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Migalhas – Artigo: A relativização da coisa julgada nas alegações de impenhorabilidade da pequena propriedade rural – Por Carlos de Oliveira, Mathews de Freitas e Vitor Silva

Uma reflexão sobre possíveis soluções para o problema das alegações de impenhorabilidade da pequena propriedade rural rejeitadas nos processos de execução.

01-04-2022

A coisa julgada é um primado constitucional (CRFB/1988, art. 5º, caput, XXXVI), que visa à concretização da segurança jurídica, isto é, de modo específico, a garantia da estabilidade do direito dito no caso concreto.

O Código de Processo Civil cuida da conceituação da coisa julgada, ainda que de forma incompleta, a definindo como “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (CPC, art. 502).

A doutrina tradicional, por sua vez, afirma que “a res iudicata se apresenta como uma qualidade da sentença, assumida em determinado momento processual” (THEODORO JÚNIOR, Humberto; 2016).

De modo mais simples, a coisa julgada é a estabilidade da decisão judicial e de seus efeitos.

A estabilidade da decisão judicial pode ser endoprocessual ou extraprocessual, o que a doutrina denomina como coisa julgada formal e material, respectivamente.

A coisa julgada formal é a preclusão máxima da decisão, que a torna imutável e indiscutível, após o trânsito em julgado, somente no âmbito do processo em que foi proferida.

Por outro lado, a coisa julgada material, que se confunde com o próprio conceito geral do instituto, diz respeito à inalterabilidade dos efeitos da decisão, os quais extrapolam a relação processual.

Apesar de ser um direito fundamental de grande importância, o respeito à coisa julgada pode ser um entrave para efetivação de outros direitos fundamentais, como, por exemplo, o da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, que muitas vezes tem seu reconhecimento negado nos processos de execução. Essa proteção constitucional, por vezes, apresenta-se como a única solução para defesa do executado.

De acordo com movimento mundial dos ordenamentos em melhor tutelarem as situações existenciais, a Constituição Federal de 1988 previu expressamente, no rol dos direitos fundamentais, a proteção a pequena propriedade rural, acobertando-a de penhora para pagamento dos débitos decorrentes de seu titular, desde que trabalhada pela família (art. 5º, XXVI da CF/881). A força dessa proteção é tamanha que, mesmo que o imóvel tenha sido dado em garantia hipotecária, por exemplo, a proteção incide por se tratar de matéria de ordem pública, “inafastável por vontade de seu titular“2.

Afora a longa perlenga para se definir o conceito de pequena propriedade rural, restou decidido tanto do STJ3 quanto no STF4 que, para sua caracterização, deve ostentar tamanho entre um e quatro módulos fiscais, medida que pode ser consultada no INCRA, de acordo com art. 4º, II, a da lei 8.629/93.

Dos requisitos constitucionais retira-se que para ser acobertado pela impenhorabilidade, portanto, o imóvel deve i) ser pequena propriedade rural (um a quatro módulos fiscais) e ii) ser trabalhado pela família. Essa conclusão, apesar de se considerar de tranquila verificação no dispositivo normativo, enfrenta concorrente interpretativo em alguns tribunais. Para essa corrente, a menção feita pela Constituição “para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva” seria outro requisito a ser cumprido para que o imóvel recebesse a proteção legal. Ou seja, o imóvel somente estaria protegido de agressão contra débitos ligados a atividade produtiva. Encontram-se julgados esposando essa tese em tribunais de justiça como os de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia e Tocantins5. Diversamente, os que têm posição contrária reconhecendo somente dois os requisitos para a caracterização da pequena propriedade rural tem-se os Tribunais do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão e Alagoas6.

O STJ7 já se pronunciou sobre o tema decidindo que não há a exigência de a dívida ser oriunda da atividade ligada à produção da terra, classificando a leitura daqueles que assim entendem de ‘açodada’. Conforme ressaltado no julgamento, a menção do texto constitucional tem como função afastar eventual interpretação enviesada de que, na sua ausência, não se pudesse conferir máxima proteção à função socioeconômica da propriedade, dando azo para que se sustentassem que, uma vez dada em garantia, não se poderia alegar a impenhorabilidade para vedar o comportamento contraditório.

