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Migalhas – Artigo: Patrimônio de afetação e a Cédula Imobiliária Rural – Por Vitor Frederico Kümpel

17-11-2021

A expressão “afetação” está ligada à possibilidade de segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica, permitindo a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração econômica1. Ressalte-se que a afetação não retira o bem do patrimônio do titular, mas apenas o mantém separado para que não haja a comunicação com o restante do patrimônio2.

Dessa forma, o patrimônio de afetação funciona como um regime especial de propriedade, garantidora em favor de credores, que assegura ao beneficiário o direito de sequela e torna nula eventual alienação ou transferência total ou parcial do bem3.

Pode-se dizer que o elemento característico fundamental do patrimônio de afetação é a sua incomunicabilidade, na medida em que constitui uma universalidade de direitos e obrigações, vinculada ao cumprimento de uma finalidade específica, para a qual reveste-se de autonomia funcional.4-5

A Cédula Imobiliária Rural e o patrimônio de afetação de propriedades rurais foram instituídos pela Medida Provisória 897, de 1º de outubro de 2019, convertida na lei 13.986, de 7 de abril de 2020, que provocou mudanças em relação à cédula de crédito e fomentou discussões sobre o instrumento jurídico que representa o crédito imobiliário, existindo a possibilidade de conferir o bem várias vezes em garantia de créditos diferentes.

O Capítulo II (arts. 7º ao 16) da Lei 13.986/20 foi dedicado ao patrimônio de afetação, ficando estabelecido que o proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, poderá constituir a sua propriedade ou parte dela como patrimônio de afetação, inclusive vinculando-o à Cédula Imobiliária Rural (CIR), disciplinadas nos arts. 17 ao 29, do Capítulo III, da Lei 13.986/20.

Nos termos do art. 7º, parágrafo único da Lei 13.896/20, optando o proprietário do imóvel rural por adotar o regime de afetação, o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no imóvel exceto as lavouras, os bens móveis e os semoventes, constituirão patrimônio de afetação, destinado a prestar garantias por meio da emissão de Cédula de Produto Rural (CPR), de que trata a Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994, ou em operações de crédito contratadas pelo proprietário junto a instituições financeiras.

Conforme mencionado, o patrimônio de afetação poderá ser vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, de forma que os bens e os direitos dele integrantes não se comunicarão com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos.

Seguindo o disposto nos arts. 17 e 21 da Lei 13.986/20, a Cédula Imobiliária Rural é título executivo extrajudicial, conceituada como título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, que representa as seguintes situações: i) promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade, e ii) obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural ou fração deste vinculado ao patrimônio rural de afetação, e que seja garantia da operação de crédito acima mencionada, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação de crédito.

Quanto aos efeitos da instituição do patrimônio de afetação, destacam-se os seguintes:

i) o proprietário não poderá constituir sobre o patrimônio de afetação nenhuma garantia real, com exceção da própria CIR ou CPR6;

ii) o proprietário não poderá alienar o imóvel, seja por compra e venda, doação, parcelamento, ou qualquer outro ato translativo7;

iii) o patrimônio de afetação vinculado à CIR ou CPR (apenas na medida dessa vinculação) torna-se impenhorável, não se sujeitando a constrição judicial8;

iv) não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela à qual vinculada a Cédula Imobiliária Rural ou Cédula de Propriedade Rural9;

v) não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural10, nem integrará a massa concursal11;

vi) os atributos do patrimônio de afetação não se aplicam às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural12.

Importa destacar que o proprietário fica obrigado a promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio rural de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais, além de adimplir com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais, nos termos do art. 14, da Lei 13.986/20.

A forma de constituição do patrimônio de afetação, desde a edição da Medida Provisória 897/19, gerou polêmica. Isso porque, de acordo com o art. 8º da MP, seria constituído “por solicitação do proprietário por meio de inscrição no registro de imóveis”, não esclarecendo o ato registral a ser praticado – se registro em sentido estrito ou averbação -. Além disso, o termo “inscrição” é uma afronta ao art. 168 da Lei 6.015/73, que pôs fim aos termos “inscrição” e “transcrição”, as quais passaram a ser abrangidas pelo termo “registro”.

O indício trazido pela Medida Provisória de que a constituição do patrimônio de afetação seria por meio do registro em sentido estrito esteve presente no art. 10, ao dispor: “o oficial de registro de imóveis protocolará e autuará a solicitação de registro do patrimônio de afetação e os documentos vinculados [….]”.

