RE 178.236.

[37] Este posicionamento foi assumido pelo Ministro MAURÍCIO CORREIA, a nosso ver, em razões de decidir que apresentam nuances um pouco diferenciadas da expressa quando da votação do RE 178.236. Foi acompanhado em sua conclusão pelos Ministros NERI DA SILVEIRA e CARLOS VELLOSO.

[38] É a posição sustentada pelo Ministro OCTAVIO GALLOTTI.

[39] Deve ser observado que esta posição foi tomada apesar da advertência do relator de que, durante a pendência de julgamento, a redação do art. 38 da Constituição Federal havia sido alterada pela Emenda Constitucional nº 19/98. A redação original estabelecia que as disposições do artigo diziam respeito ao“servidor público em exercício de mandato eletivo”.Com a nova redação passou a afirmar o texto da nossa Lei Maior que estas disposições seriam aplicáveis“ao servidor público da administração direta, autárquica e fundacional, no exercício de mandato eletivo”. Indagou então o relator se seria possível admitir-se que notários e registradores fossem enquadrados comoservidores públicos da administração direta, autárquica e fundacional.A manutenção do resultado nos leva a supor que sim, ao menos na opinião da maioria dos Ministros que participaram do julgamento.

[40] Merece ser analisado o debate verificado quando do julgamento da matéria, na medida em que expressa o questionamento da posição até então solidamente sustentada pela maioria. Destacam-se apenas as seguintes intervenções:

 

“O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – Então, o problema, é saber se o serviço deve ser criado por lei ou não, porque não há cargo público, principalmente agora que se estabeleceu, até com relação à aposentadoria, tratar-se de cargo efetivo”.

(…)

“O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO (Presidente e Relator) – Não estou irredutível.Só não me convenço de que seja cargo público.

O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA- Mas isso é uma espécie de unanimidade; há um consenso quanto a não ser cargo público

(…)

” O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES –Ficamos no problema da aposentadoria aos setenta anos, onde não havia necessidade de definir se era cargo público; bastava dizer que era um servidor público em sentido amplo. Tanto que a Constituição não teria alterado isso, mas apenas o problema da aposentadoria, porque se tratava de servidor de cargo efetivo, o que significava, então, serem servidores de outros cargos, funções e até de outras unidades.”

(…)

(…)”Esclareço, entretanto, quea matéria está a merecer um posicionamento definitivo da Corte, precisamente sobre a natureza desses serviços ou funções: segundo uns, serviços; segundo outros, são apenas funções notariais ou de registro-, ou seja, seriam simples atividades públicas, na expressão da Constituição: serviços desempenhados por forma privada. (…)Prefiro seguir orientação de índole prudencial, suspendendo a norma, até que o Tribunal adote posição sobre esse problema dos notários e registradores, quanto à sua situação jurídica e à natureza de seu serviço.” (grifos nossos)

 

[41] O texto original da Constituição era o seguinte:

“Art. 40. O servidor será aposentado:

(…)

II – compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço; (…)”

 

Com o advento da Emenda Constitucional nº 20, acima mencionada, o texto passou a ser o seguinte:

“Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado o regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

§1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma do §3º:

I- (…)

II- compulsoriamente, aos 70 (setenta) anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição;(…)”

Atualmente, a redação em vigor é outra, por força da Emenda Constitucional nº 41/2003. É este o atual texto:

“Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

§1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§3º e 17:

I- (…)

II- compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição; (…)”.

[42] Após o advento da Emenda Constitucional nº 20, em 15 de dezembro de 1998, em um primeiro momento, ainda manteve o STF, inercialmente, o entendimento anterior. A respeito, v. a decisão proferida no SS-AGR 1817/PE (Agravo Regimental na Suspensão de Segurança), em que foirelator Ministro CARLOS VELLOSO, em 01.03.01, ou seja, após o início da vigência daquela emenda constitucional.

[43] Diverge aqui o Ministro JOAQUIM BARBOSA, para quem o princípio republicano impõe a necessidade de aposentadoria compulsória para notários e registradores. Para ele“é insustentável a tese, veiculada na ação, de que alguém possa deter uma parcela da autoridade pública, por mínima que seja, em caráter eterno, isto é, até que lhe sobrevenha a morte”. Todavia, observe-se que, em julgados posteriores, a posição de que após a Emenda Constitucional 20/98 não se poderá admitir a aposentadoria compulsória desta particular espécie de agentes públicos vem sendo mantida. V. a respeito, o julgamento proferido em Questão de Ordemem Ação Cautelar (AC-QO) nº 218/RE, em que foi relator o Ministro CARLOS VELLOSO (13.04.04).

[44] Excelente síntese desse julgado é apresentada por NICOLAU BALBINO DOS SANTOS na sua monografiaRegistro de Imóveis (Saraiva, 11ª. Ed., 2006, p.24):

” Para o relator, que reafirmou o voto proferido na sessão plenária de 11 de novembro de2004, a vitaliciedade da função exercida pelos oficiais de registro e tabeliães não se presume, pois poderia ser estabelecida pela Constituição. ‘Nenhuma função pode ser exercida eternamente’, ressaltou o ministro, que defende a submissão desses servidores à aposentadoria compulsória.

A divergência foi iniciada com o voto do Ministro Eros Grau, ainda em novembro de 2004, que julgou procedente a ação. Na ocasião, o julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista do Ministro Carlos Ayres Britto. Ao ler seu voto-vista, hoje, Ayres Britto decidiu acompanhar a divergência. Ele argumentou que a formação de qualquer juízo sobre a matéria passa pela análise jurídica da atividade exercida pelos notários e registradores. Nesse sentido, Britto afirmou que a Constituição Federal (art. 236) deixa claro que os serviços são exercidos em caráter privado por delegação do poder público.

‘Os serviços notariais e de registro são típicas atividades estatais mas não públicas propriamente’, reforçou Ayres Britto. O Ministro conclui que se as atividades não se caracterizam como serviço público e não se traduzem em cargo público, porque os notários exercem apenas função pública, eles não estaria sujeitos à aposentadoria aos 70 anos”.

Já a ministra Ellen Gracie também sustentou, a favor da divergência, que a Emenda Constitucional n. 20/98 ao alterar o art. 40 da Constituição Federal limitou a aposentadoria compulsória aos servidores titulares de cargos efetivos”.

 

[45] A expressão é de PAULO ROBERTO CARVALHO RÊGO,in Registros Públicos e Notas, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p.80.

