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Migalhas – Artigo: Sistemas de registros públicos na visão da professora Mónica Jardim: breves notas e reflexões sobre o modelo brasileiro – Por Carlos Eduardo Elias de Oliveira

25-08-2021

Introdução

Nesta nótula, pretendemos apresentar ao leitor a classificação dos sistemas registrais sob a ótica de uma das maiores autoridades de Direito Registral no mundo, a professora da Universidade Coimbra Dra. Mónica Jardim.

A ideia é propiciar, em uma menor escala cartográfica, uma visão da sua vastíssima e aprofundada tese de doutoramento, publicada sob o título “Efeitos Substantivos do Registro Predial – Terceiros para Efeitos de Registro” pela Editora Almedina.

Aos interessados em maiores detalhamentos, recomendamos-lhes enriquecer-se com a agradável leitura das mais de 800 páginas dessa monumental tese doutoral.

Registros públicos e segurança jurídica no mundo

Importância e sistemas registrais na visão tradicional

Na obra, Mónica Jardim situa a origem dos sistemas registrais na necessidade de reduzir a insegurança jurídica (estática e dinâmica) causada pela falta de publicidade dos direitos reais em sociedades mais populosas e com grande fluxo de negócios imobiliários.

Sem o registro público – de natureza constitutiva ou declarativa -, conferir ou consolidar a oponibilidade erga omnes aos direitos reais apenas em razão de um negócio jurídico solene (eventualmente com a traditio) seria expor os adquirentes de bens a riscos e a custos expressivos. Afinal de contas, sem o registro público, torna-se praticamente inviável averiguar a higidez do direito de propriedade do transferente.

Nos sistemas registrais com eficácia constitutiva, qualquer mutação do direito real depende de registro, embora se admitam exceções de casos em que o registro terá natureza meramente declaratória (a exemplo das hipóteses de sucessões causa mortis, de usucapião e de desapropriação).

Nos sistemas com registro de eficácia declarativa, o registro apenas consolida a oponibilidade erga omnes já preexistente, embora se reconheçam alguns casos em que o registro terá apenas uma eficácia enunciativa (ex.: sucessão causa mortis, usucapião e desapropriação).

Tudo decorre destes três sistemas de registros, nominados de acordo com a terminologia romana: (1) o sistema de título; (2) o sistema de título e modo; e (3) o sistema do modo.

Sistema de título

No sistema de título, a mutação jurídico-real satisfaz-se com o título (= o ato jurídico subjacente, como o contrato, a sentença ou a lei), sem necessidade do modo ( = sem necessidade de qualquer procedimento posterior, como a traditio ou o registro). O registro aí tem eficácia declarativa, pois apenas consolida a preexistente oponibilidade erga omnes. Seguem esse sistema Portugal, França, Bélgica, grande parte da Itália e Luxemburgo.

Sistema de título e modo

No sistema de título e modo, a mutação jurídico-real depende não apenas do título, mas também do modo. Pode haver dois tipos de modos: o simples ou o complexo.

Diz-se “modo simples” aquele que envolve um procedimento (registro ou traditio) que não se abstrai do título, de modo que, na hipótese de invalidade ou ineficácia deste, o procedimento não será, em regra, apto a sustentar a nova situação jurídico-real. Quando se trata de móvel, a regra é que o modo simples seja a traditio. Quando se cuida de imóvel, há países em que o modo corresponde ao registro (Brasil e certas zonas da Itália), caso em que o registro terá eficácia constitutiva, ou à traditio (como na Espanha), hipótese em que a eficácia do registro é declarativa.

Já o “modo complexo” envolve a prática de dois procedimentos. O modo não se resume a uma traditio ou a um registro, mas há também um negócio real previamente. Como há dois procedimentos, diz-se que o modo é complexo. Em suma, nesse sistema, há, como título, o negócio fundamental, que tem natureza obrigacional, como o contrato de doação ou de compra e venda, ao passo que, como modo, há dois procedimentos: (1) o negócio de disposição, também chamado de negócio real, que consiste em autorizar a mutação jurídico-real; e (2) a tradição ou a inscrição registral, conforme se trate de bem sujeito a registro ou não.

Nesse ponto, há dois modelos de sistema título e modo complexo: o austríaco e o suíço. A diferença principal entre eles está no negócio de disposição: este é um contrato na Áustria e é um ato unilateral do transferente na Suíça.

Em ambos os modelos, porém, permanece em vigor o princípio da causalidade, em razão do qual a invalidade ou a ineficácia do negócio fundamental pode derrubar a mutação jurídico-real. Não há, pois, abstração.

Sistema de modo

Por fim, há o sistema de modo (ou melhor, o sistema do modo complexo, para o qual a mutação jurídico-real satisfaz-se com o modo, independentemente do título).

A Alemanha adotou esse modelo, mas o modo é complexo, pois não se resume a um registro ou uma entabulação/extabulação, mas também depende previamente de um negócio de disposição. Esse negócio de disposição é abstrato, ou seja, independe do título, o que demonstra que o título não é parte integrante da mutação jurídico-real.

Em suma, na Alemanha, o negócio obrigacional só se presta a vincular as partes, obrigando-as a celebrar um negócio real.

