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Clipping – Carta Capital – Paulo Iotti: “Julgamento de STF sobre registro de pessoas trans foi histórico”

07-03-2018

Doutor em Direito Constitucional, Colunista do Justificando e Advogado que é presença constante no Supremo Tribunal Federal de causas de interesse LGBT à discussão sobre impeachment de Dilma Rousseff, Paulo Iotti tem se notabilizado por diversas conquistas de direitos para causas pela via do Judiciário. 

A mais recente vitória da qual participou, ao lado de Maria Berenice Dias, Wallace Corbo, Toni Reis, Ananda Puchta, Gisele Alessandra e demais integrantes da Aliança Nacional LGBTI, foi motivo de muita comemoração pelo movimento, uma vez que o Supremo Tribunal Federal decidiu que pessoas transgêneros poderiam mudar o registro civil sem cirurgia, laudos de terceiros e decisão judicial, tornando muito a mudança muito mais acessível.

Embora o julgamento tenha sido na última semana, Iotti já havia sido destaque após o vídeo de sua sustentação oral na sessão de julgamento ocorrida sobre o tema em Abril de 2017. Relembre:

Em entrevista para o Justificando, Iotti conta sobre a importância da decisão do Supremo, comentou voto a voto dos ministros da corte, revelando profunda decepção com o voto do ministro Marco Aurélio. Em seguida, contou sobre como a questão muda na prática e se a decisão deve ou não ser regulamentada.

“Foi um julgamento histórico que mudou paradigmas, ao permitir a mudança de nome e sexo nos documentos das pessoas transgênero, independente de cirurgia, laudos e de ação judicial. Esse último ponto é simplesmente fenomenal” – afirmou.

Ao final, o advogado fala um pouco sobre advocacia estratégica no Supremo e o quanto seria positivo que mais pessoas se inspirassem para usar de seus conhecimentos jurídicos para lutar por conquistas de populações minorizadas. Para ele, o julgamento altera profundamente a realidade das pessoas transgênero: “Muda tanto que parece que fomos transportados a um universo paralelo!” – comemora.

Leia na íntegra:

Justificando: Por que o julgamento do Supremo foi importante?

Paulo Iotti:  A importância foi transcendental. Foi um julgamento histórico que mudou paradigmas, ao permitir a mudança de nome e sexo nos documentos das pessoas transgênero, independente de cirurgia, laudos e de ação judicial. Esse último ponto é simplesmente fenomenal. No Judiciário, depois de um primeiro momento [até os anos 1990], quando não se alterava a alteração nem mesmo com cirurgia – que chamavam de mera “plástica estética”, que “não mudava o sexo” e que podia ser contraditório com a (inexistente) proibição do “casamento homossexual” e tudo isso dito em acórdãos do passado -, passou-se a, em algum momento da primeira década dos anos 2000, a consolidar-se a permissão à mudança após a cirurgia. Era ainda muito polêmico e minoritária a mudança sem cirurgia, embora a jurisprudência estivesse se direcionando para isso.

A questão da dispensa de laudos quase nunca foi judicializada. Só sei de um caso, a histórica decisão do caso da militante Neon Cunha, em 2016, que pediu isto ou, se fosse negado, pediu que fosse autorizada sua eutanásia, por não aceitar viver sem pleno respeito a sua identidade de gênero. Tenho uma ação que pende de sentença também para dispensar laudos, mas não é um tema que o Judiciário sequer conhece, menos ainda está acostumado. A luta estava começando a engatinhar. A dispensa de ação judicial era fruto de um pedido da Defensoria Pública da União ao CNJ, o qual suspendeu o julgamento até o definitivo deste do STF. 

Então, a permissão à mudança sem sequer ação judicial, absolutamente acertada e em consonância com decisão de novembro/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos [OC 24/17], teve importância transcendental, mudando totalmente o paradigma então vigente. E facilitando muito a vida das pessoas trans, já que muitas não tinham acesso a advogadas ou advogados para tanto, lembrando da ainda precária estrutura das Defensorias Públicas país afora). Não há palavras que traduzam totalmente a importância histórica dessa decisão.

Just: Qual voto você destaca?

P.I.: Como o inteiro teor de todos [os votos] não está disponível e Ministras e Ministros resumiram seus fundamentos, falarei pelo que ouvi nas três sessões em que o julgamento se deu. Vou destacar no final o da Ministra Cármen Lúcia, mas é preciso dizer que há importâncias distintas. O voto do Ministro Fachinfoi fantástico, o que liderou a divergência, tanto que redigirá o acórdão, ao dispensar cirurgias, laudos e ação judicial. Muito importante porque veio depois de um voto muito problemático do Ministro Marco Aurélio, que piorava a situação das pessoas trans ao exigir mais laudos, idade mínima de 21 anos e dois anos de tratamento. O Ministro Alexandre de Moraes exigia ação judicial, mas dispensava laudos e cirurgia.