[46] Antes da Constituição de1988, a doutrina pacificamente admitia a utilização da expressãofuncionários públicos para identificar todos os servidores que ocupavam cargos públicos. Aliás, esta expressão era consagrada no texto da Constituição de1967. A seção VIII, do Capítulo VIII, do Título I, daquela Carta, era denominada“Dos Funcionários Públicos”.Com o advento da atual Lei Maior a expressão passou a não ter maisstatus constitucional, sendo hoje a Seção II, do Capítulo VII, do Título III, denominada“Dos Servidores Públicos”(de acordo com a EC 18/98). Isso tem levado muitos autores a não mais adotarem a expressãofuncionário público,com o objetivo de identificar particular espécie do gêneroservidores públicos,como outrora se fazia. Contudo, muitas leis estaduais e municipais ainda hoje utilizam a expressão. Como ensina MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO“na vigência da Constituição anterior, utilizava-se a expressão funcionário público para designar o atual servidor estatutário. A expressão mantém-se em algumas leis mais antigas, como é o caso da Lei Paulista nº 10.261, de 28-10-68, que instituiu o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo, ainda em vigor, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 942, de 6-6-2003. Essa categoria só existia na Administração Direta (incluindo Executivo, Judiciário e Legislativo), pois apenas ele ocupava cargo público criado por lei e se submetia ao Estatuto” (op. cit., p. 503 e 504).

Nos dias atuais, a expressão funcionário público ainda continua sendo utilizada pela legislação penal. O Capítulo I, do Título XI, o nosso vigente Código Penal de 1940 é denominado“Dos Crimes praticados por funcionários públicos contra a Administração em Geral”. Nele o art. 327, no seucaput, definefuncionário públicopara os efeitos penais” como sendo“quem, embora transitoriamente, ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”. E no seu §1º acrescenta que“equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública”.Em geral, têm afirmado os penalistas que o conceito de funcionário público no Direito Penal deve equivaler ao de agente público no Direito Administrativo (v. a respeito, Comentários ao Código Penal de Damásio E. de Jesus, Saraiva, nas suas observações ao art. 327).

[47] V. nota 22supra.

[48] Observe-se, porém, que seria absurdo afirmar que o art. 236 da Constituição Federal teria produzido uma concepção teóricasui generis, sem qualquer referência doutrinária ou científica anterior. A título de curiosidade veja-se o exposto, muitas décadas antes da entrada em vigor da nossa Carta Constitucional, noDiccionario de Derecho Provado, Directores IGNACIO DE CASSO Y ROMERO e D. FRANCISCO CERVERA Y JIMÉNEZ-ALFARO, Editorial Labor, Barcelona, Madrid, Buenos Aires, Rio de Janeiro, México, Montevideo, 1950, p. 2761 e 2762.Embora utilizando a expressão funcionário público em sentido amplíssimo, ou seja, no sentido em que utilizamos a expressão agente público, afirmou-se naquela obra: “enlazando con esta distinción se considera que el Notario es funcionario público, pero no del Estado, aunque a éste no le sea indiferente el modo y las condiciones de prestarse el servicio.En opinión de Zanobini, trátase de un caso de ejercicio privado de funciones públicas. Esta calificación influye en la eficacia social del Notariado. Siempre se ha visto en el Notario, dice Nuñes Moreno, un técnico, un profesional, yno un representante del Estado,y menos aún un funcionario o un empleado del mismo. Junto a esta doctrina que responde al desarrollo actual del Derecho administrativo, pueden indicarse dos posiciones extremas: la que excluye toda consideración de funcionario, por atender solo al punto de vista técnico, y la que lo trata meramente como un agente del Poder central. Así Mengual (ob. Cit., infra, t. II, p. 39) define: “Funcionarios públicos que por delegación del Poder del Estado y con plena autoridad en sus funciones, aplican científicamente el Derecho.” (grifos nossos)

 

[49] Não estamos a admitir que o notável jurista ignorava o tema da justiça e os valores. Apenas ressaltamos um aspecto nodal de sua obra, exemplarmente exposto na famosa teoria pura do direito.

[50] A respeito é magnífica a observação feita pelo Ministro MARCO AURÉLIO ao contestar com veemência a atribuição da condição de servidores públicos a notários e a registradores quando do seu voto, no já referido RE 178.236-6. Afirmou ele, naquele momento com a posição minoritária do STF“somente o misoneísmo, ou seja, o apego ao anteriormente estabelecido, sem perquirir-se as razões do novo enfoque, da realidade constitucional, é capaz de levar a conclusão de que nada mudou, persistindo, em que pese a referência ao caráter privado contida no art.236, a delegação indispensável a ter-se o exercício sob tal modalidade, o passado, ou seja, os parâmetros próprios à delegação”.

[51] Diz o art. 20 da Lei nº 8.835/94: “Os notários e os oficiais de registro poderão, para o desempenho de suas funções, contratar escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos, e auxiliares como empregados, com remuneração livremente ajustada e sob regime da legislação do trabalho“.

[52] É o que sabiamente observa o MINISTRO MARCO AURÉLIO no seu já citado voto proferido quando do julgamento do RE 178.236. Com propriedade afirma:“os notários enquadrados no art. 236, em virtude de atuarem em caráter privado, não integram sequer a estrutura do Estado. Atuam em recinto particular, contando com o serviço de pessoas que também não tem a qualidade de servidor e que auferem salário em face de relação jurídica que os aproxima, regida não pela lei disciplinadora do regime jurídico único, mas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Sim, os empregados do Cartório, do notário dele titular, tais como este, nada recebem dos cofres públicos, não passando pela cabeça de ninguém enquadrá-los, mesmo assim, como servidores e atribuir-lhes os direitos inerentes a esse ‘status’…”.Semelhante observação também é feita por SEPÚLVEDA PERTENCE ao afirmar igualmente em seu voto proferido naquele julgamento que“a maioria se entregou ao exercício do que se tem chamado de interpretação retrospectiva, recusando-se a ver que a Constituição mudou”.

[53]Op. cit., p. 878.

[54] JOSÉ AFONSO DA SILVA, op. cit., p. cit.. É o que determina o art. 21 da Lei nº 8.935/94 ao dizer:” O gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é de responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços”.

[55] Seguindo, mais uma vez, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, podemos dizer que “a designação ‘ servidor público’, já hoje, tem algum alcance mais restrito do que dantes. Não mais é adequada para abarcar também os empregados das entidades da Administração indireta de Direito Privado, porquanto, sob a rubrica constitucional ‘Dos Servidores Públicos´ (que substituiu, desde o ´Emendão’, Emenda Constitucional 19, de 4.6.98, a rubrica ‘Dos Servidores Públicos Civis’), é visível que só estão considerados os integrantes de cargos ou empregos nas pessoas jurídicas de Direito Público. Assim, na atualidade, o nomen juris ‘servidor público’ é uma espécie do gênero ‘servidores estatais’ .(…) Servidor Público, como se pode depreender da Lei Maior, é a designação genérica ali utilizada para englobar, de modo abrangente, todos aqueles que mantêm vínculos de trabalho profissional com as entidades governamentais, integrados em cargos ou empregos da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público. Em suma: são os que entretêm com o Estado e com as pessoas de Direito Público da Administração indireta relação de trabalho de natureza profissional e caráter eventual sob vínculo de dependência“.Para o professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo são espécies de servidores públicos:os servidores titulares de cargos públicos na Administração Direta, nas autarquias e nas fundações de Direito Público da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, assim como no Poder Judiciário e no Poder Legislativo“,e os servidores empregados nestas mesmas pessoas (vínculo regido pela CLT). Neste último caso estão incluídos os empregados contratados que exercem funções subalternas, os remanescentes do regime anterior que foram estabilizados pelo art. 19 das Disposições Constitucionais Transitórias, e os contratados para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, na conformidade do art. 37, IX, da Constituição Federal(Curso, p. 239 e 240).