Não obstante o posicionamento da corte superior tenha dado maior estabilidade nessa questão, ainda se encontram julgados que se posicionam de modo contrário, infelizmente8. O entendimento vacilante dos tribunais requer atuação detida daqueles que se empenham na atividade de defesa do produtor.

Para a caracterização da proteção constitucional à pequena propriedade rural, portanto, há a necessidade de preenchimento de dois requisitos: um objetivo, verificável pelo tamanho do imóvel e outro que se pode chamar incerto, isto é, não perceptível de plano, mas somente aferível por provas carreadas aos autos. Esse ponto é de vital importância para a concretização do intento constitucional e, na prática, se traveste em delicada matéria uma vez que a prova nem sempre é de fácil fazedura.

O contexto social vivido por famílias proprietárias desses imóveis e o tipo de atividade que é desenvolvida na terra dificulta a obtenção de provas fortes. Não raro ocorre, tamanha informalidade, a escassez dos documentos, sua insuficiência para convencimento do magistrado ou mesmo sua inexistência. A situação pode se agravar considerando que o locus onde geralmente a defesa se dá não permite ampla dilação probatória, uma vez se tratar, normalmente, de processos executivos, onde já esgotado o prazo para oposição de embargos à execução.

Ora, é neste contexto que emerge a discussão acerca dos meios para efetivação do direito de impenhorabilidade da propriedade rural que estejam sob procedimento judicial expropriatório. Nesses casos especificamente, tratar-se-á da hipótese de relativização do instituto da coisa julgada, nos seguintes termos.

É cediço, conforme já mencionado, que o referido instituto se dá com a finalidade de resguardar a segurança jurídica e a efetividade das decisões judiciais, para que o direito subjetivo de contestação de determinado entendimento judicial não se perdure ao longo do tempo por uma das partes, prejudicando o exercício do direito da contraparte em razão da insegurança jurídica que sua relativização desenfreada geraria.

No entanto, verifica-se, da prática forense, que muito frequentemente a coisa julgada formal é, na realidade, um empecilho para a efetivação do direito real de impenhorabilidade do imóvel rural da parte alvo de um procedimento expropriatório em que este imóvel seja o objeto, com base no disposto no art. 507 do CPC, segundo o qual “é vedado à parte discutir no curso do processo as questões já decididas a cujo respeito se operou a preclusão“.

Tal empecilho se dá, fundamentalmente por três motivos, quando: no que se refere à produção de provas, em determinados contextos, esta é insuficiente por inacessibilidade aos elementos probatórios do executado; em outros contextos, este empecilho se dá pelo mero indeferimento do pedido por “falta de provas”, o que, segundo nosso juízo, constitui problemática de natureza distinta da produção insuficiente de provas, conforme se demonstrará; por fim, esta se dá no que se refere à possibilidade de elaboração de pedido de reapreciação por terceiros interessados.

Antes mesmo que seja desenvolvido o devido raciocínio justificativo dos pontos acima mencionados, cumpre ressaltar, a título de esclarecimento, que a nomenclatura “empecilho” não se refere à decisão judicial que eventualmente tenha indeferido o pedido de reconhecimento da impenhorabilidade do bem imóvel rural, mas ao instituto da coisa julgada como óbice à reapreciação do entendimento posteriormente.

No que se convencionou chamar de primeiro empecilho da coisa julgada formal, qual seja a inacessibilidade de provas necessárias para caracterização da impenhorabilidade, aqui se defende que a relativização desta se dará no sentido de trazer à baila o entendimento do art. 505, I, do CPC, senão vejamos:

Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:

I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença.

Verifica-se, de plano, que a tese de relativização da coisa julgada encontra guarida no dispositivo supramencionado, junto ao Código de Processo Civil e é admitida, em regra, somente nos casos em que haja flagrante violação de direito fundamental a uma das partes, segundo entendimento do TJ-DFT.9

No caso em comento, a impenhorabilidade de pequena propriedade rural trabalhada pela família afigura-se direito fundamental que está inserto no art. 5º da Carta Constitucional, destinado à proteção específica dos direitos fundamentais individuais e coletivos, nos termos já expostos.

