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Migalhas – Artigo: Os desafios e soluções na dissolução de SPEs no mercado de incorporações imobiliárias – Por Jéssica Cassemiro

A dissolução de sociedades de propósito específico encontra diversos desafios que envolve desde prazo para assistência técnica de unidade até tratamento de unidades em estoque.

23-08-2022

Um questionamento que, de tempos em tempos, surge para as empresas do setor imobiliário, é em que momento se faz oportuna a dissolução de sociedades de propósito específico. Como o próprio nome diz, uma SPE – como são cunhadas sociedades deste tipo – encontram um fim em si mesmas, mediante a conclusão de um projeto por prazo determinado. A dissolução se refere a um acontecimento pontual que altera o status da companhia por colocá-la em posição jurídica típica de liquidação, onde se instaura com maior ou menor brevidade o procedimento que conduz ao fim determinado (PENTEADO, 2000, p.62 APUD SCHLINTWEIN, 2014, p.226)[1].

Embora algumas literaturas tenham construído uma narrativa de necessidade de previsão de prazo, certo e determinado, para dissolução de uma SPE, a jurisprudência vem se consolidando em sentido contrário, reforçando a racionalidade de que a Sociedade de Propósito Específico “(…) não se exaure com a conclusão do empreendimento, mas sim com o término de todas as suas pendências, inclusive financeiras” (CAZETTA, p. 17).[2]

Neste sentido, questiona-se quais aspectos devem ser observados previamente à dissolução da relação societária, para que seja possível garantir a manutenção dos deveres e obrigações da Sociedade perante terceiros, bem como aferir a responsabilidade dos sócios sobre o espólio da Sociedade. Sobre esses vieses, as análises deverão versar sobre aspectos específicos da atividade de incorporação imobiliária, tais como, mas não se limitando a (i) assistência técnica; (ii) estoque de unidades; (iii) escrituras de unidades pelos promitentes compradores; e (iv) ações judiciais em curso.

Até o advento do Código Civil de 2002, o entendimento da súmula 194 do Superior Tribunal de Justiça era de que a responsabilidade do construtor pelo reconhecimento de vício construtivo era de 20 anos. Entretanto, o artigo 205 do Código Civil de 2002 alterou este entendimento, de forma que prevalece hoje, o prazo prescricional de 10 anos para alegação de vício construtivo. Não obstante a este racional, o prazo de garantia, no que diz respeito à assistência técnica para fins de reparos de danos, é de 05 anos, conforme pronunciado no artigo 618 do Código Civil cumulado ao entendimento do Artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, no tocante a assistência técnica, é prudente considerar a dissolução a partir do quinto ano de aniversário da entrega do respectivo empreendimento imobiliário.

O estoque de unidades autônomas também é um fator relevante a ser considerado para o encerramento de uma SPE, isso porque, trata-se de um ativo importante da sociedade e deve receber o tratamento dado pelo Artigo 1.051 do Código Civil[3], qual seja, a avalição do valor patrimonial contábil da sociedade para fins de apuração de haveres.

Em uma sociedade de propósito específico, a apuração de haveres a partir da aplicação do valor patrimonial contábil, quando há unidades em estoque, podese mostrar desvantajosa aos sócios liquidantes pois consideram, como ponto de partida, o valor de custo de desenvolvimento das unidades autônomas em estoque, o que pode ser controverso visto que essas unidades poderão ser vendidas a preço diverso daquele inicialmente pretendido mediante concessão de descontos, o que impacta diretamente no retorno financeiro esperado (Cazetta, 2021, p.44)[4].

Ainda nesta seara, defende a autora Camila Cazetta, que a existência de unidades autônomas em estoque demonstra que o objeto social da SPE ainda não foi totalmente executado3, exigindo uma postura da sociedade de se responsabilizar pelas despesas e manutenções supervenientes à comercialização das unidades. Neste cenário, mostra-se saudável a opção de manter o quadro social da sociedade, obrigando aos sócios a se responsabilizarem pelo rateio dos custos decorrentes destas transações, conferindo um ambiente de maior segurança jurídica, tanto ao patrimônio dos sócios, quanto da sociedade e de terceiros interessados. Preconiza-se o cenário conservador de alienação de todas as unidades autônomas do empreendimento imobiliário desenvolvido, como fator prévio à dissolução de sociedade, sem prejuízo de que as respectivas escrituras de venda e compra sejam lavradas posteriormente ao encerramento da sociedade.