[56] HELY LOPES MEIRELLES,op. cit., p. 121.

[57] V. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO,Curso, p. 146 e 147.

[58] JOSÉ AFONSO DA SILVA,op. cit., p.877. A respeito, também se pronunciou em sentido semelhante o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, no voto vencido proferido no RE 178.236. Afirmou: “o que o Estado exerce sobre seus servidores é poder disciplinar, e não fiscalização, que é atividade de inspeção de atividade alheia, praticada em nome próprio”.

[59] JOSÉ AFONSO DA SILVA,op. cit., p. cit.

[60] Esse argumento foi utilizado pelo Ministro OCTAVIO GALLOTTI quando do julgamento do RE 178.236. Afirmou que:“Público continua a ser o serviço exercido pelos titulares de cargos criados em lei, em número certo e com denominação própria, sujeitos à permanente fiscalização do Estado, diretamente remunerados à conta de receita pública (custas e emolumentos fixados em lei) e, sobretudo, investidos por classificação em concurso público”.

[61] O art. 4º do Decreto-Lei nº 200/67 define como Administração Direta“os serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios”.E por Administração Indireta:“a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedades de Economia Mista; d) Fundações Públicas”.

[62]Op. cit., p. 877.

[63] Além disso, outras diferenças poderão ser afirmadasin casu. Uma delas, por exemplo, se apresenta no fato de que concessionários e permissionários recebem sua delegação, a partir de umadecisão discricionária da Administração de que os serviços públicos que têm o dever de realizar deverão ser, por razões de conveniência e de oportunidade dos interesses públicos, prestados por particulares. Em princípio, se quisesse, poderia o Poder Público prestá-lo diretamente, ou por meio de uma pessoa da própria Administração Indireta, vedando sua prestação por pessoas privadas comuns. Por isso, a delegação nesses casos se faz por meio de ato administrativo (bilateral e não precário, no caso da concessão, unilateral e precário, a nosso ver, no caso da permissão). Já no caso de notários e registradores, não existe qualquer outorga de discricionariedade ao Poder Público. A Constituição estabelece que a prestação necessariamente será por delegação. Assim, aqui não se pode falar propriamenteem contrato. Ao revés, o que existe é a realização de um verdadeiro ato unilateral que, fundado diretamente na Constituição, estabelece uma forma atípica de investidura no exercício da função pública, em regime não precário.

[64] Como vimos esta é a regra estabelecida no art. 236 da Constituição Federal. Todavia, é importante lembrar a existência de hipótese excepcional admitida pela própria Lei Maior. O art. 32 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece que“o disposto no art. 236 não se aplica aos serviços notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo Poder Público, respeitando-se o direito de seus servidores”.Desse modo há hipótese, dentre nós, embora excepcional, em que esta atividade poderá ser legitimamente prestada de forma centralizada pelo Poder Público.

[65] Há quem hoje sustente a existência de um campo próprio da ciência jurídica que denominam acertadamente Direito Notarial. Como diz em sintética escrita FRANCISCO MARTINS SEGOVIA, o Direito Notarial“es la especialidad del estudio de la ciencia jurídica, que se ocupa del notariado”(in Función notarial, EJEA, 1961, p. 22). Embora seja uma questão discutível, entende a maioria da doutrina que seria ele um particular ramo do Direito Público que manteria estreitas relações com o Direito Administrativo. A respeito, deve ser consultada a completa e magistral monografia “Teoria Geral do Direito Notarial”,de Leonardo Brandelli, Saraiva, 2ª. Ed., 2007, p. 77 e segs.

[66] A nosso ver, estas normas são comuns ao Direito Administrativo e ao denominado Direito Notarial. Lembremos que o Direito, como fenômeno normativo, é um sistema unificado de regras atinentes ao mundo do “dever ser”. Sua compreensão em ramos ou disciplinas é apenas de natureza didática ou científica, metodologicamente destinada à sua melhor compreensão ou estudo. Deste modo, nada impede que cientificamente um mesmo segmento normativo possa integrar o objeto de diferentes campos da ciência jurídica. É o que acontece, a nosso juízo, com as normas que regulam a delegação feita em nosso país a notários e a registradores, disciplinam a fiscalização dos serviços que prestam ou as sanções que recebem pelo descumprimento de seus deveres. Pertencem ao Direito Notarial, mas integram também o Direito Administrativo.

[67] Reconhecendo esta realidade, WALTER CENEVIVA afirma que“o art. 236 considera o serviço notarial e de registro uma delegação do Poder Público, sendo agentes públicos os seus exercentes. Subordinam-se, assim, aos princípios do art. 37, com a redaçãoque lhe foi dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 4 de julho de 1998, os quais passaram a incluir a eficiência no seu rol”. (Lei dos Notários e dos Registradores Comentada, p. 24, Saraiva, 5ª. Ed., 2006).De fato, como sabemos, os princípios gerais relacionados na abertura docaput do art. 37 são os da“legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Naturalmente, estes princípios regem não apenas a Administração Pública, mas também a função estatal que lhe é própria (função administrativa), independentemente de quem a exerça. E sendo assim, incidem também sobre o exercício da função notarial e de registro delegada pelo Estado a particulares.

A seguir, todavia, como logo se perceberá que, dentre os cinco princípios mencionados, dedicaremos atenção única ao princípio dalegalidade. A limitação dessa abordagem não se prende, naturalmente, a uma consideração axiológica de eventual maior relevância jurídica desse princípio frente aos demais, mas exclusivamente ao específico objeto da presente Consulta. Pela mesma razão, a seguir, analisaremos também o princípio doconcurso público que se aplica tanto a investidura em cargos, empregos e funções públicas, como para a efetivação da delegação para exercício da atividade notarial e de registro(arts. 37, II, e 236 da Constituição Federal).

[68]Direito Administrativo, Saraiva, 11ª. Ed., 2006, p. 7 e 8. Ampliar no nosso trabalho: “As Agências Reguladoras – O Estado Democrático de Direito no Brasil e sua Atividade Normativa”, Editora Malheiros, São Paulo, 2005, em especial vide os capítulos 13 e 14.