Além disso, o primeiro requisito presente no dispositivo processual para aplicabilidade da tese de relativização da coisa julgada é a relação jurídica a ser provada se tratar de uma relação de trato continuado. Ora, de acordo com o REsp 686.058/MG, de Relatoria do min. Luiz Fux, em 2004, existem certas relações jurídicas sucessivas que, apesar de ter um fato gerador específico, inserem-se em uma relação jurídica permanente, pelo que se entende ser relação jurídica sucessiva, nos mesmos termos delineados pelo art. 505, I, do CPC.

A relação que o produtor desenvolve com a propriedade e que dá ensejo à caracterização da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, subsume-se justamente à categoria que o art. 505, I do CPC faz alusão. Teori Zavascki conceitua as relações sucessivas como “uma série de relações instantâneas homogêneas, que, pela sua reiteração e homogeneidade, podem receber tratamento jurídico conjunto ou tutela jurisdicional coletiva“10.

A relação desenvolvida pelo produtor se prolonga no tempo nem sempre de forma uniforme, mas sujeita a eventuais níveis de intensidade. Isso, porém, não pode ser motivo para desqualificar seu trato com a terra. Deve-se atentar ao telos constitucional de proteção àquelas famílias que necessitam da propriedade para seu sustento.

A inacessibilidade de provas quando do indeferimento da primeira proposição de impenhorabilidade por uma das partes em contraposição com a existência de tais provas em um segundo momento constituem efetivamente a modificação no estado de fato referente à relação processual em andamento.11

Logo, desde que haja comprovação de que as provas aptas para o reconhecimento da impenhorabilidade do imóvel rural eram inacessíveis ao interessado quando do primeiro pedido (que formou coisa julgada inicialmente), mesmo tendo atendido à boa diligência, medida que deve ser levada em consideração é a alteração no estado de fato, tendo como efeito jurídico justamente a relativização da coisa julgada, com a reapreciação do pedido.

Quanto à última das possibilidades de relativização da coisa julgada, esta ocorre quando da inserção de terceiro não envolvido na relação processual, mas que dispõe de interesse acerca do imóvel rural sob expropriação e que se pretenda impenhorável.

O fundamento óbvio de tal premissa é o presente no art. 506 do Código de Processo Civil, segundo o qual “[…] a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros“.

Ora, se a decisão sob análise que eventualmente tenha indeferido o reconhecimento de impenhorabilidade do imóvel rural em um dado momento processual não serve a prejudicar terceiros, há a possibilidade de relativização da coisa julgada, especialmente em sua faceta material, com o ajuizamento de ação autônoma com o fito de rever a decisão que declarou penhorável o imóvel rural protegido pelo dispositivo constitucional em comento.

Tal é o entendimento já recorrente do STJ, em julgado de relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki, de 2012, segundo o qual assim é entendida tal problemática: “Não há dúvida de que a coisa julgada, assim considerada ‘a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença’ (CPC/73, art. 467), embora tenha efeitos restritos às partes entre as quais é dada’, não inibe que essa sentença produza, como todo ato estatal, efeitos naturais de amplitude subjetiva mais elevada. Todavia, conforme estabelece o mesmo art. 472 do CPC [de 1973], a eficácia expansiva da sentença não pode prejudicar terceiros. A esses é assegurado, em demanda própria (inclusive por mandado de segurança) defender seus direitos eventualmente atingidos por ato judicial produzido em demanda inter alios.”12

Desta forma, é perfeitamente cabível ao terceiro interessado o ajuizamento de ação autônoma com o fito de rever decisão que eventualmente tenha repercussão subjetiva que transcende a relação processual originária e atinge sua órbita de interesse, de forma que se percebe consumar a coisa julgada, inter partes, apenas em sua modalidade formal [endoprocessual], reservando a terceiros eventualmente pela extensão dos efeitos da decisão judicial a possibilidade de relativização da modalidade material [extraprocessual] da coisa julgada.