O Ministro Barroso, como fez em 22.11.2017, fez questão de elogiar a luta de Maria Berenice Dias, Toni Reis e a minha, como históricos militantes, importante reconhecimento da luta de movimentos sociais que possibilita decisões históricas tais e adotou, como sua conclusão, a tese que apresentei em nome de GADvS e ABGLT, no memorial que protocolei. O Ministro Celso de Mello, sempre muito técnico e defensor de minorias, muito bem falou da função contramajoritária da Suprema Corte e do Judiciário em geral na concretização do direito fundamental à felicidade da população transgênero, nesse caso. Toda a maioria [Mins. Fachin, Barroso, Fux, Rosa Weber e Cármen Lúcia] muito bem destacaram a decisão da Corte IDH, que juntei no meu memorial, sem a qual essa decisão não teria sido possível. Dito tudo isso, não posso deixar de dizer que foi arrepiante o voto da Ministra Cármen Lúcia o mais emocionante, que fez militantes trans chorarem, quase fui às lágrimas também lá no STF. 

Ela [Cármen Lúcia] fez um discurso tocante e muito pertinente. Disse que, enquanto mulheres cisgênero sofrem inúmeras opressões pelo machismo social, relatou que uma pessoa transgênero lhe disse que as pessoas LGBTI tem um drama a mais. Pois têm em suas famílias o primeiro lugar de opressão, enquanto minorias e grupos vulneráveis em geral têm em casa lugar de proteção contra opressões externas. Fez duas belíssimas metáforas, uma citando Cecília Meirelles, sobre a pessoa não poder ser quem realmente é, bem como dizer que não há liberdade quando outra pessoa pode dizer que você é. Fechou com chave de ouro, inclusive por desempatar a questão da possibilidade da mudança sem ação judicial, uma vez que os outros temas já tinham larga maioria. Não podia ter sido melhor.

Just: Teve algum voto que o decepcionou?

P.I.: O do Ministro Marco Aurélio. Foi chocante porque, como falei em artigo no Justificando, ele é normalmente um dos mais progressistas e sensíveis da Corte. Mas, embora dispensasse a cirurgia – e nisso tivemos maravilhosa unanimidade -, exigiu laudos, sendo o único a tanto, e, aqui o choque, piorava a situação das pessoas trans. Até esse julgamento, a Justiça aceitava um único laudo, de psicólogo ou psiquiatra, sem idade mínima e sem tempo mínimo de avaliação. O Ministro Marco Aurélio, confundindo requisitos para cirurgia com requisitos para mudança de nome e sexo, questões transcendentalmente diferentes, exigia todos os requisitos do CFM para cirurgia. Na parte dos laudos, exigia de toda equipe multidisciplinar [cirurgião, psiquiatra, psicóloga, endocrinologista e assistente social], após no mínimo dois anos de acompanhamento. Foi assustador ouvir isso, fiquei chocado. E contra isso não podíamos, advogadas(os), nos insurgir em questão de ordem e de fato. Daí a importância dos debates da divergência iniciada pelo Ministro Fachin e acompanhada por toda a maioria.

Just: É preciso alguma regulamentação ou a decisão vale por cima mesma?

P.I.: Em tese, a decisão do STF nesse tipo de processo [Ação direta de inconstitucionalidade, conhecida pela sigla ADI] tem “força de lei”, por seu efeito vinculante e eficácia erga omnes[1]. Como ela não remeteu a regulamentação posterior para produzir efeitos, têm eficácia imediata. Ao passo que não há segredo nenhum para implementa-la, pois, da mesma forma que antes se registrava uma decisão judicial no livro de registros respectivo para mudar nome e sexo da pessoa trans, agora bastará mudar mediante uma declaração escrita e assinada em que a pessoa se declare transgênera e diga qual o novo prenome e sexo que deseja ter em seus documentos. Injustificável qualquer recusa sob fundamento de “não saber” como agir. Seria um simplismo acrítico muito absurdo, se não for transfobia institucional disfarçada de dúvida procedimental.

De qualquer forma, sabemos que virão resistências reacionárias à decisão. Por isso, entidades de defesa da população LGBTI (ANTRA, ABGLT, Aliança Nacional LGBTI e GADvS), bem como Maria Berenice Dias, já declararam que oficiarão o Conselho Nacional de Justiça para que regulamente o tema. Da mesma forma como fez com o casamento civil homoafetivo, em 2013. Naquela época, lembremos, havia juízes que negavam o casamento, diferentes Tribunais de Justiça regulamentavam o tema de formas diferentes, havia alto grau de insegurança jurídica. Por isso, embora, em tese, desnecessária para aplicar a decisão, uma regulamentação do CNJ para todo o país ajudará muito na sua efetivação. Protocolarmos o pedido nos próximos dias.

Just: Agora, em termos práticos, como muda?

