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Artigos – ConJur – Reforma da Lei de Falências: estamos mesmo no caminho certo? – Por Eduardo Parenti Gonçalves

09-11-2020

Em 26 de agosto deste ano, foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.229/2005, o qual trata da reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei nº 11.101/2005). Agora no Senado, o documento tramita como PL 4.458/2020 [1].

Apesar de apresentar notáveis virtudes, o PL, em seu estado atual, padece de falhas inadmissíveis, capazes de transformar o sistema falimentar brasileiro em um arcabouço de destruição de empresas que arrasta consigo empregos, inviabiliza a recuperação de créditos e a distribuição de valor entre os stakeholders, além de gerar impasses intransponíveis que resultam no prolongamento catastrófico do procedimento recuperacional.

Caso aprovado, o projeto em questão irá amplificar os impactos negativos causados na economia pela crise advinda da pandemia da Covid-19 e obstaculizar a retomada econômica.

Não é objetivo desta reflexão exaurir o tema. Assim, entre todos os problemas encontrados no PL em questão, trataremos em específico do papel concedido ao Fisco, o qual, ao que nos parece, mostra-se como um dos principais defeitos.

Existem duas principais falhas atreladas ao modo com que o projeto de lei trata o Fisco: 1) a concessão de poderes de veto às fazendas públicas, convolando a recuperação judicial em falência em caso de insuficiência patrimonial; e 2) a continuação das execuções de caráter fiscal em paralelo à recuperação judicial.

A concessão de poderes de veto às Fazendas Públicas

Os poderes de veto atribuídos ao Fisco estão previstos no artigo artigo 73, VI, §2º e §3º. Essencialmente, outorga-se às Fazendas Públicas poder de veto sobre a recuperação judicial e subsequente convolação em falência em caso de “esvaziamento patrimonial”. O inciso VI do mencionado artigo indica haverá convolação da recuperação em falência “quando identificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as fazendas públicas”. O §3º, por sua vez, afirma que “considera-se substancial a liquidação quando não forem reservados bens, direitos ou projeção de fluxo de caixa futuro suficientes à manutenção da atividade econômica para fins de cumprimento de suas obrigações, facultada a realização de perícia específica para essa finalidade”. O §2º ainda afirma que a convolação realizada por força dos dispositivos mencionados implicará na invalidade ou ineficácia dos atos praticados [2].

A conjugação dos dispositivos elencados resulta na colocação do Fisco em uma posição de hold-up, isto é, em uma posição dentro da qual a entidade pode impedir a alocação eficiente de ativos da empresa recuperanda ao subordinar a distribuição de valores aos seus interesses particulares. Em outras palavras, o Fisco pode efetivamente vetar a recuperação judicial, ou manipulá-la, sob o pretexto de esvaziamento patrimonial, caso não vislumbre uma prioridade distributiva no procedimento recuperacional [3]. Os artigos possibilitam, dessa maneira, a utilização deste poder de veto para conseguir maiores vantagens na alocação de valor dentro da recuperação.

Ademais, tem-se praticamente a inviabilização da venda de ativos em processo de recuperação judicial. Isso ocorre por conta da extrema insegurança jurídica provocada pelo §2º. A empresa em recuperação resta incapaz de desinvestir (vender seus ativos para gerar liquidez), pois como todos os atos praticados podem ser anulados a qualquer momento por força de “esvaziamento patrimonial”, ou a empresa não conseguirá encontrar compradores interessados, ou ela alienará os respectivos bens por valores muito inferiores, haja vista o risco que terá de ser suportado pelo adquirente.

Diante da vagueza e indeterminação do termo “esvaziamento patrimonial”, podemos concluir ainda que a referida incapacidade de desenvolvimento pode ocorrer frente a qualquer tentativa de alocação de ativos por meio de venda, antecipada ou por força de plano de recuperação, haja vista a impossibilidade de pagamento de todos os créditos não sujeitos ao processo, especialmente o crédito fiscal.

Note que esta última consequência deságua em valores menores recebidos pela recuperanda, o que, por sua vez, resulta em um valor de retorno aos credores inferior. Nas palavras do professor Cássio Cavalli, a regra cria uma profecia autorrealizável [4].

Como última crítica ao mecanismo discutido, tem-se uma má compreensão da natureza da situação de insolvência. O Direito Falimentar envolve, inerentemente, uma perda. Nesse sentido, a função do regramento é disciplinar a forma com que esta perda vai ser distribuída entre os interessados no processo de recuperação ou falência de determinada firma. Não pode haver um tratamento diferenciado a ponto de excluir um stakeholder, no caso, o Fisco, do procedimento concursal. Isso vai contra a essência de todo o instituto.

A continuação das execuções de caráter fiscal em paralelo à recuperação judicial
O PL, em seu artigo 6º, II, estabelece que o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende execuções “relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência”, enquanto no inciso III consagra a “proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência”.

Essas regras, todavia, não se aplicam à execução de créditos fiscais (bem como para a execução de qualquer crédito não sujeito à recuperação judicial). Em realidade, a continuidade das ações de cobrança fiscal é reforçada pelo artigo 6º, §7º-B, o qual afirma que “o disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais (…)”. E qual o problema dessa disposição?  

A continuidade da execução fiscal em paralelo ao processo de recuperação pode resultar no esvaziamento precoce do valor da empresa recuperanda, o que diminui, por conseguinte, o valor de retorno para os credores.

A recuperação judicial lida com um problema de tragédia dos comuns, isto é, uma situação em que há uma “corrida” predatória e não colaborativa de credores pelos ativos do devedor e que resulta na destruição antecipada de valor decorrente das diversas execuções individuais. O Direito Concursal, dessa forma, enfrenta este dilema colocando todos os credores em um procedimento conjunto, colaborativo e obrigatório, evitando a dissolução do valor da companhia ao suspender mecanismos individuais de satisfação de crédito [5] e ao criar uma plataforma de negociação que viabiliza a alocação eficiente de ativos da empresa devedora.

Todavia, a regra em questão do PL 4.458/2020 vai contra esse raciocínio e retira um agente importantíssimo do processo concursal, o Fisco. Em outras palavras, o que a lei faz é permitir que um credor continue a executar e penhorar bens do devedor enquanto todos os outros credores estão inseridos em um procedimento único e obrigatório, reduzindo o conjunto de bens da recuperanda e, consequentemente, o valor de retorno destinado aos interessados na recuperação, o que também inclui, no médio e longo prazos, as Fazendas Públicas.

Além de possibilitar a extração gradual de valor da companhia, a norma ainda coloca o Fisco em uma posição de hold-up, ou seja, um estado em que é capaz de travar o andamento do processo de recuperação ao ameaçar retirar valor da empresa caso seus interesses não sejam atendidos, o que impede uma alocação verdadeiramente eficiente dos ativos da devedora.

Buscamos explorar nesta reflexão dois problemas centrais encontrados no atual projeto de reforma da Lei de Falências Brasileira. As falhas apontadas são, ao nosso ver, extremamente sérias e devem ser corrigidas sob a pena de devastação do sistema recuperacional do país. 

Fonte: Consultor Jurídico