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Artigo – ConJur – Os ajustes fenomênicos de gêneros e de agêneros – Por Jones Figueirêdo Alves

28-09-2020

A recente e inédita decisão da justiça carioca, determinando alteração em registro civil para constar nos assentos como de “sexo não especificado” uma pessoa não binária (agênera), em resgate de sua identidade e não propriamente da do seu gênero, coloca novo capítulo no direito registral, com repercussões no direito de família.

O juiz Antônio da Rocha Lourenço Neto, da 1ª Vara de Família da Ilha do Governador, decidiu que “o direito não pode permitir que a dignidade da pessoa humana do agênero (pessoa sem gênero) seja violada sempre que a mesma ostentar documentos que não condizem com sua realidade física e psíquica”. Aoi (novo prenome) Berriel, cientista social de 24 anos, não apenas postulou a alteração do prenome como a de gênero (01).

A decisão judicial, após parecer favorável do Ministério Público, afirmou a ageneridade como uma questão de identidade pessoal (e não a de expressão de gênero) por significar o estado ou qualidade de pessoa que se identifica em condição de não-binariedade, ou seja, sem definição por um dos elementos de um conjunto de gênero (masculino vs. feminino).

Sem embargo ou recurso da decisão, tem-se o respeito à identidade pessoal (ora adquirida) em “afirmação da dignidade como prestação”, tal como sucede, v.g. no direito de família constitucionalizado, com os correlatos identidade genética-identidade pessoal (direito à identidade genética) e biogilização-desbioligização; ou nos direitos fundamentais, com o direito à diferença, implicando dizer que a identidade da pessoa está pautada em amplo espectro e construída, por essencial, a partir de si mesma e em convivência consigo e vinculada às suas relações sociais.

Daí dizer-se da presente decisão, condizente com as liberdades fundamentais da pessoa requerente, para o seu direito reconhecido, servir como precedente para situações que tais, diante de um vazio normativo a esse respeito.

A propósito, convém refletir o artigo 54, 2º, da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973), quando determina que o registro de nascimento deverá conter o sexo do registrando. De logo, a menção é feita ao sexo e não ao gênero. O substantivo “gênero” (gender) pode significar mais um determinismo psíquico-social do que somente um determinismo biológico, ou mais precisamente, situa-se em lógicas diferentes, desvinculadas de uma “arena reprodutiva”, quando, sobremaneira, alteram-se conceitos.

O conceito de gênero foi alargado, à uma ilimitada medida não pensada nos anos 70, ou seja, há quase cinquenta anos atrás, quando editada a lei registral. De ver, antes de mais, a colocação formulada pelo historiador Peter Nathanael Stearns, ex-reitor da George Mason University, de Vírginia (EUA), em sua clássica obra “Gender in World History” (2007) (02) quando, ao tratar das relações de gênero sob os sistemas de valores culturais, sem reforço do patriarcado, adiantou:

“(…) Com certeza, o compasso mais acelerado dos intercâmbios internacionais, tornou os arranjos alternativos de gênero mais visíveis do que nunca, pressionando as sociedades a dissimular, resistir ou se adaptar a novas formas”. De fato. Modelos ocidentais determinaram diversas mudanças de generificação, a exemplo da descriminalização do adultério ou da maior participação de homens, nos países ricos, como professores na educação básica.

Ora, o que vem depois tem superado não apenas as questões culturais inter-relacionais de gênero, mas os próprios gêneros em seu conjunto binário primacial.

Entre os melhores pensadores atuais dos estudos de gênero, Raewyn Connell, autora de “Gender: in world perspecive” (Cambridge, DK, 2015) (03), aponta, com precisão, elementos significantes do termo “gênero”:

(i) as pessoas constroem a si mesmas, reivindicando um lugar na ordem de gênero, pela maneira como se conduzem na vida cotidiana;

(ii) a identidade da pessoa inclui o sentido de pertencimento a uma determinada categoria de gênero;

(iii) as mudanças de configurações têm permitido que sociedades reconheçam novas categorias de gêneros, em suas variações, superando os modelos de identidade somente construídos sobre a dicotomia de gêneros.

Isto significa dizer que há de entender-se a identidade de gênero como sendo uma experiência identitária individualmente internalizada do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído nos assentos registrais.

