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Provimento 63 do CNJ ratifica registrador público como promotor da dignidade

18-12-2017

O Provimento 63 do CNJ trouxe a posse de estado de filho à tona, referindo-se ao “filho de criação”, aquele que é criado sem vínculo de sangue, e sem formalidades. Apresenta-se, então, o vínculo afetuoso que surge entre duas pessoas (pai e filho) e que, depois de solidificado, transformar-se-á em paternidade, tal e qual a paternidade biológica ou adotiva legal. O caminho a ser percorrido possui determinadas fases, iniciando com o desejo de ser filho e de ser pai um do outro, passando pelo afeto recíproco, pelo trato, pela fama, pela habitualidade, pela ininterruptabilidade e pela estabilidade.

A paternidade socioafetiva resultante da posse de estado de filho é recente no Direito brasileiro, mas existente há mais tempo em outras legislações estrangeiras como a belga, a francesa e a argentina. É ela que garante a estabilidade social, assegurando o pleno desenvolvimento da pessoa, em razão da base emocional criada pelo reconhecimento diário e afetuoso do pai pelo seu filho.

Neste sentido, compreende-se que a verdadeira filiação não está vinculada apenas na descendência genética, mas sim, na relação de afeto entre pai e filho, fundado na existência de uma vida em comum e reforçado ao longo desta vida, revelando um estado vivido, um laço de afeto de uma família afetiva.

Para uma melhor compreensão de como foi construído o instituto de paternidade socioafetiva resultante da posse de estado de filho, precisa-se analisar, separadamente, os conceitos de “estado de pessoa”, de “estado de família”, e de “estado de filho”, para então concluir como ocorre a “posse” do “estado de filho”.

Julie Cristine Delinski ao analisar a doutrina de Orlando Gomes, Limongi de França e Caio Mário da Silva Pereira conclui que, “estado de pessoa” é a posição jurídica de alguém na sociedade, identificando-a em três esferas: político, familiar e individual. A posição familiar coloca a pessoa em outro estado, um desdobramento do “estado de pessoa”, que é o “estado de família”.

Dentre as posições existentes nos “estados de família”, uma delas é a posição de “estado de filho”, que é ocupado por quem está na linha reta, descendente, em primeiro grau.

O estado de filho é indivisível, pois cada pessoa possui o seu e não pode possuir mais de um, sendo oponível erga omnes. Ele é indisponível, pois está fora do comércio. É irrenunciável, porque possui atributos pessoais, sendo um reflexo da personalidade. É também imprescritível, pois pode o filho a qualquer tempo, reclamar o seu estado[3].

Ainda, o estado de filho pode ser suscetível de posse por outra pessoa, que não é filho biológico ou adotivo, mas está ocupando esta posição na família de forma íntima, pública e duradoura e, aos olhos da sociedade, esta relação fática de pai e filho cria uma reputação e passa a ser aceita como se fosse verdadeira, em razão do afeto existente entre ambos que se chamam de pai e filho[4].

O livre exercício da posse do estado de filho cria, com o passar do tempo, uma situação afetiva consolidada, pública, como se realmente fosse, perante a sociedade, uma filiação de sangue ou adotiva. É alguém ocupando, possuindo, o estado de filho, em relação a um pai e, por este, sendo aceito como se filho seu fosse. O sentimento de amor paterno-filial, criado entre eles, transforma-se em verdade social, sendo aceita por todos como se fosse à realidade biológica ou jurídica (adotiva). Por isso, se diz que ocorre a “posse do estado de filho”, ou seja, alguém está ocupando um espaço no seio de uma família que, originalmente, não lhe pertence, mas passa a lhe pertencer em razão do sentimento humano de solidariedade e afetividade que transforma aquela relação entre estranhos em uma relação de pai e filho.

Para que ocorra a posse do estado de filho são necessários alguns elementos constitutivos na relação paterno-filial, sendo eles: o nome (nominatio), ou seja, deve o filho sempre ter usado o nome do pai ao qual ele se identifica; o trato (tractatus), que é o tratamento que o filho deve ter recebido do pai, como se filho fosse, tendo ele colaborado para sua educação e formação; e a fama (reputatio) que é o reconhecimento público da qualidade de filho por aquele pai, pela sociedade e pela família[5].