[69]André de Laubadére, Jean-Claude Venezia, Yves Gaudemet, Traité de Droit Administratif, L.G.D.J., Paris, 11ª. ed., 1990, Tomo I , p. 497.

[70] Como ensina HELY LOPES MEIRELLES“na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ´pode fazer assim´; para o administrador público significa ´deve fazer assim´.(Op. cit., p. 88).

[71] É magistral, e merece ser reproduzida aqui, a lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:“Tem-se função apenas quando alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem,o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender à finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio. Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja: são conferidos como meios impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente da função deverá suprir. (…) Segue-se que tais poderes são instrumentais: servientes do dever de bem cumprir a finalidade a que estão indissoluvelmente atrelados. Logo, aquele que desempenha função tem, na realidade, deveres-poderes.Não “poderes”, simplesmente. Nem mesmo satisfaz configurá-los como “poderes deveres”, nomenclatura divulgada a partir de Santi Romano. (…) Com efeito, fácil é ver-se que a tônica reside na idéia de dever, não na de “poder”. Daí a conveniência de inverter os termos deste binômio para melhor vincar sua fisionomia e exibir com clareza que o poder se subordina ao cumprimento, no interesse alheio, de uma dada finalidade” (Curso, p. 94 e 95).

[72] CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,Curso, p. 141 e 142.

[73] PAUL BENOIT, Le Droit Administrtif Français, Dalloz, 1968, p. 77.

[74]Op. cit., p. 130 e segs.

[75]Op. cit., p. 131.Nesta passagem, o autor faz menção ao pensamento de RUFINO LARAND. Note-se, nada tem aqui o conceito de “juridicidade” com o movimento que pretende substituir a “legalidade” por aquele conceito, no que não vemos utilidade como talvez até um retrocesso.

[76]Op. cit., p. cit.

[77] Tem sido freqüente a utilização do termo “Direito Registral Imobiliário”para definir o“complexo de normas jurídico-positivas e de princípios atinentes ao registro de imóveis que regulam a organização e o funcionamento das serventias imobiliárias; a atividade cartorária do oficial titular e de seus prepostos, que agem por delegação do Poder Público, conferindo-lhes fé pública em todos os atos que autonomamente praticarem, atendendo ao interesse da coletividade e à técnica dos atos registrários” (MARIA HELENA DINIZ,op. cit., p. 13 e 14). Sendo assim, não vemos nenhum inconveniente de que se possa utilizar a expressão“Direito Registral”, para identificar o campo normativo que tem como objeto a dimensão subjetiva e objetiva da função registral, por analogia ao que ocorre com oDireito Notarial.

[78] A observação é feita para o âmbito do registro imobiliário por NICOLAU BALBINO FILHOin Direito Imobiliário Registral, p. 184, Saraiva, 2001.

[79] É inegável que o concurso público, seja para a acessibilidade a cargos e empregos públicos, seja para o exercício da atividade notarial ou de registro, deve ser considerado como uma decorrência direta dosprincípios gerais da isonomia, impessoalidade, moralidade e eficiência.Isonomia, porque, por meio do concurso público, se busca impedir preferências ou perseguições em relação a todos os administrados que pretendam exercer cargos e empregos públicos, ou ainda exercerem a nobre função pública de notários e de registradores.Impessoalidade, porque, pelo concurso público, se busca assegurar que a escolha de pessoas para o exercício de função pública não se faça por critérios pessoais ou discriminatórios, mas em consideração objetiva da melhor aptidão apurada.Moralidade,porque, pelo concurso público, fica impossibilitada a escolha imoral de parentes, de apaniguados políticos, e de amigos que não possuam condições mínimas de exercício das competências administrativas. Eficiência, porque, finalmente, também pelo concurso público, ao se buscar a escolha das pessoas mais adequadas para o exercício das competências administrativas, certamente, passará sempre a ter a Administração melhores condições objetivas para uma atuação quantitativa e qualitativamente superior àquela que poderia ter se fossem adotados outros critérios de seleção de pessoal.

[80]Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª. ed., Revista dos Tribunais, 1990, p. 36

[81] V. nota 78,supra.

[82]Princípio Constitucionais dos Servidores Públicos, Saraiva, 1999, p. 202.

[83] No texto original da Constituição Federal de 1967 esta regra estava inserida no art. 95, § 1º. Com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 1/69 é que passou para o art. 97, § 1º.

[84] Apenas para que inexistam quaisquer dúvidas acerca dos conceitos de provimento, investidura e suas particulares espécies, tratemos de fixá-los em consonância com a melhor doutrina.

Denomina-seprovimento ao“ato de designação de alguém para titularizar cargo público”. Por sua vez, “provimento autônomo ou originário é aquele que em que alguém é preposto no cargo independentemente de ter, não ter, haver ou não tido algum vínculo com cargo público. Vale dizer, o provimento não guarda qualquer relação com a anterior situação do provido. Por isso se diz autônomo ou , então, originário”.“provimentos derivados, como o nome indica, são aqueles que derivam, ou seja, que se relacionam com o fato de o servidor ter ou haver tido algum vínculo anterior com cargo público. Nele se radica a causa do ulterior provimento”. (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso, p. 293 e 294).

O provimento de um cargo público não aperfeiçoa a relação entre o Estado e o provido. Para que isso ocorra, deverá o provido tomarposse no cargo. Entende-se por posse“o ato de aceitação do cargo e um compromisso de bem-servir e deve ser precedida por inspeção médica”(Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso, p. 193).Com aposseocorre o aperfeiçoamento da relação funcional do provido com o cargo, e a conseqüente “investidura” do servidor. Ensina, a respeito, MARCIO CAMMARROSANO que“o provimento diz respeito ao cargo, enquanto a investidura é concernente à pessoa. O cargo é provido, alguém é investido. A distinção decorre, portanto, do ângulo de observação: se tenho em vista o cargo, refiro-me ao provimento; se a pessoa que o titulariza, refiro-me à investidura”(Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro, Ed. RT, 1984, pp. 25-26)

Finalmente, observe-se que quando o provimento éinicial, ou seja,original ou autônomo, é usual denominar-se a investidura que dele decorre deinvestidura inicial, original ou autônoma. Quando, ao revés, o provimento éderivado costume chamar-se a investidura que dele decorre deinvestidura derivada.

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[85]Comentários à Constituição Federal, Saraiva, vol 3, tomo, III, 1997, p. 67.