Pois bem. O direito sempre se preocupou com os denominados “projetos de gênero”, onde a questão do “gênero em transição” para determinada mudança de gênero tem exigido respostas jurídicas prontas, mesmo antes da lei.

E tudo começa quando uma nova autonomia de identidade ao nome passa a ser reconhecida, nos fins de corrigir a vulnerabilidade emocional e social daqueles cuja identidade não guarda adequação ao acerto psicológico do titular diante do gênero construído socialmente.

No caso, a alteração do prenome começou a ser admitida para “diferenciar a identidade sexual (psíquica e aparente), com a sexuação em si (biológica e “original”) (04), ou seja, no sentido de ajustar o prenome de nascimento, então dissonante com a aparência do titular e em desconformidade com a realidade psíquica do seu titular. Enquanto assim, apenas a mudança do prenome originalmente assentado em registro civil, e não ainda à do sexo, ali referido como verdade biológica.

Em 1985, anota-se, então, decisão judicial pioneira no país, quando o juiz da 1ª Vara de Família do Recife, José Fernandes de Lemos (hoje desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco) determinou não apenas alterar o nome mas o sexo, como constantes em registro civil, atendendo ao interesse personalíssimo do requerente que, inclusive, submetera-se, na Suíça, a uma cirurgia de transgenitalização e pretendia contrair casamento. O magistrado enfatizou que a correção registral atendia a realidade psíquica do postulante. Severino tornou-se Silvia. A decisão foi um marco histórico na questão de alteração registral do sexo sob o pressuposto de a identidade de gênero não se confundir com o gênero biológico.

Somente em 1989 seguiu-se a decisão do magistrado Marco Antônio Ibrahim, com deferimento de pedido de alteração do registro civil referente ao sexo e ao prenome de um transexual masculino submetido à cirurgia.

Enquanto isso, a famosa modelo Roberta Close, após cirurgia de redesignação sexual, em Londres, teve seu pedido de mudança de nome negado pela justiça carioca em 1990. Somente depois de inúmeras tentativas por quinze anos, obteve finalmente em 10.03.2005, por decisão da 9ª Vara de Família do Rio de Janeiro, o direito de alterar o prenome original de Luís Roberto para Roberta. A magistrada do feito sentenciou: “O progresso da ciência deve ser acompanhado pelo direito, pois o homem cria, aplica e se sujeita à norma jurídica, da mais antiquada e obsoleta à mais avançada e visionária”.

Também à época, as cirurgias de transgenitalização não eram admitidas no país, tendo, inclusive, o médico Roberto Farina que realizara procedimento do tipo, sido processado por lesões corporais graves.

De todo efeito, o requisito exigível de uma prévia submissão à cirurgia de redesignação de sexo sempre orientou uma condição necessária para a mudança de sexo, na esfera do registro civil.

A permissão sem tal exigência, todavia, esteve somente feita em decisão inédita na Comarca de Vila Velha, no Espírito Santo, em dezembro de 2002, quando autorizadas as alterações de nome de sexo, sem que a transexual feminina tivesse sido submetida a uma cirurgia.

Doutro turno, o STJ, nos casos de transexuais submetidos a cirurgias de transgenitalização, veio permitir as alterações do  nome  e  do  sexo/gênero  no  registro  civil  (REsp. nº 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 15.10.2009 (DJe 18.11.2009); e REsp. nº 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 4ª Turma, julgado em 10.11.2009 (DJe 18.12.2009).  

A diretiva decisória dos Tribunais avançou mais no tema, tendo o Superior Tribunal de Justiça proclamado, afinal, que “a identidade psicossocial prevalece em relação à identidade biológica, não sendo, inclusive, a intervenção médica nos órgãos sexuais um requisito para a alteração de gênero em documentos públicos”.

A decisão paradigma situou-se no REsp. nº 1.626.739-RS, com o voto vencedor do relator, ministro Luís Felipe Salomão, julgado em 09.05.2017. Resultou reconhecido que o gênero é autodefinido por cada pessoa, o que implica ser o sexo jurídico o que, de fato, não se dissocia do aspecto psicossocial da identidade do gênero (RSTJ vol. 247 p. 862). (05)

De efeito, expressou o relator que “independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa”.