Luiz Edson Fachin[6], afirma que a tradicional trilogia (nomen, tractatus e fama) se apresenta, eventualmente, desnecessária, pois outros fatos podem ser invocados na apuração da “posse de estado de filho”. Ressalta, ainda, que a “posse de estado de filho” não deve sofrer interrupção e que a sua duração deve conter um mínimo que ateste a sua estabilidade.

De nada adiantaria alguém querer ser filho de outrem se este assim não desejar. Da mesma forma, não é paternidade alguém querer ser pai de uma pessoa que não lhe reconhece como tal. O estado paterno-filial necessita de calor para sobreviver, e este calor é proveniente da chama do afeto, elemento caracterizador da paternidade socioafetiva.

Jorge Trindade[7] explica que a aparência da posse de estado de filho está vinculada ao elemento fama, pois é através deste elemento que a sociedade tem a certeza do vínculo entre pai e filho. Para o autor, em razão da aparência perante terceiros é inegável a relação paterno filial, sendo o estado de aparência um elemento que comprova a manifestação da paternidade socioafetiva.

Nesta linha, importante é o reconhecimento do pai em relação ao filho. Não apenas o reconhecimento jurídico, mas também o reconhecimento da importância da pessoa e do seu lugar dentro da família. Reconhecer um filho, de sangue ou não, é um ato de fraternidade e solidariedade, que está sob o manto da dignidade humana.

O reconhecimento de paternidade é um ato voluntário, livre, espontâneo, incondicional e irrevogável. Mais do que isso, o reconhecimento de paternidade é um ato de afeto, uma decisão de tornar-se pai de alguém, uma decisão de assumir e exercer a função paterna na vida de outra pessoa.

Ser reconhecido como filho, é sentir-se amado, individualizado e integrado em uma entidade familiar, pertencente a um todo maior, que envolve também as pessoas ligadas ao círculo de relações do pai, gerando assim um sentimento de reconhecimento social, formador da personalidade, a qual é estruturada na necessidade de preservação da auto estima e no senso de identidade[8].

Reconhecimento e identidade possuem uma relação muito próxima, sendo o reconhecimento um dos fatores formadores da identidade de uma pessoa[9].

O reconhecimento, portanto, não é apenas um fator biológico, mas sim um fator emocional e determinante para a formação da personalidade do indivíduo em desenvolvimento. Por isso se diz que a paternidade não é um fato da natureza, mas sim um fato cultural[10]. O pai que educa, orienta e convive ao lado do seu filho nem sempre é o pai biológico. Ele é identificado pelo exercício da função paterna, permitindo ao filho, através da linguagem, o acesso à cultura, tornando-o um sujeito[11].

Para que o reconhecimento de paternidade surta efeitos jurídicos, ele deve ser documentado, e a forma extrajudicial, perante o notário ou o oficial do registro civil das pessoas naturais é, na atualidade, o meio mais rápido e prático de regularização desta situação de fato. O reconhecimento documental da paternidade proporciona o reconhecimento social, elemento caracterizador da dignidade humana.

O Provimento 63, republicado, trouxe uma série de novidades. Inspirado no julgamento do RE 898.060/SC pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, surge no Brasil, oficialmente, a pluriparentalidade, ou dupla paternidade, ou multiparentalidade, tese já consolidada na Suprema Corte de Lousiana, nos Estados Unidos, que no ano de 1989 ao analisar o caso de uma criança nascida durante o casamento de sua mãe com homem diverso do seu pai biológico determinou a dupla paternidade justificando que “o pai biológico não escapa de suas obrigações de manutenção do filho meramente pelo fato de que os outros podem compartilhar com ele a responsabilidade”. Mais que isso, o Provimento 63 trata da maternidade socioafetiva, seguindo os mesmos moldes da paternidade socioafetiva.

O provimento fala que o reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade ocorrerá perante o oficial do registro civil das pessoas naturais, ainda que de local diverso de onde está o registro de nascimento, sendo ele irrevogável. Somente o juiz poderá desconstituí-lo.

Para reconhecer é preciso ter no mínimo 18 anos de idade, e no mínimo 16 anos a mais que o filho que será reconhecido, independentemente do estado civil de qualquer das partes envolvidas.