3 Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.

4 CAZETTA, Camila Cortez. Os limites da apuração de haveres nas sociedades de propósito específico voltadas à incorporação imobiliária. FGV, 2021. P. 44.

A figura do liquidante, por sua vez, é, não raras vezes, associada à pessoa que permanecerá responsável pela liquidação dos ativos e passivos da sociedade em um momento pós dissolução. Entretanto, é imperioso mencionar que o liquidante também guarda grande responsabilidade no tocante à administração do espólio da sociedade. Isso porque, a luz do Artigo 1.104 do Código Civil, “as obrigações e responsabilidades do liquidante regem-se pelos preceitos peculiares às dos administradores da sociedade liquidanda”. O liquidante tem papel fundamental nas responsabilidades pós liquidação da Sociedade de forma que, caso no momento da dissolução existam escrituras de unidades autônomas em aberto, é comum os Cartórios de Títulos e Documentos aceitarem que os instrumentos públicos sejam assinados pelos liquidantes, desde que previamente investidos por meio de cláusula no Distrato Social da Sociedade.

Na hipótese de ação judicial superveniente à dissolução, uma vez que a personalidade jurídica foi desconstituída, o pagamento por eventual condenação recairá, totalmente, sobre a figura dos sócios, e não mais sobre a sociedade. Nesse sentido, prevalece o disposto no Artigo 1.110 do Código Civil que reza “encerrada a liquidação, o credor não satisfeito só terá direito a exigir dos sócios, individualmente, o pagamento do seu crédito, até o limite da soma por eles recebida em partilha, e a propor contra o liquidante ação de perdas e danos”. Logo, os sócios serão incluídos no polo passivo da ação, no limite do que lhes coube na dissolução4, e inelutavelmente, serão responsabilizados pelo pagamento de condenações e custos decorrentes de decisões judiciais desfavoráveis. De toda forma, para evitar que um sócio venha a se responsabilizar por eventual passivo em detrimento de outro sócio, é importante que os instrumentos de dissolução explicitem as regras de regresso para que nenhuma das partes seja prejudicada.

O encerramento de uma sociedade encara desafios de diversas searas e, comumente, essas hipóteses estão atreladas a uma análise de aspectos operacionais, financeiros e administrativos suficientemente necessários para que a dissolução transcorra de forma benéfica para todos os envolvidos.

Notas:

[1] SCHLINTWEIN, Déborah; MENEGHETTI, Tarcísio Vilton. A Dissolução Total da Sociedade Empresária. Revista
Eletrônica de Iniciação Científica. Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas da UNIVALI. v. 5, n.1, p. 219- 236, 1º Trimestre de 2014. Disponível em: www.univali.br/ricc – ISSN 2236-5044, acessado em 28 de maio de 2022.

[2] EMENTA obtida por meio da tese CAZETTA, Camila Cortez. Os limites da apuração de haveres nas sociedades de propósito específico voltadas à incorporação imobiliária. FGV, 2021. P. 17. EMENTA (…) Propósito da sociedade que não se exaure com a conclusão do empreendimento, mas sim com o término de todas as suas pendências, inclusive financeiras. Pendências, no caso, que ainda não foram resolvidas. (…). (g.n.) (TJ/SP. 2ª Câmara de Direito Empresarial. Ap. 1137641-48.2016.8.26.0100. Rel. Claudio Godoy. DJ. 24/09/2018). EME

[3] Op. Cit. 2021, p.46.

[4] Redação extraída da decisão publicada no website https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/7/6743E23C869F44_TJ/SP.pdf

*Jéssica Cassemiro é mestranda pela FGV em Direito dos Negócios e especialista em Direito Societário (FGV) e em Contratos (LL.M Insper).

Fonte: Migalhas