O problema pareceu ser resolvido quando da conversão da Medida Provisória na Lei 13.986/20, que estabeleceu em seu art. 9º, de forma expressa, que o ato a ser praticado seria o registro em sentido estrito. Veja-se: “o patrimônio rural em afetação é constituído por solicitação do proprietário por meio de registro no cartório de registro de imóveis”.

Apesar da expressa e enfática expressão “registro”, alguns doutrinadores entendem que o ato correto para a instituição do patrimônio de afetação não se trata de registro stricto sensu, pelos seguintes motivos: i) o rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito (art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973) é taxativo e numerus clausus, e não foi ampliado pela Lei 13.986/2020; ii) a constituição do patrimônio de afetação não importa mutação júri-real plena, na medida em que o patrimônio não é transferido de um titular para outro, mas sim de um titular para um monte com destinação específica.

No entanto, parece mais acertada a corrente que entende pela constituição do patrimônio de afetação por meio do registro em sentido estrito, na linha do disposto no art. 9º da Lei 13.986/20, tendo em vista que:

i) apesar de ser certo que o legislador deveria ter incluído o patrimônio de afetação no rol do art. 167, I, da Lei nº 6.015/1973, esse argumento por si só não é suficiente para concluir que o patrimônio de afetação rural deve ser instituído por ato de averbação, já que, a regra de solução de antinomias de segundo grau faz prevalecer o critério cronológico sobre o critério da especialidade, de forma que a lei mais nova prevalece sobre a lei especial, isto é, o art. 9º da Lei nº 13.896/2020 prevalece sobre eventual ausência de previsão no inciso I do art. 167 da Lei nº 6.015/1973;

ii) o legislador da Lei nº 13.896/2020 foi extremamente técnico ao definir a natureza dos atos registrais elencados na referida legislação, indicando expressamente quais deveriam ser realizados por ato de registro em sentido estrito e quais deveriam ocorrer por averbação;

iii) o patrimônio rural em afetação, na verdade, importa em uma mutação júri-real, na medida em que a afetação do imóvel gera uma segregação entre o patrimônio do titular e o afetado.13

Em melhor explicação, a mutação júri-real se justifica na medida em que o bem se separa do patrimônio do titular para ser afetado a uma destinação específica. Finda tal destinação, ele retorna ao patrimônio do titular anterior ou incorpora-se ao de outra pessoa. Por isso, filiamo-nos a corrente segundo a qual o ato para constituição do patrimônio de afetação rural é o registro stricto sensu.

Notas:

1 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79.

2 M. N. Chalhub, Da Incorporação cit. (nota 1 supra), p. 79.

3 M. A. Rocha, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária, in IRIB, s. d., disponível in http://www.irib.org.br/obras/o-regime-da-afetacao-patrimonial-naincorporacao-imobiliaria [12-11-2021]

4 M. N. Chalhub, Da Incorporação cit. (nota 1 supra), pp. 83-84

5 Importa diferenciar o conceito de patrimônio de afetação dado pela Lei nº 4.591/1964, que dispõe sobre a incorporação imobiliária e a Lei nº 13.986/2020. Nessa, a destinação é a prestação de garantias em operações de crédito junto a instituição financeira, servindo como uma garantia real, enquanto na incorporação imobiliária a finalidade é a proteção dos adquirentes das unidades autônomas.

6 Art. 10, §1º, da Lei nº 13.986/2020

7 Art. 10, §2º, da Lei nº 13.986/2020.

8 Art. 10, §3º, II, da Lei nº 13.986/2020

9 Art. 10, §3º, I, da Lei nº 13.986/2020.

10 Art. 10, §4º, I, da Lei nº 13.986/2020.

11 Art. 10, §4º, II, da Lei nº 13.986/2020

12 Art. 10, §5º, da Lei nº 13.986/2020

13 V.F. Kümpel, C.M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo II, São Paulo. YK Editora, 2020, pp. 2756 ss.

Referências:

Chalhub, Melhim Namem, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003.

Kümpel, Vitor Frederico, Ferrari, Carla Modina, Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v. 5, tomo II, São Paulo. YK Editora, 2020.

Rocha, Mauro Antônio, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária, in IRIB, s. d., disponível in http://www.irib.org.br/obras/o-regime-da-afetacao-patrimonial-naincorporacao-imobiliaria [12-11-2021]

*Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

Fonte: Migalhas