[86] Direito Administrativo, 20ª. ed., Atlas, São Paulo, p. 559. Devemos entender porreintegração “o retorno do servidor ilegalmente desligado de seu cargo ao mesmo, que dantes ocupava, ou, não sendo possível, ao seu sucedâneo ou equivalente, com integral reparação dos prejuízos que lhe advieram do ato injurídico que o atingira. Tal reconhecimento tanto pode vir de decisão administrativa como judicial”.Aproveitamento “é o reingresso do servidor estável, que se encontrava em disponibilidade, no mesmo cargo dantes ocupado ou em cargo de equivalentes atribuições e vencimentos incompatíveis” (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso, p.297). Promoção (ou acesso no estatuto paulista) “é forma de provimento pela qual o servidor passa para cargo de maior grau de responsabilidade e maior complexidade de atribuições, dentro da carreira a que pertence. Constitui uma forma de ascender na carreira” (MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, op. cit., p. 561).

Finalmente, cumpre observar ainda que para MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO“a reversão era o ato pelo qual o funcionário aposentado reingressava no serviço público; podia ser a pedido ou ex officio, esta última hipótese ocorrendo quando cessada a incapacidade que gerou a aposentadoria”.Acerca da reversãoex officio, em trecho subseqüente, afirma ainda a mesma autora que a reversãoex officio continua admitida, a despeito da Constituição não contemplá-la expressamente, porque,“nessa hipótese, desaparecendo a razão de ser da inatividade, deve o funcionário necessariamente reassumir o cargo, sob pena de ser cassada a aposentadoria (art. 35, § 6º,do Estatuto funcional de São Paulo – Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968). O servidor reassume para completar os requisitos para a aposentadoria” (op. cit., p. 360)

[87] Como acertadamente reconhece MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO“deixaram de existir, com a nova Constituição, os institutos da readmissão, da transposição e da reversão, ressalvada, nesse último caso, a reversão ‘ex-officio’. “(…) “Readmissão era o ato discricionário pelo qual o funcionário exonerado e, segundo alguns estatutos, também o demitido, reingressava no serviço público”.(…) “A transposição (ou ascenção, na esfera federal) era o ato pelo qual o funcionário ou servidor passava de um cargo a outro de conteúdo ocupacional diverso. Visava o aproveitamento dos recursos humanos, permitindo que o servidor, habilitado para o exercício de cargo mais elevado, fosse nele provido mediante concurso interno” (op. cit., p. 560)

[88] V. nota anterior.

[89] Com redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/1998

[90] Servidor Público, doutrina e jurisprudência, Del Rey. 2006, p.82. É importante observar que esta discricionariedade na escolha da modalidade do concurso público a ser realizado para o acesso a cargos e empregos públicos é uma regra que comporta exceções. Afirmada como regra geral no art. 37, II, ela ainda é especificamente reproduzida para o“provimento de cargos necessários à administração da justiça”(art. 96, I,”e”, da C.F.); o provimento de cargos dos serviços auxiliares do Ministério Público(art. 127,§ 2º, da C.F.).Para o ingresso em certos cargos, todavia, o legislador elimina esta discricionariedade, estabelecendo que o concurso necessariamente será de“provas e títulos”. É o que ocorre para o“ingresso na carreira” da Magistratura(art. 93, I, da C.F.), do Ministério Público(art.129, § 3º, da C.F.),da Advocacia-Geral da União(art. 131,§ 2º, da C.F.), das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal(art. 132, da C.F.), da Defensoria Pública (art.134,§1º, da C.F.), para o magistério público(art. 206, V, da C.F.). Observe-se ainda que para o ingresso no exercício da função notarial e de registro, na conformidade do disposto no art. 236 da Constituição Federal, também não haverá a possibilidade de opção discricionária. O concurso público deverá ser realizado na modalidade de“provas e títulos” (art. 236 da C.F.).

[91] Nem sempre é fácil e segura a distinção entre a função notarial e registral. Contudo, ela tem sido aceita pela maior parte dos estudiosos e, por esta razão, foi acolhida pelo nosso legislador. A respeito deve ser vista a obraDerecho Notarial y Derecho Registralde LUIS CARRAL Y DE TERESA (Porrua, 5ª. Ed., 1979).

[92] WALTER CENEVIVA, Lei dos Notários e dos Registradores Comentada, Ed. Saraiva, 5ª.Ed., 2006, p.22. Ilustrativa exposição a respeito vem contida no “Diccionario de Derecho Privado“, Directores IGNACIO DE CASSO Y ROMERO e D. FRANCISCO CERVERA Y JIMÉNEZ-ALFARO, Editorial Labor, Barcelona, Madrid, Buenos Aires, Reio de Janeiro, México, Montevideo, 1950, p. 2761 e 2762, no verbete “notariado“:“de Notarius, escrebiente romano.Hay otros términos latinos que han pasado a denominar la institución moderna; scriba, tabellión. Bajo el nombre de Notariado se comprende, objetivamente, cierta función: subjetivamente, el conjunto de personas que la desempeñan. En este último aspecto se define como cuerpo facultativo que forman los notarios, o bien el conjunto de personas que ejercen la función notarial. Es a ésta a la que en definitiva resulta preciso referirse, y en ella se debe distinguir la función respecto al Derecho privado y el servicio público. Aquélla puede reconducirse a la teoría de los medios de prueba, siendo la expresión típica de la más perfecta, a saber: a la escritura pública. Supone tres elementos: 1. Intervención de un fedataria especial, agente del poder público. 2. Conservación perpetua de los originales e matrices, de los cuales se facilitan copias; 3. Formación de índices y depósito de ellos en archivos, donde pueden controlarse. El documento notarial es ‘ l a prueba antilitigiosa por excelencia. El número de sentencias ha de estar en razón inversa del número de escrituras” (…) Para Sanchez Román, el Notariado es el complemento de la vida civil, porque la libertad individual necesita de medios por los cuales se dote a las relaciones de facilidad, certeza, permanencia y eficacia (SANCHES ROMAN, Estudios, II, p. 610 y 611).(…) Es institución de Derecho público, confirmatoria del principio ‘jus privatum sub tutela publici manet’. A la función privada de celebrar actos corresponde la función pública que los facilita y legitima, protege, garantiza y conserva, o como dice Lavandera, el Notariado realiza la misión social del DC. (…) A este fin la actividad del Notariado compreende: preconstituir la prueba, legitimar derechos y dar forma solemne a ciertos negocios jurídicos. Pero no ateñe solo a elementos exteriores y adjetivos de la vida jurídica, intrínsecamente considerada. En efecto, el Notario ordena la voluntad privada a un modo de expresión técnica que produzca efectos jurídicos (…) Fundiendo ambos aspectos, el objetivo de la función y el subjetivo del funcionario, define Gimenez Arnau al Notario como ‘profesional del Derecho que ejerce una función pública para robustecer, com una presunción de verdad, los actos en que interviene, para colaborar em la formación correcta del negocio jurídico y para solemnizar y dar forma legal a los negocios jurídicos privados, y de cuya competencia, solo por razones históricas están sustados a los actos de la llamada jurisdición voluntaria”. Levandera define: ‘funcionario que autoriza el acto y su documento en forma pública con efectos de legalidad, autenticidad y ejecución, y certifica la existencia del hecho con fuerza de prueba plena.”

