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Artigo – O fenômeno global da desjudicialização, o PL 6.204/19 e a Agenda 2030/ONU-ODS – Por Arruda Alvim e Joel Figueira Jr

01-12-2020

Está completando um ano a tramitação de um dos mais importantes projetos de lei que o Congresso Nacional já recebeu nos últimos tempos — o PL 6.204/19, de autoria da senadora Soraya Thronicke (PSL-MS), que dispõe sobre “desjudicialização das execuções civis fundadas em títulos extrajudiciais e cumprimento de sentenças condenatórias de quantia certa”.

Entre os efeitos negativos trazidos pela pandemia da Covid-19, um deles foi a paralização dos trabalhos regulares do Legislativo; alguns projetos estavam (e estão) a merecer atenção especial dos parlamentares, diante das matérias versadas com grande potencial voltado à minimização de problemas de ordem jurídica, social, política e econômica a curto e médio prazo — um deles é o PL 6.204/19.

O PL propõe reduzir o número de demandas executivas civis em curso (mais de 13 milhões), com implicações na alocação de algumas das atividades prestadas por magistrados para os tabeliães de protesto (agentes de execução) ou outros serventuários extrajudiciais que exerçam essa e outras atribuições em caráter cumulativo. Ao reduzir demandas executivas, desafoga o Judiciário e passa a conferir aos juízes mais tempo para destinar suas atividades à pratica de atos efetivamente jurisdicionais (solucionando pretensões resistidas em demandas de conhecimento, muitas delas de urgência).

Haverá impacto na redução de despesas para os cofres públicos (mais de R$ 65 bilhões) e o aumento na arrecadação, tendo em vista que os emolumentos percebidos pelas serventias extrajudiciais são repassados em percentuais para os Estados da federação a título de “fundos de reaparelhamento”, beneficiando-se não apenas o Poder Judiciário, mas, dependendo da lei local, também o Ministério Público, as Defensorias Públicas etc.

Está garantido aos hipossuficientes (credor e devedor) o acesso gratuito ao procedimento executivo extrajudicial (artigo 5º), enquanto os emolumentos (iniciais e finais) serão fixados pelos tribunais locais em observância às diretrizes estabelecidas pelo CNJ (artigo 28).

Vale lembrar que na história do Direito Processual Civil, na altura de fins da década de 70, era ainda comum a nomenclatura de Direito Judiciário Civil. Esse nome veio a ser abandonado porque a expressão judiciário se referiria exclusivamente à atividade do juiz, ficando semanticamente de fora a execução. Foi substituída essa expressão para compreender-se a execução como parte do Direito Processual Civil. Hoje parece se esboçar uma reversão que poderá vir até a influir no nome da disciplina.

O PL prevê um sistema de comunicação permanente entre o agente de execução, o juízo relacionado e o procedimento que conduz. As partes ou o agende de execução podem requerer atuação do Estado-juiz mediante “consultas” ou “suscitações” (postulações diversas) sobre questões relacionadas ao título, ao procedimento ou atos que possam causar prejuízo às partes (artigo 21); medidas de coerção deverão ser requeridas ao juiz (artigo 20). Aliás, comprovou-se em países que utilizam essa técnica que a atuação do juiz não é elemento de retardo procedimental, por se tratar de garantia processual, desde que manejados pelas partes em observância ao dever de lealdade processual; caso contrário, a prática de ato protelatório haverá de ser coibida pelo magistrado por litigância de má-fé.

Nesse ponto, algumas críticas feitas ao PL são equivocadas e infundadas, pois o juiz continua sendo o guardião da segurança jurídica, do devido processo constitucional, pronto para ser chamado e atuar sempre que necessário para resolver questões e incidentes procedimentais por ventura não solucionados extrajudicialmente. Está claramente implicado no Projeto 6.204/19 o reconhecimento exponencial da magistratura, como não poderia deixar de ser; o que se fez foi retirar da atividade corrente dos juízes a condução enfadonha da execução marcada principalmente pela materialidade dos atos, doravante os cuidados do agente de execução.

O PL não traz consigo qualquer mácula de inconstitucionalidade. Não se sustentam entendimentos em sentido contrário, tais como “violação da reserva de jurisdição, princípios do juiz natural e inafastabilidade, indeclinabilidade e não delegação das atividades jurisdicionais estatais”; ouvem-se também vozes contrárias às práticas dos atos executórios pelos tabeliães de protesto, com indicação dos advogados para realizarem as tarefas de agentes de execução.

Sobre essas “resistências”, algumas considerações havemos de fazer, vejamos: 1) há muito encontra-se superado o que no passado denominou-se de “reserva de jurisdição” — flexibilizaram-se os subprincípios do “juiz natural” e da “inafastabilidade da jurisdição estatal” (vg. STF, SE 5206-8/246 — constitucionalidade da Lei da Arbitragem); 2) é ingênuo professar que os advogados deveriam absorver as atribuições de agentes de execução; ledo engano, pois em países do continente europeu que assimilaram a técnica da execução desjudicializada total ou parcial (Cons. Europ. Recomendação 17/2003), os advogados prestam concurso público para exercerem as funções de “agente executivo” ou, tratando-se de sistema híbrido, são funcionários que, em linhas gerais, integram a estrutura do Executivo ou do Judiciário, destacados para o exercício desta atribuição, com maior ou menor poder e autonomia, dependendo das configurações normativas delineadas para cada um deles, tendo como ponto comum o impedimento ou a limitação para o exercício da advocacia. Impensável o exercício cabal da advocacia cumulada às atribuições de agente de execução diante de manifesta incompatibilidade [1], em salvaguarda da imparcialidade e independência que devem nortear os agentes de execução; 3) no que concerne à “delegação” de atribuições até então prestadas pelo Estado-juiz aos serventuários extrajudiciais (CF, artigo 236), trata-se de realidade há muito exitosa (v.g. retificação do registro imobiliário, inventário, da separação e do divórcio, retificação de registro civil, usucapião etc.).