Entretanto, apesar dos precedentes, a controvérsia nas instâncias ordinárias prossegue, vindo o Superior Tribunal de Justiça consolidar o entendimento pretoriano ao prover o REsp. nº 1.860.649-SP, em recente julgamento realizado em 15.05.2020. Sob a relatoria do min. Ricardo Villas Bôas Cueva, a 3ª Turma do STJ reiterou a possibilidade de mudanças do prenome e do designativo de sexo, no registro civil, “independentemente da realização da cirurgia de alteração de sexo”.

O relator explicou:

“Condicionar a alteração do gênero no assentamento civil e, por consequência, a proteção da dignidade do transexual, à realização de uma intervenção cirúrgica é limitar a autonomia da vontade e o
direito de o transexual se autodeterminar”. (06)

Mais adiante a alteração do designativo de sexo, sem depender de cirurgia, foi objeto da ADI nº 4.275-DF, à vista do art. 58 da Lei de Registros Públicos, julgada em 01.03.2018, o Plenário do Supremo Tribunal Federal admitiu o direito à substituição do prenome e do gênero, e de consequência, do prenome, diretamente nos cartórios de registro civil de pessoas naturais mediante uma mera autodeclaração.

Seguiu-se, daí, o Provimento nº 73 da Corregedoria Nacional de Justiça, 28.06.2008, dispondo sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN).

Depois disso, o STF também assentou, sob o regime de Repercussão Geral, em 15.08.2018, em face do Recurso Extraordinário nº 670.422, a tese jurídica seguinte:

“(i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa”.

E mais: o julgamento operacionalizou o procedimento, atendendo, destarte, a privacidade do requerente e o segredo de justiça para terceiros, alinhando-se determinações: (i) quanto à vedação no assento registral do termo “transgênero”; (ii) nas constar nas certidões de registro nenhuma referência à origem do ato; (iii) quanto à vedação de expedição de certidão de inteiro teor; (iv) nos procedimentos pela via judicial, preserva-se, igualmente, o sigilo sobre a origem do atos.

Lado outro, anota-se, anteriormente, que a adoção do “nome social”, reconhecido como “adequação do senso de identificação do sujeito referenciando o nome que o representa”, foi objeto do Decreto presidencial nº 8.727, de 28.04.2016, admitindo-se o seu uso no âmbito da administração pública.

Cumpre observar que a Resolução nº 270, do Conselho Nacional de Justiça — CNJ, de 11.12.2018, também veio dispor sobre o uso do nome social pelas pessoas trans, usuárias dos serviços judiciários ou nos seus registros funcionais perante a administração.

Diante de tudo, doutrina e legislação, a par dos julgados de tribunais, buscam avançar, em todo o mundo, no enfrentamento das questões de gênero. Bastante referir:

(i) Em decisão inédita de 08.11.2017, o Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht – BVerfG), nos autos do processo 1 BvR 2019/16, em queixa constitucional oferecida contra decisão do Superior Tribunal (Bundesgerichtshof), de 22 de junho de 2016 – XII ZB 52/15, admitiu pela primeira vez, por sete votos a um, um terceiro gênero (drittes Geschlecht-Entscheidung), paralelo ou fronteiriço ao conjunto binário, que denominou de “intergênero” como categoria jurídica autônoma de gênero.

O julgado atentou para a circunstância especial da heterogeneidade genética, em face de síndromes genéticas dos determinados portadores, estabeleceu uma posição vanguardista para com as pessoas intergêneras e recomendou uma legislação mais avançada para a questão. A decisão mereceu primoroso estudo da jurista Karina Nunes Fritz, com tradução do julgado alemão (07)

(ii) A Alemanha retirou menção ao gênero nas cédulas de identidade civil no país, enquanto a Holanda e outros países da União Europeia sustentam pela desnecessidade da referência nos documentos públicos, designadamente diante de pessoas agêneras.

A decisão carioca determinando constar, em registro civil, menção a sexo indeterminado ou não especificado, adota uma postura alinhada ao posicionamento europeu para os ajustes fenomênicos da realidade de gêneros.

Fonte: Consultor Jurídico