A respeito, sinteticamente também ensina MARIA HELENA DINIZ que por tabelião devemos entender:“1. Notário. 2. Oficial Público que está encarregado da lavratura de atos para dar-lhes autenticidade e fé pública” (in Dicionário Jurídico, Saraiva, p.486, vol 4, 1998).

 

[93]Manual dos Tabeliães, Edição Saraiva, 1975, p. 10.

[94]DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio de Janeiro,25ª.Ed., 2004

[95]Op. cit., p. 23

[96] WALTER CENEVIVA define“registro é o ato de registrar, significando genericamente o assentamento feito, como anotação escrita obrigatória, de um fato juridicamente relevante” (in Manual de Registro de Imóveis, Freitas Bastos, Rio de janeiro, 1988, p. 35)

[97] Curso de Direito Civil, Saraiva, São Paulo, 1978, Parte Geral, vol 1. p. 81. Em sentido idêntico diz DE PLÁCIDO E SILVA que “desse modo a finalidade jurídica do registro não é somente a de perpetuar a prática ou a execução do ato jurídico, para que se assegure a existência dele, e a de autenticá-lo e o identificar. Vale como meio de publicidade, para que não se alegue desconhecimento ou ignorância da sua existência” (Op. cit, p.1183). É também o entendimento de PEDRO NUNES quando afirma que registro é o “instituto criado como fim de tornar públicos os atos jurídicos, o estado e a capacidade das pessoas, estabelecendo a autenticidade, segurança e validade das obrigações e de certas relações de direitos passíveis de tutela legal e sujeitas à transferência, modificação ou extinção” (PEDRO NUNES,Dicionário de Tecnologia Jurídica, vol. II, Freitas Bastos, 7ª. Ed., 1967, p.382).

[98]Diz CARLOS HENRIQUE ABRÃO sobre a natureza probatória do protesto que“desenhado extrajudicialmente, sob a responsabilidade do Tabelião que se torna o próprio juiz do protesto, sob o enfoque de sua feitura ou inconveniência da sua prática, a finalidade essencial é a de sinalizar a direção do devedor sobre as conseqüências que permeiam o ato e as respectivas responsabilidades. De tal arte, o ato notarial não encerra em si mesmo todos os aspectos na diretriz do cumprimento da obrigação, podendo respingar na caracterização da insolvência. (…) Dado o caráter instrumentário de prova que se concretiza, gera o protesto a presunção voltada para a natureza do ato e seus reflexos que poderão retroagir, na hipótese de estar presente a fraude, ou o aspecto da falência decretada.” (Do Protesto, Ed. Juarez de Oliveira, 3ª. Ed., São Paulo, 2004, p.2).E acrescenta a seguir:“típico ato formal e de natureza solene, destinado a servir de meio probatório na configuração do inadimplemento, reveste-se o protesto de qualidades próprias, as quais denotam o relacionamento com uma obrigação, sem a conseqüente responsabilidade a ela satisfeita. (…) Priorizado na situação de ato extrajudicial, de espírito público, sempre na esfera formal que delineia a sua concretização, o ato notarial tem uma eficácia que gera efeitos nas circunstâncias do padrão obrigacional, ou seja, o limite temporal estabelecido, quando determinado, restou desatendido (op. cit., p. 5).

[99]Tratado das Ações, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1972, t. 2., p. 137.

[100]Protesto Cambial, Saraiva, São Paulo, 1983, p.11.

[101] Note-se que implicitamente o nosso próprio direito positivo parece prestigiar esta posição que ora defendemos. O art. 3º da Lei nº 9.492/97, ao estabelecer as competências do Tabelião de Protesto de Títulos, dispõe que compete a este“lavrar e registrar o protesto”, reconhecendo, portanto, a combinação de situaçõesnotariais e registrais.

[102] V item I, supra

[103] Não se pode confundir uma norma jurídica com um artigo ou parágrafo de um texto legislativo. A norma jurídica é uma unidade lógica, composta de umahipótese (os fatos abstratamente descritos no mundo dodever ser que quando se verificam no mundo doser propiciam a incidência da norma) e de umpreceito(o comando que deve atuar sempre que se verifica a ocorrência dos fatos descritos na hipótese). Um artigo de um texto legislativo, ou um de seus parágrafos, não passa de ser apenas a meraunidade redacional em que se expressa um texto legislativo. Assim, um único artigo (ou um único parágrafo) pode expressar várias normas jurídicas, ou ao contrário, uma norma jurídica pode ser expressa por meio de diferentes artigos (ou diferentes parágrafos). Nem sempre, portanto, um artigo (ou um parágrafo) expressará uma única norma, ou uma norma será expressa por meio de um único artigo (ou um único parágrafo).

[104]Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, 3a. ed. Revista e atualizada, Editora Positivo ,2004.

[105] Conforme já se indicou acima, de passagem, a expressão serventia é utilizada pelo nosso legislador para designar a unidade de competência de funções notariais e de registro que devem ser titularizadas pelo notário ou pelo registrador. Corresponde, analogamente, ao cargo público, na medida em que este também é uma unidade de competência destinada a ser titularizada por um servidor público.

[106] V. nota 82,supra.

[107] Observe-se que nesta passagem o autor está comentando a regra inserida no art. 16 da Lei n. 8.935/94. Todavia, a crítica feita ao legislador ordinário é inteiramente aplicável ao legislador constitucional, uma vez que foi este último que originariamente empreendeu o equívoco terminológico (Lei dos Notários e dos Registradores Comentada, p. 149)

[108] CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, Revista dos Tribunais, 1991, p.38.

[109] Nesse aspecto concordamos com o ilustre colega LUIS ROBERTO BARROSO no parecer que ofertou à Associação dos Titulares de Cartórios (ATC) de São Paulo sobre a mesma matéria que ora estamos analisando. Afirmou o renomado publicista que“os termos empregados pelo constituinte no art. 236 foram utilizados um tanto atecnicamente. Com efeito, a interpretação sistemática do dispositivo, em conjunto com os demais princípios e regras constitucionais afetos ao tema, impõe sua compreensão de forma mais flexível, e não necessariamente no sentido técnico cunhado pelo direito administrativo. A questão não é complexa” (item 49). Acrescenta ainda a seguir que na regra constitucional em exame não seria correto atribuir à expressão remoção“o sentido técnico do direito administrativo, pois evidentemente o termo não foi empregado nesse contexto” (item 51).

[110] WALTER CENEVIVA define remoção como“o deslocamento do delegado, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de comarca, como se interpreta, acolhendo a boa norma subsidiária do art. 36 da Lei Federal n. 8.112, de 11 de dezembro de1990.” O citado artigo 36 da Lei federal n. 8.112/90 diz que:“remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede”.Embora não nos pareça equivocada a definição apresentada pelo autor, a analogia com o plano dos servidores públicos parece ter inibido a formulação de uma identidade própria do conceito para o campo dos notários e dos registradores.

