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Artigo – ConJur – Contratualização é o caminho mais seguro para os relacionamentos poliafetivos – Por Glauber Salomão Leite

27-07-2020

Há pouco mais de dois anos, em 26 de junho de 2018, o plenário do CNJ decidiu que os cartórios de notas de todo o país não poderiam lavrar escrituras públicas de reconhecimento de relacionamentos poliafetivos como uniões estáveis. O motivo: a suposta falta de respaldo jurídico no ordenamento brasileiro.

Na ocasião, o relator do processo, ministro João Otávio de Noronha, chegou a justificar que as escrituras públicas serviriam apenas para manifestações lícitas de vontade.

Ocorre, entretanto, que integrar núcleo afetivo composto por três ou mais pessoas, embora esteja fora dos padrões sociais em vigor, naturalmente não importa em ilícito de qualquer natureza, por absoluta falta de previsão legal nesse sentido.

A questão central do reconhecimento das uniões poliafetivas em cartório não tem a ver, portanto, com a validade do ato. Em que pese a decisão do CNJ, tal escritura, a nosso ver, seria válida, por ter um objeto lícito, qual seja: a declaração de que os partícipes constituíram uma entidade familiar a partir de uma relação conjugal caracterizada como união estável. Não se viola norma jurídica alguma com isso, pois obviamente não há lei no Brasil que proíba as relações não monogâmicas. O ponto é outro, referente à eficácia do ato, já que mesmo tendo lavrado validamente a escritura, tais pessoas não teriam a garantia de, posteriormente e em caso de conflito, o Judiciário considerar tal documento hábil a produzir, nas relações poliamorosas, os efeitos próprios da união estável, como regime de bens, herança e direito a alimentos, dentre outros.

O artigo 226, caput, da Constituição Federal, pela sua natureza de cláusula geral de inclusão, ao dispor que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, tutela não apenas os núcleos familiares que constam expressamente no texto constitucional, mas todos os demais. Por tal motivo, a família poliafetiva está implicitamente recepcionada na norma constitucional, mas, a despeito disso, ainda não recebe proteção expressa na legislação ordinária, especialmente no Código Civil.

Tais relacionamentos costumam ser duradouros e ostensivos, em que os seus integrantes se tratam não apenas na intimidade, mas também publicamente, como “casados” e, mais importante, são baseados no afeto, na solidariedade mútua e na construção de um projeto comum de vida. Ou seja, ostentam todos os elementos caracterizadores de uma típica estrutura familiar.

Entretanto, os partícipes de relações poliamorosas vivem atualmente grande insegurança jurídica. A elaboração de escritura pública seria uma tentativa de minorar esse problema, uma forma de buscar a incidência do direito legislado, especialmente as normas do Código Civil referentes à união estável, a fim de alcançar certos marcos normativos atinentes ao direito de família, como forma de tutela de interesses existenciais e patrimoniais dos consortes.

Conforme foi dito, o CNJ barrou essa tentativa.

Como alternativa, haveria outro caminho além do Direito legislado? Defendemos que sim! Os consortes de relações poliafetivas podem criar suas próprias regras de convivência, referentes a questões existenciais e patrimoniais, através de instrumentos particulares que, por sua natureza, não são elaborados em cartório. Ou seja, na medida em que o Direito legislado é insuficiente para oferecer respostas adequadas a esse fato social, uma opção válida e eficaz será a regulação de interesses mediante o uso de contratos.

Uma questão essencial difere esse novo caminho da tentativa anterior, baseada na adoção de escritura pública: agora, não se pretende alcançar os efeitos jurídicos próprios da união estável previstos na legislação vigente, mas, sim, convencionar todos os efeitos jurídicos da relação afetiva, com fundamento na autonomia privada dos seus partícipes. Com isso, ganha-se previsibilidade e segurança, tornando possível olhar para o futuro e realizar um planejamento familiar, desvinculando-se de questões subjetivas e, portanto, variáveis. Em outras palavras: não mais depender da interpretação do Judiciário no sentido de o relacionamento poliafetivo ser ou não união estável.

Por meio de contratos celebrados antes do início ou no curso da relação, é possível estabelecer regras voltadas às questões não econômicas da vida conjugal e, ainda, aos aspectos patrimoniais.

Em primeiro lugar, é possível a adoção de contrato que estabeleça o momento do início da relação, bem como defina a sua natureza familiar. Ato contínuo, admite-se que sejam estipuladas regras relativas à divisão dos encargos domésticos, definição do domicílio familiar e até mesmo a questões que digam respeito a aspectos da intimidade dos seus integrantes, como as práticas sexuais admitidas e a possibilidade, ou não, de práticas sexuais fora do núcleo conjugal, com outros(as) parceiros(as).

Na esfera patrimonial, é possível adotar regramento que se assemelhe à sistemática dos regimes de bens previstos para o casamento ou união estável. Através de contrato, é lícito convencionar quais bens integrarão o patrimônio comum do trio ou quarteto e quais pertencerão exclusivamente a cada um dos consortes. Nada obsta que a disposição seja no sentido de que todos os bens adquiridos no curso do relacionamento pertencerão em partes iguais a todos os consortes ou, o inverso, mediante a estipulação de não haver qualquer patrimônio comum, pertencendo cada bem, de forma exclusiva, ao adquirente. Outras combinações são possíveis, a depender dos interesses próprios dos consortes. Nesta toada, é recomendável definir, também, a forma de administração de eventual patrimônio comum.