Convém salientar que no Código de Processo Civil de Portugal e no Código das Execuções Civis da França os agentes da execução atuam com autonomia e iniciativa, mas ficam sujeitos ao controle judiciário e, diante do êxito obtido nesses países, a Comunidade Europeia — convencida da excelência do sistema — recomenda a adoção dessa técnica em escala maior. O Projeto de Lei 6.204/19 amolda-se às linhas gerais dos sistemas português e francês.

Há três obras magnas que muito nos servem, entre outras: o autor é Richard Susskind, e as obras são “Tomorrow’s Lawyers” (Oxford University Press, 2017, 2ª ed.), “Online Courts and the future of Justice” (Oxford University Press, 2019), e, com seu filho Daniel Susskind, “The Future of the Professions”. Os estudos são abrangentes, com riqueza extraordinária de dados. A obra “Tomorrow’s Lawyers” foi reputada pela ABA (American Bar Association) como sendo disparadamente a melhor do mundo.

Como nortes principais a serem perseguidos estão o enquadramento ao que se entende a respeito das modificações do mundo moderno; a primeira realidade gravita em torno a divisão do trabalho com a afetação de tarefas a outros que se colocaram como satélites do agente principal; de outra parte, propugna-se que tem de haver um esforço imenso para se obter eficiência, utilizando-se das expressões em inglês more for less (obter mais por menos = eficiência).

Para diminuir o acúmulo de processos que impede a finalização da prestação jurisdicional, é necessário que se tenha mais pessoas envolvidas na resolução dos conflitos em prol da rapidez com eficiência/satisfação de pretensões e com menos custos para o Estado; a solução propugnada pelo PL segue essa linha e se coaduna com uma das mais importantes diretrizes constantes dessas obras mencionadas: a divisão do trabalho, alocando-se a cada um dos integrantes desse sistema dividido em tarefas que digam respeito às suas competências.

A previsão de protesto antecedente dos títulos é media salutar já comprovada na prática cartorial, por ser vocacionado à imediatidade da satisfação do crédito perseguido, tratando-se de indiscutível fator inibidor da recalcitrância do devedor em efetuar o devido pagamento [2].

O advogado é indispensável em todo o procedimento extrajudicial (artigo 2º) [3] a ser conduzido pelo agente da execução, e, para o exercício deste mister, ninguém melhor do que os tabeliães de protesto que são, necessariamente, bacharéis em Direito que ingressam na atividade notarial mediante rigoroso e disputadíssimo concurso público de provas e títulos  (CF, artigo 236, caput, e §3º). São ainda os notários e registradores diretamente responsáveis pela prática de seus atos e de seus prepostos, nas esferas administrativa, civil e criminal, o que reforça a garantia e exigência da prestação de um serviço público transparente, qualificado, célere e efetivo, somando-se ao fato de que são todos controlados e orientados permanentemente pelos TJ locais e pelo CNJ; possuem ainda excelente infraestrutura (imobiliária, tecnológica e pessoal) a serviço dos consumidores de suas atividades cartoriais, via de regra prestadas com selo de excelência, por todos reconhecido.

O relatório “Cartório em Números 2020” apresenta dados importantíssimos sobre negócios e cidadania com o mapeamento do que se passa nos 13.440 cartórios extrajudiciais distribuídos em 5.570 municípios, com resultados dignos de reconhecimento e aplausos [4].

Os dados obtidos através de estudos feitos pelo instituto de pesquisa Datafolha (2016-2017), em âmbito nacional, a respeito da satisfação dos consumidores em face dos serviços prestados pelos cartórios extrajudiciais, indicaram índices excepcionais de aprovação, inclusive liderando no quesito “confiabilidade”, à frente de instituições religiosas, Ministério Público, bancos, Forças Armadas e até do Poder Judiciário, entre outros, além de liderar qualidade nos serviços públicos. Os levantamentos efetuados indicam também que a população é contrária à migração desses serviços para órgãos públicos ou empresas privadas [5].

Não nos esqueçamos de que a expressão “acesso à Justiça”, desde os resultados obtidos com movimento capitaneado por Mauro Cappelletti no Projeto Florença, no final da década de 70, deixou de ser compreendida como “acesso ao Poder Judiciário”. Ampliou-se o seu espectro de abrangência, açambarcando métodos múltiplos de resolução de controvérsias assim considerados “equivalentes jurisdicionais”, em que o mote é o amplo acesso aos meios multifacetados de resolução de conflitos, formando-se uma equação cujos vetores são tempo razoável, eficiência e satisfação. Nos dizeres do mestre fiorentino, trata-se de uma nova forma de Justiça: participativa (com a atuação de terceiros não togados) e coexistencial (fundada na autocomposição e técnicas não adversariais).

Nessa linha, o PL 6.204/19 traz soluções para minimizar a crise da jurisdição estatal em estreita ligação com o movimento mundial capitaneado pela ONU, em observância às definições da Agenda 2030-ODS encampada pelo Judiciário através da Meta 9; vem a lume em momento oportuno, dotado de objetivos claros e bem definidos, de maneira a proporcionar aos jurisdicionados um eficiente mecanismo de realização de pretensões voltadas à satisfação segura e rápida de créditos, de modo mais econômico e simplificado. Proposta excelente e como toda obra humana, pode ainda melhorar com o aporte de boas e bem intencionadas sugestões.

Fonte: Consultor Jurídico