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Artigo – Registros sobre Registros (n. 165) – Por Ricardo Dip

24-07-2019

(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca -parte 26)
Des. Ricardo Dip

830. Ainda no âmbito específico da hipoteca cedular pende de breve exame, limitado à esfera particular do direito brasileiro atual, as questões da inalienabilidade e da impenhorabilidade dos imóveis objeto desta garantia.

Ademar Fioranelli versou a matéria com farta documentação, observando, à partida, que, em linha de princípio, podendo todo prédio hipotecado ser suscetível de alienação, os Decretos-leis brasileiros ns. 167 (de 14-2-1967) e 413 (de 9-1-1969) condicionam a alienação dos imóveis afetados por hipoteca cedular à anuência do credor hipotecário, expressa de modo literal: “A venda dos bens apenhados ou hipotecados pela cédula de crédito rural depende de prévia anuência do credor, por escrito” (art. 59 do Dec.-lei n. 167); “A venda dos bens vinculados à cédula de crédito industrial depende de prévia anuência do credor, por escrito” (art. 51 do Dec.-lei n. 413).
 
Também a impenhorabilidade relativa dos imóveis objeto destas duas referidas hipotecas cedulares impõe-se nas normativas de suas regências: “Os bens objeto de penhor ou de hipoteca constituídos pela cédula de crédito rural não serão penhorados, arrestados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro empenhador ou hipotecante, cumprindo ao emitente ou ao terceiro empenhador ou hipotecante denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão” (art. 69 do Dec.-lei n. 167; mutatis mutandis é o que também se lê no art. 57 do Dec.-lei n. 413).

Reportou-se Fioranelli a julgado do mais posterior dos Tribunais brasileiros: trata-se do RE 89.602 interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em via de embargos de terceiro opostos por credor de hipoteca cedular rural. Decidiu a 2ª Turma do STF no sentido da impenhorabilidade do imóvel objeto dessa hipoteca, tal se lê na ementa desse julgado: “(…) são impenhoráveis –e, portanto, não estão sujeitos a execução (…)– os bens objetos de penhor ou de hipoteca constituídos por cédula de crédito rural devidamente registrada no registro de imóveis” (julg. em 15-8-1978). Recolhe-se do voto de relatoria do Min. Moreira Alves: “As considerações em que se baseou o acórdão recorrido não podem sobrepor-se a textos taxativos de lei, que não dão margem a outra interpretação senão a que resulta de seus termos”.

Este entendimento foi, adiante, perfilhado pela 1ª Turma do STF (p.ex., AgReg no AgInst 512.314-PR, julg. em 1º-3-2005; RE 140.437-SP, julg. em 7-6-1994).

Acima ficou indicada a circunstância de que a impenhorabilidade dos imóveis dados em garantia cedular-hipotecária é relativa, de logo num primeiro sentido porque a hipoteca pode excutir-se pelo credor ou pode este dar anuência à constrição. Mas, de maneira expansiva, inclina-se o Superior Tribunal brasileiro de Justiça ao entendimento de que “a impenhorabilidade conferida pelo art. 69 do Decreto-lei n. 167/67 ao bem dado em garantia na cédula de crédito rural não é absoluta, podendo ser relativizada na hipótese em que não houver risco de esvaziamento da garantia, tendo em vista o valor do bem ou a preferência do crédito cedular” (AgInt no REsp 1.470.352, julg. em 25-9-2018, Rel. Min. Marco Buzzi; cf. ainda, a título ilustrativo, na mesma Corte: REsp 318.328 e AgRg no AREsp 128.211).

No julgamento, em 16 de abril de 2013, do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 285.586, o STJ, por sua 3ª Turma, sob a liderança do Min. Sidnei Beneti, explicitou a relativização mais expandida da impenhorabilidade do bem objeto da hipoteca cedular, assim se lê na ementa do julgado:
“A impenhorabilidade conferida pelo 69 do Decreto-lei n. 167/67 ao bem dado em garantia na cédula de crédito rural não é absoluta. Pode ser relativizada: a) em face de execução fiscal; b) após a vigência do contrato de financiamento; c) quando houver anuência do credor; ou d) quando ausente risco de esvaziamento da garantia, tendo em vista o valor do bem ou a preferência do crédito cedular.”