[111] Falamos de aproximação analógica com o sentido de remoção no campo dos servidores públicos, por razões óbvias. O servidor removido permanece titularizando o mesmo cargo e passa a prestar seus serviços em outra unidade administrativa. Há apenas uma mudança do órgão em que estava lotado o servidor para o seu exercício funcional. A correspondência exata desta situação, com o exercício da função notarial e de registro, é impossível. Não poderia o titular de uma serventia notarial ou de registro, permanecendo com a sua titularidade, ser removido para exercer sua competência em outra que estivesse vaga. Seria inconcebível esta situação. Por isso que, dentro de um critério de aproximação analógica, o que devemos entender por remoção, no campo que estamos analisando,é a passagem de um notário ou registrador para outra serventia distinta. É umanova delegação que se efetiva, masderivada da anterior. Seria, portanto, uma realidade talvez mais próxima da “transferência” do servidor público (de um cargo para outro) do que, propriamente, da “remoção“.

[112] Apesar das diferenças terminológicas, na essência, também aqui o nosso pensamento se harmonizain totum com a manifestação opinativa de LUIS ROBERTO BARROSO acima referida(v. nota 107, supra). Afirmou o parecerista que“o termo remoção, no caso, foi empregado em contraste com a idéia de provimento inicial, a fim de identificar que, naquele caso, existiria uma relação anterior do indivíduo com o serviço público. Dito de outra forma: o § 3º do art. 236 da Constituição, ao diferenciar a forma de ocupação das serventias vagas em ‘provimento’ ou ‘remoção’, quer, na verdade, delimitar o universo de competidores admitidos no concurso público a ser realizado em cada caso. Se for hipótese de provimento, o acesso é permitido a todos aqueles que preencham os requisitos do art. 14 da Lei nº8.935/94, independentemente de vínculo anterior com o serviço público notarial e de registro; na hipótese de remoção, o universo de competidores se limita aos titulares de serventias extrajudiciais que já exerçam a atividade há mais de dois anos” (item 52).

[113] Observe-se que, aqui, ao contrário de que ocorre com o ingresso de servidores públicos, o texto da Constituição não admite exceções. O princípio do concurso público para a outorga da delegação originária é definido de forma absoluta.

[114] Esta posição chega a ser sustentada pela Associação dos Titulares de Cartório do Estado de São Paulo, na petição em que pedem a intervenção na Ação Declaratória de Constitucionalidade proposta pelo Consulente em relação ao art. 16 da Lei n. 8.935/94. Sustenta-se no item 31 daquela bem talhada peça que“no caso específico do § 3º do art. 236 da CF, há referência expressa à exigibilidade de “concurso público de provas e títulos, tanto para o provimentocomo para a remoção, como se deduz da interpretação literal e sistemática do referido dispositivo constitucional”. E a seguir ainda acrescenta que“o raciocínio desenvolvido pelos que defendem o concurso só de títulos para a remoção é o seguinte: o concurso público de provas e títulos, previsto na parte inicial do § 3º do art. 236 da CF/88, seria exigível apenas para o ingresso na atividade notarial e de registro(…)Essa interpretação parte da equivocada premissa de que a CF, ao falar apenas em concurso de remoção, não exigiu expressamente a submissão dos candidatos a ‘concurso de provas e títulos’. Ocorre, porém, que a expressão ‘concurso’ utilizada pelo § 3º do art. 236 da CF abrange tanto o provimento como a remoção, sendo indeclinável conferir tratamento idêntico a ambas as hipóteses, como, aliás, decorre de expresso mandamento contido na parte inicial desse mesmo dispositivo, que exigiu ‘concurso público de provas e títulos’ para as duas modalidades de ingresso: provimento e remoção. (…) Ignorando por completo as mais comezinhas regras de hermenêutica, procuraram interpetar a parte final de um parágrafo sem levar em consideração aquilo que está escrito no seu início” (itens 32, 33, e 34)(grifo nosso)

[115] V. item II.2,supra.

[116] Nisso somos levados a discordar do ilustre professor LUIS ROBERTO BARROSO quando, na bem talhada manifestação opinativa repetitivamente mencionada ao longo deste nosso modesto estudo, explicitamente parece adotar posição oposta. Afirma o mestre ao afirmar ser inconstitucional o art. 16 da lei n. 8.935/94 que:“o artigo pretende regulamentar o art. 236 da Constituição Federal, que, na esteira da orientação geral do constituinte acerca do postulado do concurso público – a saber: a de que a investidura em qualquer função pública, seja provimento inicial ou derivado, deve ser precedida de concurso público, salvo as exceções previstas no próprio texto constitucional-, impõe a realização deconcurso público para o ‘ingresso’ na atividade notarial e de registro, seja na hipótese de ‘provimento’, seja na de ‘remoção‘”.E em outra passagem:“… cada serventia extrajudicial é ocupada mediante delegação específica do Poder Público a um particular após a realização deconcurso público, dê-se a ocupação por ‘provimento’ ou ‘por remoção‘ (grifo nosso).

Não vemos como se possa falar de“concurso público por remoção”.Como o próprio parecerista admite em seu alentado estudo“na hipótese de remoção, o universo de competidores se limita aos titulares de serventias extrajudiciais que já exerçam a atividade há mais de dois anos”. Não será, portanto, um“concurso público” o procedimento realizado para o preenchimento de serventias vagas por remoção, mas apenas um simples“concurso”,ou na linguagem de CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, já anteriormente citada, uma mera“seleção competitiva interna” realizada entre aqueles que já possuem a condição de notários ou de registradores(V. item II. 2., supra)

[117] Pela excelência das manifestações, tomamos a liberdade de sintetizar os argumentos lançados nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade proposta pelo Consulente acerca do art. 16 da Lei n. 8.935/94. A sua abordagem crítica permitirá que, em dimensão mais aguda e completa, possamos externar de forma mais global a nossa opinião jurídica sobre a matéria.

[118] Argumento desenvolvido por LUIS ALBERTO BARROSO no parecer anteriormente mencionado (itens 40 e 41)

[119] Argumento utilizado na já mencionada manifestação da Associação dos Titulares de Cartório do Estado de São Paulo, nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade proposta pelo Consulente igualmente referida anteriormente (item 29)

[120] Sustentando que um concurso de títulos implicaria na ofensa a estes princípios constitucionais(v. item 58 e conclusão final “D”), LUIS ROBERTO BARROSO argumenta que“a exigência constitucional da realização menos de uma etapa de provas durante o certame não é caprichosa ou aleatória. Em verdade, a submissão de todos os candidatos a uma mesma prova é o critério mais objetivo e isento que se conhece na avaliação da qualificação dos indivíduos, para fins de discriminação eficiente e isonômica entre eles. Cabe dizer: é o mais próximo que se conseguiu chegar da isonomia e impessoalidade indispensáveis ao procedimento, sob pena de violação aos princípios constitucionais que informa e, a um tempo, concretizam-se através do mandamento do concurso público. Por outro lado, a competição baseada em títulos é meio por demais falho de aferição de capacidade. É forma indireta de aferição, estática, votada para o passado” (item 43)

[121] Argumento lançado na aludida manifestação da Associação dos Titulares de Cartório do Estado de São Paulo (itens 35 e 36).