Celebrar o negócio real é cumprir o negócio obrigacional, razão por que se pode dizer que aquele é um negócio de cumprimento ou de execução. Todavia, esse dever só tem oponibilidade inter partes.

Para nascer um situação jurídico-real, é necessário praticar um negócio de disposição (o “acordo real” ou o “negócio real”) e, posteriormente, realizar a tradição (para móveis) ou a inscrição registral (para imóveis), procedimentos esses cuja validade e eficácia independem do negócio obrigacional. O registro, pois, tem eficácia constitutiva.

Portanto, o sistema de modo complexo é abstrato e constitutivo.

Classificação dos sistemas registrais na visão de Mónica Jardim

O brilho da jurista lusitana acena para uma nova forma de enxergar os sistemas registrais, focando a força do registro na tutela de terceiros.

Sob esse prisma, Mónica identifica dois tipos de sistemas registrais.

O primeiro é o sistema de tutela mínima ou de tutela fraca, nos quais estão os sistemas da família do modelo francês, os quais são denominados, “habitualmente, como sistemas de inoponibilidade, de transcrição, ou sistemas de Registro de documentos”.

Nele, o registro destina-se apenas a garantir a “força negativa ou preclusiva da publicidade”, assim entendida a proteção em favor de quem registrou sua aquisição diante de terceiros.

Foca-se a proteção de quem tem o registro, e não de terceiros adquirentes, que não podem confiar inteiramente na inscrição. A tutela desse terceiro é fraca. Assim, nesses casos, o terceiro adquirente não está protegido dos riscos de evicção decorrentes de fragibilidade dos registros anteriores.

O segundo sistema registral na classificação de Mónica Jardim é o sistema de tutela forte, nos quais se incluem os modelos alemão, suíço, austríaco e espanhol.

Nele, o registro protege não apenas o titular tabular, mas também o terceiro adquirente. O terceiro adquirente não precisa de outras investigações além da consulta ao registro para proteger-se.

Não há risco de evicção contra o terceiro adquirente, observados os requisitos do respectivo ordenamento (como a boa-fé do terceiro adquirente).

Eventual irregularidade do negócio jurídico anterior só redundará no desfazimento do registro se não prejudicar terceiros adquirentes de boa-fé.

Nesse sistema, é princípio lógico que o acesso de um título ao registro depende de um controle prévio (qualificação registral) a ser feito por um profissional especializado (o conservador ou o registrador), pois é preciso garantir a credibilidade do registro.

Para tal classificação, é irrelevante se o registro tem efeito constitutivo ou declarativo, pois o que importa é o grau da tutela do terceiro.

Mónica Jardim defende implantar um sistema registral de tutela forte.

Para tanto, lembra que é para essa diretriz que acenam alguns documentos internacionais, como a Diretriz sobre a Administração do Território, da Comissão para a Europa das Nações Unidas (Land Administration Guidelines, II, The legal framework. C. Deeds registration and title registration), que recomenda um registro que reflita fielmente a realidade (princípio do espelho ou the mirror principle), que torne desnecessário averiguações extrarregistrais (princípio da cortina ou the curtain principle) e que garanta a exatidão do publicado (princípio da garantia ou the insurance principle).

Conclusão e modelo brasileiro

A classificação da professora Mónica Jardim permite enxergar, com mais pragmatismo, os sistemas registrais e, por consequência, o nível de insegurança jurídica dos negócios imobiliários de cada País.

No nosso caso, ainda temos muito a avançar para alcançarmos um sistema de tutela forte, o qual, ao nosso sentir, mais adequado para a economia, a sociedade e o mercado.

Apesar de alguns esforços do legislador – como o empreendido por meio dos arts. 54 e seguintes da lei 13.097/2015 e novo Código de Processo Civil -, o nosso sistema ainda é muito vulnerável a evicções. Não nos compete aprofundar aqui, mas – para não dizer que não falamos das flores – ilustramos que registros ainda podem ruir diante de invalidades (como por fraude contra credores) e até mesmo por ineficácias (como por fraude à execução diante da prova de má-fé no caso concreto). Soma-se a isso que, na prática forense, é comum juízes negarem a averbação-notícia preconizada pela lei 13.097/2015 por uma interpretação que – s.m.j. – frustra os objetivos desse diploma1.

Inúmeros outros focos de fragilidades existem a enfraquecer o modelo registral brasileiro, mas esse debate ficará para outro momento. O que nos importa aqui é sublinhar que o vanguardismo da classificação da jurista lusitana traz a lume riquíssimos debates sobre o grau de segurança jurídica dos modelos registrais em cada país.
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1 Veja este julgado a título exemplificativo:

Ação de cobrança. Tutela cautelar. Averbação na matrícula de imóvel do réu. Ausência dos requisitos legais. Lei 13.097/15. A averbação da existência de demanda que não tem natureza real ou pessoal reipersecutória depende de ordem judicial – art. 56, da Lei 13.097/15 – e se traduz em medida cautelar que deve atender aos requisitos do fumus boni juris e periculum in mora, ausentes no caso.

(TJDFT, Acórdão 1322138, 07516369420208070000, 4ª Turma Cível, Rel. Des. Fernando Habibe, DJe 23/3/2021)

*Carlos Eduardo Elias de Oliveira é professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral na Universidade de Brasília e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado/parecerista. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.