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O Vale – Impacto da tragédia das vidas perdidas pela Covid em São José

30-08-2021

“Com tantas perdas, a gente se questiona: a vida vai voltar ao normal?”.

A pergunta é da médica intensivista Muriele Mattia, que atua na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital Municipal de São José dos Campos.

Lá, ela trabalha como médica visitadora e entra todos os dias na luta pela vida de pacientes com Covid-19, mas nem sempre a batalha é vitoriosa.

“Óbito vem de uma causa inevitável, mas nossa formação é para salvar vidas”, diz a profissional.

A perda de vidas é o primeiro e mais grave impacto da Covid-19 em São José dos Campos. São mais de 1.800 vidas perdidas para a pandemia em um ano e quatro meses. Tragédia. Nada se compara a isso.

Até 2019, de acordo com dados do portal da transparência de Registro Civil, São José vinha mantendo média de 360 mortes por mês, com cerca de 4.500 por ano, incluindo todos os tipos de óbitos.

No primeiro ano da pandemia, o total geral de mortes na cidade saltou para 4.983, com média de 415 óbitos por mês.

As vidas perdidas impactam na economia, nas relações sociais, no emprego, na estrutura familiar, na rotina da cidade e no estado emocional de familiares e amigos. Há relatos de sequelados pela doença, fisica e emocionalmente.

“Perder jovens é muito triste, mas acredito que o maior impacto é perder membros da mesma família”, conta a enfermeira Odete Santos, que também trabalha na UTI Covid do Hospital Municipal de São José.

Para conhecer os verdadeiros impactos da Covid-19, vale a pena conhecer o relato honesto e dramático, em primeira pessoa, destas duas profissionais experientes no combate à pandemia. E também da terapeuta Zuma Pavitra, de São José, que perdeu o pai e o cunhado para a doença.

Muriele Mattia

Trabalho com pacientes com Covid desde que tivemos o primeiro caso relatado em Santa Cataria, onde me formei e morava, e depois quando mudei para São José dos Campos, no final de abril do ano passado. Comecei como visitadora da UTI e trabalho na UTI Covid diretamente com os paicentes mais graves.

O impacto da pandemia é global. Trouxe uma situação que nunca tínhamos vivido, de uma pandemia que mudou os aspectos sociais, mudou muito a nossa visão enquanto profissionais de saúde. Estamos trabalhando em jornadas extenuantes, com muito mais pacientes do que conseguimos suportar, e isso tem impacto em outros setores, como a economia, no tempo em que a pessoa para de trabalhar, impacto educacional. Todas as áreas da nossa sociedade sofreram impacto. A gente sofre isso até hoje. Continuamos lutando por casa paciente que chega à UTI.

Acredito que qualquer perda por Covid causa impacto. As famílias têm uma desestruturação da hierarquia, da continuidade e isso gera vários problemas. Quando perdemos um jovem, sentimos muito, pois é uma pessoa que ainda não teve a oportunidade de viver em plenitude. Isso nos abala muito, mas qualquer vida que perdemos nos deixa muito sentidos.

Há famílias passando muitas dificuldades por suas perdas. Vemos muitas histórias de famílias nas quais morreram os pais, outras que perderam os filhos, famílias inteiras que pegaram Covid e ficarão com sequelas. É um impacto para o resto da vida. As estruturas que mudaram, o mundo que mudou por conta do isolamento social. Há mais casos de depressão. Quem sofreu uma perda individual, porque o recomeço é complexo, há pessoas que não vão dar conta. Com tantas perdas a gente se questiona se a vida vai voltar ao normal.

A cada novo dia de plantão, a cada enfrentamento, vivemos situações de pacientes que nos tocaram profundamente, de familiares.

Quando começou a pandemia, fiquei com muito medo. Meu noivo tem um problema pulmonar e caso eu pegasse Covid e passasse para ele, teria alto risco de ele vir a óbito. Então, o primeiro impacto foi pessoal. Sou médica intensivista tentando salvar o máximo de vidas possível e não podia pegar a doença e passar para meu noivo. Esse foi meu primeiro dilema pessoal.

Nunca tive medo de pegar e morrer. Quandoa gente se forma profissional de saúde, e se doa para isso, a gente pensa no outro.

Meu segundo drama foi que, depois de decorridos alguns meses em São José, minha mãe pegou Covid lá em Santa Catarina. Ela morava sozinha e eu sou a pessoa que ela mais contava. Tive que cuidar dela à distância, por telefone. Esse foi um drama muito grande para mim.