P.I.: Muda tanto que parece que fomos transportados a um universo paralelo! Até hoje, exigia-se ação judicial, laudos e cirurgia. Agora pode-se mudar nome e sexo sem ação judicial diretamente no Cartório de Registro Civil, sem laudos e sem cirurgia, mas com mera declaração de vontade, escrita e assinada, da pessoa trans.

Just: Em 2011, você participou do julgamento do casamento homoafetivo, e agora em 2018, sobre registro de pessoas trans e disse recentemente que a sensação de vitória é a mesma. Você não se sente um pouco cansado?

A boa luta dos direitos humanos é muito gratificante e vale, muito, a pena. Ainda mais porque tive o privilégio histórico de ter sido citado nesse dois julgamentos – e elogiado por minha sustentação oral pelo Ministro Antonio Carlos, do STJ, no julgamento sobre o casamento civil homoafetivo, meses após o do STF. “No pain, no gain”. Recuperei-me nesses últimos dias de duas semanas muito intensas no STF, despachando memoriais com as onze assessorias do Tribunal o memorial que elaborei – e que acabou citado pelo Ministro Roberto Barroso, que adotou nossa conclusão. Foi maravilhoso. Enquanto o corpo tiver forças, estarei sempre nessa boa luta. Em 2011, o STF reconheceu o direito à diversidade sexual. Em 2018, o direito à diversidade de gênero – também reconhecido pelo TSE, em resposta a Consulta da Senadora Fátima Bezerra (PT/RN), instruído com parecer de minha autoria. Não tenho palavras para descrever o quão feliz e honrado pelo privilégio histórico de ter contribuído, com outras e outros militantes, para essas históricas vitórias.

Just: Como você aplica sua estratégia judicial? Você pensa que mais advogados e advogadas de movimentos sociais poderiam utilizar advocacia estratégica no Poder Judiciário? Quais as ferramentas?

P.I.: Costumo dizer que não temos muito de “Advocacia Estratégica LGBTI”, temos uma “Advocacia: Supremo, Socorro!” [Paulo ri].

O Movimento LGBTI nunca saiu da luta no Legislativo, mas nosso Congresso continua absolutamente insensível à proteção dos direitos humanos e fundamentais de minorias e grupos vulneráveis em geral. O Judiciário tem sido nossa única esperança.

No Constitucionalismo Contemporâneo, desde pelo menos o pós-Guerra (1945), o Judiciário faz parte da democracia, garantindo direitos humanos e fundamentais de forma contramajoritária. Democracia não é ditadura opressora da maioria contra a minoria, que deve ter seus direitos básicos garantidos. 

Certamente, precisamos de mais advogadas(os) na militância LGBTI, atuando na Justiça para transformar a sociedade. Com ideias e teses jurídicas arrojadas, concretizando princípios constitucionais e direitos humanos para lutar por um mundo melhor. Alguns temas têm bastante apoio no STF, com várias entidades como amici curiae[2]. Foi o caso do julgamento das uniões homoafetivas [ADPF 132/ADI 4277], em 2011, e do direito à doação de sangue por “homens que fazem sexo com outros homens” [ADI 5543], de julgamento iniciado em 2017 e ainda pendente, por pedido de vistas. Nesse caso, dos direitos das pessoas trans, tivemos menor número de entidades habilitando-se como amici curiae [ADI 4275/RE 670.422/RS], o mesmo valendo para os que movi pela criminalização da homofobia e da transfobia [ADO 26/MI 4733]. Ainda não há amici curiae na ação que movi, pelo PSOL, para que o Plano Nacional de Educação seja interpretado como proibindo as discriminações por gênero, identidade de gênero e orientação sexual nas escolas [ADI 5668]. No caso da inconstitucionalidade do “crime de pederastia”, do Código Penal Militar, demanda histórica do movimento, não tivemos amici curiae – pretendia fazer, mas não era um tema que eu dominava e o Tribunal acabou, felizmente, julgando-o mais rápido do que eu imaginava.

Há, agora, na Aliança Nacional LGBTI, presidida pelo histórico e querido Toni Reis, a preocupação em estabelecer um núcleo jurídico maior para a Advocacia Estratégica dos direitos LGBTI+. É muito necessário. Precisamos, mesmo, de mais advogadas(os) judicializando temas de diversidade sexual e de gênero desde a primeira instância e, ainda, maior atuação na Suprema Corte nos casos de repercussão geral em recursos e em ações de controle concentrado (abstrato) de constitucionalidade.

[1] O efeito erga omnes é descrito no art. 102, parágrafo segundo, da Constituição Federal: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.

[2] Amici Curiae, conhecido também como “amigo da causa”, é algum terceiro interessado na causa, que pode ser, por exemplo, um movimento social, que ingressa na ação no STF para também fazer sustentação oral, memoriais e participar da ação como um todo.

Fonte: Carta Capital