[122] É certeira a observação de CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA acerca da inexistência de concurso público para as “investiduras secundárias” (“investiduras derivadas“), e a possibilidade da lei adotar, com autonomia, critérios para o estabelecimento de procedimentos seletivos internos de“títulos” para a sua efetivação. Pondera a ilustre magistrada da nossa Corte Suprema que para as investiduras“secundárias” nãose há de cogitar de concurso público“.E acrescenta que“impedimento algum se tem, no caso, que haja a previsão regulamentar de deverem os candidatos que preencham os requisitos para a promoção ou a ascensão se submeter a concurso adstrito a eles, a fim de que, mesmo nessa circunstância, tenha-se a escolha daquele mais bem habilitado. A Constituição da República prevê tal ocorrência, deixando quea lei defina os requisitos para a promoção, um dos quais pode ser a aprovaçãoem seleção a ser aperfeiçoada entre os servidores-candidatos que atendam aos pressupostos para a disputa. E, antecipando-se ao legislador ordinário, que tem a atribuição específica de minudenciar os casos e as hipóteses de promoção e ascenção no serviço público, estabeleceu a Constituição Federal, no seu § 2º do art. 39 (norma introduzida pela Emenda Constitucional n. 19/98), que as entidades federadas – ressalva feita ao Município – ‘manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos,constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira…’. Tanto fica clara, então, a previsão constitucional da expressa forma de provimento derivado e investidura secundária em cargo público quanto o resguardo da definição legal dos requisitos para que tanto possa dar-se em cada caso” (Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos, p. 206) (grifo nosso).

[123] Em tradução livre:“…nós chamamos de imoralidade toda moral que não é nossa”.

[124] V nota 119,supra

[125] Imagine-se, por exemplo, um concurso de “provas“, em que no exame oral (que ainda hoje são admitidos em certos concursos, como nos que se realizam para ingresso na Magistratura e no Ministério Público) sejam feitas aos candidatos perguntas de complexidade diferente. Será um típico caso em que haverá, nessa particular espécie de concurso, uma violação escancarada aos princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade.

[126]Op. cit., p. 82 e 83

[127] O próprio Consulente questionou a constitucionalidade deste dispositivo por meio da Adin n.2.018 que teve a sua liminar negada pelo então Ministro Moreira Alves. A alegação era a de que teria ocorrido um erro datilográfico no texto da lei, uma vez que o texto correto seria“concurso de provas de títulos”, e não“concurso de provas e títulos”.

Abstraindo-se de qualquer consideração quanto a eventual inconstitucionalidade que possa ter ocorrido no processo de votação da propositura legislativa que originou esta lei, do ponto de vista objetivo, o texto aprovado tem, pelas razões expostas no tópico anterior, inteira adequação ao texto do art. 236, § 3º, da Constituição Federal.

[128] Observe-se que ocaputdo art. 68 da Constituição do Estado de São Paulo determina que “o ingresso na atividade notarial e registral, tanto de titular como de preposto, depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga sem abertura de concurso por mais de seis meses”. Acrescenta o seu parágrafo único que“compete ao Poder Judiciário a realização do concurso de que trata este artigo, observadas as normas da legislação estadual vigente”. Já a aludida Lei Estadual nº 12.227, de 11 de janeiro de 2006, determina que:

 

Artigo 46 –O concurso de remoção compreenderá apenas a avaliação dos títulos, de titulares da delegação de serventias notariais e de registro de mesma natureza, cujo ingresso tenha ocorrido no Estado.

Parágrafo único – Compreende-se como de mesma natureza da serventia vaga a titularidade de delegação de idêntica especialidade de serviço notarial ou de registro, conforme previsto no art. 2º desta lei, podendo o titular da serventia com serviços acumulados concorrer à remoção para quaisquer serventias de natureza de serviço notarial ou de registro a que pertencer ou a que tiver delegação.”

(grifo nosso)

[129] Entendemos que a situação prevista no art. 236 para os concursos de remoção para notários e registradores difere em muito do disposto no art. 37 da Constituição Federal para os concursos públicos destinados à investidura em cargos e empregos públicos. Neste último dispositivo, o legislador constitucional circunscreve com nitidez o campo discricionário em que se pode dar a decisão administrativa pertinente aomodus de realização de concursos públicos. De fato, ali se afirma que o concurso público pode ser de“provas ou de provas e títulos”.Assim, embora o legislador ordinário possa fixar uma diretriz normativa que julgue apropriada, a ausência de uma lei que disponha sobre a matéria não retirará a possibilidade do administrador, diretamente, decidir a respeito. Afinal a lei, ou seja, a norma constitucional, já lhe delimitou um campo de ação administrativa a ser executada: poderá discricionariamente optar, na falta de lei, por realizar um concurso de provas ou de provas e títulos. Já no art. 236 não é o que ocorre. Neste dispositivo, o legislador constitucional não estabelece qualquer parâmetro decisório acerca domodus pelo qual deve ser realizado o concurso de remoção, como acima já se observou. Logo, torna-se indispensável que uma lei estabeleça o caminho a ser seguido, apontando um caminho único e vinculado (como o fez a legislação federal em vigor que, ao estabelecer que o concurso é de títulos, eliminou qualquer discricionariedade administrativa a respeito), ou atribuindo poder discricionário ao administrador.

Mais uma vez aqui, portanto, a situação exposta guarda proximidade e semelhança com os concursos de acesso ou de promoção dos servidores públicos no âmbito de suas respectivas carreiras. Será inadmissível que um ato administrativo (como um decreto, uma portaria, ou um edital de concurso, por exemplo), de forma inovadora, fixe as regras pelas quais um concurso desta natureza possa ser realizado. Somente a lei, por força do princípio da legalidade, poderá fazê-lo.

[130] De há muito resta superada na doutrina a tese de que o poder discricionário nasceria para o administrador diante da omissão da lei. Como se sabe, no mudo administrativo, ao contrário do que ocorre no mundo privado, “o que não é permitido pela lei é proibido”. Logo, na ausência da lei, o que existe é a proibição da ação e não a autorização para a sua prática. A discricionariedade apenas existe a partir de uma autorização legal explícita ou implícita para a atuação administrativa.