Ainda nessa seara, parece muita salutar a estipulação, em contrato, da obrigação de prestar auxílio econômico ao consorte que demonstrar necessidade por ocasião do eventual término do relacionamento, através de construção voltada a substituir os alimentos previstos no Código Civil.

Inclusive, institutos tradicionais do Direito das obrigações podem ser utilizados para fazer frente ao não cumprimento de tais disposições, como cláusula penal, astreintes etc. Simplesmente não há qualquer obstáculo à fixação de multa referente ao não cumprimento de deveres ligados à família.

O rol aqui descrito, dos contratos passiveis de serem adotadas no âmbito da família poliafetiva, é meramente exemplificativo. As possibilidades são gigantescas e deverão ser moldadas às peculiaridades do caso concreto.

Em suma, a contratualização das relações poliafetivas é um caminho recomendável para, com segurança jurídica, assegurar a construção de um projeto de vida que traduza com exatidão os anseios e necessidades de cada pessoa, como forma de resguardar o livre desenvolvimento da sua personalidade.

Questão central: esses contratos são válidos?

Naturalmente, só poderão ser celebrados por pessoas adultas e civilmente capazes. E, na medida em que não há previsão legal expressa, são contratos atípicos, logo, não há forma prescrita em lei a ser observada.

Assim, no plano da validade de tais negócios jurídicos, a questão central diz respeito à análise da licitude do seu objeto.

É necessário destacar que não há norma que proíba a celebração dos referidos contratos. Na verdade, certa resistência em sua utilização advém da leitura de que o Direito de Família consistiria em ramo à parte no âmbito do Direito Civil, centrado na tutela de interesses existenciais e, portanto, segundo essa ordem de ideias, incompatível com o exercício amplo da autonomia privada.

O direito à autonomia privada tem fundamento no direito fundamental à liberdade, conforme disposto no artigo 5º da Constituição Federal. Embora o exercício da liberdade individual esteja mais associado ao direito das coisas, direito das obrigações e ao direito contratual, não existe, de forma apriorística, qualquer restrição à sua aplicação também no âmbito do direito de família.

Necessário consignar que o exercício da autonomia privada, nos moldes aqui propostos, não se choca com o solidarismo próprio das relações de família. A liberdade de fazer as próprias escolhas deve ser concebida à luz da tábua valorativa da Magna Carta, a qual também está limitada. De modo que terão validade apenas as convenções que resguardem a dignidade dos consortes e que não representem violação a seus direitos fundamentais em nome de interesses egoísticos.

Além disso, assegurar a cada pessoa que decida por si, no âmbito da sua intimidade, a formulação mais adequada ao seu projeto de vida, está em absoluta conformidade com o princípio da intervenção mínima do Estado nas relações de família, expressamente previsto no artigo 1.513 do Código Civil. De modo que, não havendo interesse de vulnerável nem violação a direitos fundamentais dos contratantes, a intervenção estatal revela-se indevida.

Ademais, não resguardar uma ampla esfera de autodeterminação em tais relações acabaria por contrariar a própria sistemática constitucional de proteção da família. A família constitucionalizada deixou de ter um fim em si, um valor intrínseco. Merece a tutela constitucional apenas na medida em que venha a cumprir certa função, que é ser um núcleo propício à promoção da dignidade dos seus integrantes, o locus adequado à busca da felicidade e ao livre desenvolvimento da personalidade dos seus partícipes.

A concepção tradicional da família, rígida e institucionalizada, não atende os mandamentos constitucionais, entre várias razões, especialmente por não admitir que cada pessoa delimite os contornos e a dinâmica das próprias relações familiares.

A contratualização das relações de família tem amparo constitucional porque está assentada na possibilidade de cada um moldar o seu projeto familiar a partir dos seus desejos mais íntimos, forte na ideia de que família é meio, e não fim. Especialmente naqueles casos que envolvem entidades familiares que, embora em conformidade com o direito posto, não estão expressamente recepcionadas na legislação vigente, como é o caso das famílias oriundas de relacionamentos poliafetivos.

A contratualização das relações familiares, por todo o exposto, é um caminho não apenas possível como também necessário para assegurar a cada pessoa o direito de viver a própria intimidade de forma plena, sem ingerências estatais, que se justificam nesta quadra da história apenas em situações muito excepcionais.

E, no caso da união poliafetiva, a adoção dos instrumentos descritos anteriormente é ainda mais urgente, pois, a despeito de se tratar de uma típica relação familiar, que entrelaça afeto, solidariedade e uma dimensão patrimonial, até o momento tem sido relegada a um espaço de “não direito” e, consequentemente, de marginalização.

Na medida em que a resposta obtida até o momento é de que tal relacionamento não estaria identificado com qualquer instituto do Direito de Família legislado, que os partícipes criem suas próprias regras de convivência. Com base na liberdade assegurada pelo ordenamento jurídico pátrio, a partir de um planejamento pessoal e patrimonial que expressem exatamente suas escolhas de vida.

Fonte: Consultor Jurídico