Outro drama é a intubação. Quando comunicamos isso ao paciente, vemos o medo dele de morrer de não voltar, e a gente não tem como dar essa segurança da cura. Drama de intubar o paciente na iminência da morte, no que pode ser o último minuto de consciência dele. Tentamos dar a eles a segurança de que vão melhorar, mas dependemos da resposta orgânica de cada um. Esse é um drama que todos os médicos enfrentam na UTI.

Mas, ao mesmo tempo, a felicidade extrema de ver um paciente acordar, tirar os aparelhos e sair curado. Uma alegria imensa de vê-los ficar melhores e deixar a UTI.

Sempre digo que o fato de ser médica não nos acostuma a conviver com a morte. Somos treinados para ter situações de morte. Porém, a nossa formação médica é muito mais treino para lutar pela vida e entender a morte. Óbito vem com uma causa inevitável, mas nossa formação é para salvar vidas.

Numa UTI, estamos habituados e treinados a conversar sobre morte e ver pessoas morrendo, porém do jeito que vimos na Covid nos abalou muito. Muita comunicação de morte que damos à família é feita chorando. Na Covid, vimos pacientes chegando já agravados, questão de desinformação muito grande, gente apostando em tratamento precoce e isso nos abalou muito.

Um número muito grande de pacientes, gente chegando tarde à UTI e sem tempo de lutar por ele. O comentário na classe médica é que muitos pacientes acreditando no tratamento precoce. Serviços de saúde sobrecarregados. Médicos trabalhando com recursos mínimos, como aconteceu em várias outras cidades. Em São José não chegamos nessa situação de extremo caos, falta de leitos e oxigênio, mas chegamos a beirar isso. Abalou muito. Um dia saí do hospital e entrei no carro e chorei, fui para casa e não tive força nem para comer.

Odete Santos

No início da pandemia, atuei no Pronto Socorro Adulto do Hospital Municipal, onde ocorreram os primeiros atendimentos à Covid até a mudança física para área específica. Atuei como enfermeira da comunicação, realizando boletim diário dos pacientes internados aos seus familiares. Há oito meses atuo na UTI Covid.

A pandemia trouxe impactos sociais, econômicos, culturais e políticos. Todos estão finamente entrelaçados e atingem toda população.

Perder jovens é muito triste, mas acredito que o maior impacto é perder membros da mesma família, acompanhar notícia de piora e por vezes óbito entre casais, filhos ou irmãos internados simultaneamente. Vivemos aqui no Hospital Municipal inúmeras histórias tristes e alegres, nos solidarizamos e nos alegramos com elas.

Particularmente, tive um sobrinho de 27 anos que faleceu há quase um ano aqui no nosso hospital. Também tivemos colegas de trabalho que precisaram de internação.

Graças a Deus não adquiri Covid-19 e agora já estou imunizada, mas procuro manter isolamento social, até mesmo evitando eventos e comemorações com familiares, cuidado necessário caso esteja infectada para não transmitir o vírus a pessoas queridas.

Zuma Pavitra

Meu pai morreu depois de seis dias no hospital. O enterro foi com o caixão lacrado, sem velório, direto para o crematório. Só vimos o caixão. Convivi muito com ele e com a minha mãe. O que fica é a alegria dele, o bom humor, o cuidado comigo, com minhas irmãs e irmão. Saudade vai ter mesmo, mas não é desespero. Ele viveu bem.

Não sei exatamente como peguei a Covid. Fui para São Paulo para ficar junto da minha mãe, porque minha irmã estava no hospital com meu pai. Posso ter pegado dele.

Nesse período, o meu cunhado iria fazer 71 anos. Ele foi internado depois do meu pai, com sintomas, e ficou 28 dias no hospital sendo 20 dias na UTI. Não se recuperou. Era uma pessoa muito presente, um paizão para todo mundo e foi muito dolorida sua morte.

As duas mortes fizeram todo mundo ficar muito unido. Após a morte do meu pai, comecei a me sentir cansada. Conversei com uma amiga médica e ela me recomendou ir para o hospital. Foi a minha salvação. Fiquei sete dias e tive alta. Tive 50% do pulmão tomado. Tive pneumonia pela Covid. Usei um cateter para oxigênio. Considero meu caso leve diante das pessoas na UTI.

A Covid me fez passar por uma transformação profunda. Sinto-me mais generosa, amorosa, humilde e muito disposta. Sou pessoa que tem fé. Acredito na transformação social e na minha. Sou renascida. Sou pós-Covid. Estou renascida, sobrevivi.

Parece utópico falar em orar e meditar. Eu acredito nisso. Sou igual aos artistas que, no meio de toda essa confusão, estão firmes, acreditando na poesia, no amor. Eu acredito também. Para muitos é sonhadora, e não me incomodo.

Fonte: O Vale