Por fim, convém ressaltar que o melhor laboratório para o raciocínio aqui desenvolvido é o da prática forense, a qual revela a realidade que circunda o tema, que ainda necessita de bastante maturação até ser aplicado a favor do pequeno produtor rural.

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1CRFB/88. Art. 5º, XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

2 AgInt no REsp 1177643/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 21/11/2019, DJe 19/12/2019

3 REsp 1.284.708/PR 3.ª Turma., Rel. Massami Uyeda, j. em 22.11.2011.

4 MS 22.579/PB, Pleno, Rel. Carlos Velloso j. em 18.03.1998.

5 TJSC AgIn 2011.085010-0/Turvo, 2.ª Câm. de Direito Comercial, rel. Des. Robson Luz Varella. j. em 27.11.2012; TJPR AgIn 958.268-7/Marialva, 14.ª Câm. Civ., rel. Des. Marco Antonio Antoniassi, j. em 14.11.2012; TJSP AgIn 0167844-58.2012.8.26.0000/Barretos, 30.ª Câm. de Direito Privado, rel. Des. Andrade Neto, j. em 17.10.2012; TJGO, AI 0731672-10.2019.8.09.0000, 4ª Câmara Cível, Rel. Beatriz Figueiredo Franco, j. em 06/07/2020; TJTO ApCiv 6356/07/Gurupi, 1.ª Câm. Civ., rel. Des. Jacquline Adorno de La Cruz Barbosa j. em 12.03.2010

6AgIn 70049544554/Lajeado, 1.ª Câm. Civ., rel. Des. Irineu Mariani, j. em 21.11.2012; AgIn 57291/2011/Diamantino, 2.ª Câm. Civ., rel. Des. Maria Helena Gargaglione Povoas, j. em 21.09.2011; AgIn 2011.002376-5, 2.ª Câm. Civ., rel. Des. Pedro Augusto Mendonça de Araújo, j. em 17.05.2012; ApCiv 2.488/2012/Matões, 2.ª Câm. Civ., rel. Des. Marcelo Carvalho Silva, j. 20.03.2012.

7 REsp 1.591.298/RJ, Rel. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 21/11/2017.

8 Exemplificativamente: TJSP, AC 1000379-80.2017.8.26.0404, Rel. Mauro Conti Machado, 16ª Câmara de Direito Privado, j. em 15/03/2021; TJRS, AI 70082183401, Rel. Liege Puricelli Pires, 17ª Câmara Cível, j. em 24/10/2019.

9 Agravo de Instrumento 0001835-37.2012.8.07.0000, Rel. Des. ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS, Data de Julgamento: 30/05/2012, 4ª Turma Cível – TJDF, Data de Publicação: Publicado no DJE: 11/06/2012. Pág.: 157.

10 ZAVASCKI, Teori Albino. Coisa julgada em matéria constitucional: eficácia das sentenças nas relações jurídicas de trato continuado. Revista do Superior Tribunal de Justiça. Brasília, p. 107-132, 2005, p. 112.

11 “Impenhorabilidade – Imóvel rural – Preclusão – Coisa julgada – Fato novo. A impenhorabilidade de pequeno imóvel rural, em razão de servir de residência e meio de subsistência do devedor e sua família, reconhecida em decisão judicial, pode ser revogada diante de fato novo consistente na cessação de tal situação fática, não mais servindo o bem a tais utilidades. Recurso não provido.” TJSP, AI 2093932-13.2020.8.26.0000, Rel. Itamar Gaino, 24ª Câmara de Direito Privado, j. em 14/07/2020.

12 STJ, 1ª Turma, REsp 1.251.064, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 28/02/2012, DJ 27/03/2012.

Autores:

Carlos José Martins de Oliveira é colaborador do escritório João Domingos Advogados.

Mathews Henrique Araújo de Freitas é associado do escritório João Domingos Advogados.

Vitor Hugo Souza Silva é colaborador do escritório João Domingos Advogados.

Fonte: Migalhas