Essa orientação parece solidada na Corte, contando ainda com a indicação de outras hipóteses de expansão: débito alimentar, dívida trabalhista e quando os créditos forem de um só e mesmo credor; neste julgado, destacou-se, entretanto, que “a insolvência do devedor não figura entre as hipóteses de afastamento da impenhorabilidade aventadas pela jurisprudência do STJ” (vidē AgInt no REsp 1.636.034, julg. em 6-4-2017).

831. Rematando esta concisa incursão no capítulo das hipotecas cedulares, faz falta ainda examinar o tema da cédula de produto rural, objeto da Lei n. 8.929/1994 (de 22-8), alterada com o vigor da Lei n. 10.200/2001 (de 14-2).

Trata-se de um título que representa a promessa de futura entrega de produtos agropecuários, ou seja, a venda antecipada desses produtos.

Antes da Lei n. 8.929, já se procedia, no Brasil, à prática dessa venda antecipada de produtos rurais, mas isto se dava por meio de contratos celebrados com apoio no Código comercial (vidē Eduardo Fortuna, Mercado financeiro), sem prever-se, contudo, a emissão de títulos representativos da promessa de entrega dos produtos. Com a admissão em lei da emissão de cédula de produto rural, que é um título líquido e certo (art. 4º), alargou-se e tornou-se mais flexível a prática então existente.

“Título extremamente versátil”, assim o qualifica Fábio Ulhoa Coelho, a cédula de produto rural tem muitas finalidades, e, diz o mesmo autor, atendeu, com sua criação, às dificuldades do estado brasileiro em financiar as atividades rurais.

Prevê a normativa de regência que se apliquem à cédula de produto rural “as normas de direito cambial, com as seguintes modificações: I- os endossos devem ser completos; II- os endossantes não respondem pela entrega do produto, mas, tão-somente, pela existência da obrigação; III- é dispensado o protesto cambial para assegurar o direito de regresso contra avalistas” (art. 10 da Lei n. 8.929). Essas normas de direito cambial –porque a Lei n. 8.929 é anterior aos preceitos do Código civil em matéria cambial (arts. 887 a 926)– são as da Lei uniforme de Genebra sobre letra de câmbio e nota promissória (Ulhoa Coelho).

Essa cédula conceitua-se por ser o título que representa uma “promessa de entrega de produtos rurais” (art. 1º da Lei n. 8.929), vale dizer que é uma venda a termo, ou seja, na prática, uma venda a prazo (De Plácido e Silva), em que se dá o antecipado recebimento do preço com a promessa de entrega futura de determinados produtos rurais. Cabe aos produtores ou a suas associações (incluídas as cooperativas; cf. art. 2º) expedir um título cambial endossável que pode acompanhar-se de garantia (hipoteca, penhora ou alienação fiduciária –art. 5º), admitindo-se, tratando-se de hipoteca, recaia ela sobre imóveis urbanos ou rurais (art. 6º), com exigível registro da garantia para sua eficácia contra terceiros (art. 12), registro esse a efetuar-se dentro no prazo exíguo “de três dias úteis, a contar da apresentação do título, sob pena de responsabilidade funcional do oficial encarregado de promover os atos necessários” (§ 2º do art. 12).

Na trilha do que também se prevê nos Decretos-leis ns. 167 e 413, a Lei n. 8.929 dispôs, em seu art. 18, acerca da impenhorabilidade do bem objeto das garantias nela versada: “Os bens vinculados à CPR [cédula de produto rural] não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador da garantia real, cumprindo a qualquer deles denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência, ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão”.

Julgado do Superior Tribunal de Justiça –REsp 1.327.643– firmou-se no entendimento de a função social que foi atribuída à cédula de produto rural prevalecer sobre outros créditos, incluso (no caso objeto do julgamento) o de natureza trabalhista, de sorte que se esboça uma inclinação que, se bem não possa dizer-se já exclusora de modo absoluto da penhorabilidade do bem objeto da hipoteca instituída com essa cédula, restringe a maior extensão reconhecida para a penhora de bens garantidos no plexo das hipotecas cedulares dos Decretos-leis ns. 167 e 413.

 

Fonte: Iregistradores