Aqui uma diferença do reconhecimento de filho biológico, que pode ocorrer por relativamente incapaz, conforme Provimento 16/2012 do Conselho Nacional de Justiça que permite, em seu artigo 6, parágrafo 4, o reconhecimento de filhos por relativamente incapazes, autorizando, assim, os maiores de 16 e menores de 18 anos.

Não podem os irmãos reconhecerem-se entre si como filhos uns dos outros. Não podem também os avós e demais ascendentes reconhecerem como filhos os seus netos e demais descendentes.

A regra da anuência mudou para os filhos socioafetivos, diferenciando-se dos filhos biológicos (o que fere o princípio da igualdade da filiação).

A Lei 8560/92 e o Provimento 16 do CNJ determinam que no reconhecimento de filho biológico, sendo ele menor, deverá a mãe dar a anuência, e se maior, deverá o próprio filho dar a anuência.

Já o Provimento 63 do CNJ determina que, quando do reconhecimento de filho socioafetivo, se este for menor de 12 anos, deverá a mãe dar a anuência (artigo 11, d 3 e d 5 do Provimento 63) e sendo maior de 12 anos, deverá ele próprio dar o seu consentimento (aqui o Provimento seguiu a mesma sistemática do processo judicial de adoção, conforme os artigos 2a, 28 d 2a. e 45 d 2a. da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente)

Ao detalhar a necessidade das anuências no reconhecimento de filiação, o provimento trouxe a novidade da multiparentalidade, ou pluriparentalidade extrajudicial, que é a possibilidade de constar no registro de nascimento dois pais e/ou duas mães (biológicos e socioafetivos).

Observe que o artigo 11, fala da anuência do pai e da mãe em dois momentos:

d 3a. “[…] devendo o registrador colher a assinatura do pai e da mãe do reconhecido, caso este seja menor”.

d 5a. “A coleta da assinatura tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de 12 anos deverá ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado.”

Ou seja, se a criança já tiver pai e mãe no registro (por exemplo biológicos) poderá ser feito o reconhecimento extrajudicial de paternidade ou maternidade socioafetiva, desde que ambos os pais biológicos concordem.

A mesma regra valerá se o filho tiver como pai no registro um pai socioafetivo e a mãe biológica, e o pai biológico quiser fazer o reconhecimento tardio. Deverá ser colhida a anuência dos pais constantes no registro.

Não sendo possível conseguir alguma das anuências, ou se o registrador suspeitar de fraude, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida quanto a posse de estado de filho o caso deverá ser encaminhado ao juiz de direito competente.

O provimento não deixa claro se é necessária também a anuência dos pais registrais quando o filho tiver mais de 12 anos, ou se basta a do próprio filho. Todavia, parece-me que o mais apropriado é colher a assinatura dos pais registrais, mesmo quando o filho tiver mais de doze anos, eis que a Lei 8.560/92 pode ser aplicada subsidiariamente no caso de dúvidas na interpretação do Provimento 63.

O provimento trouxe ao final, como anexo, um modelo de termo de reconhecimento de filiação socioafetiva, a ser utilizado pelos oficiais de registro civil das pessoas naturais.

A natureza do documento, se pública ou particular, parece confusa na redação do provimento. Ora ele fala em “escrito particular” (artigo 11 d 1a), ora ele fala em “documento público” (artigo 11 d 8a), ora ele fala em documento “particular de ultima vontade” (artigo 11 d 8a).

É claro que o documento é público. Possui modelo próprio do CNJ, é preenchido dentro do cartório de registro civil pelo oficial que fará a identificação dos presentes e assinado pelo próprio oficial ao final.

O ato é unilateral. Ou seja, não se admite o reconhecimento conjuntivo, de duas pessoas ao mesmo tempo. Cada reconhecimento será lavrado em termo próprio e o limite é dois pais e duas mães no registro.

Assim, hipoteticamente, se uma criança tiver apenas o nome da mãe no seu registro e comparecem ao cartório o pai socioafetivo e o pai biológico querendo reconhece-la ao mesmo tempo, para cada reconhecimento será lavrado um termo próprio.

Lavrado o termo de reconhecimento, ele será averbado no registro do filho reconhecido, expedindo uma nova certidão de nascimento sem mencionar a origem da filiação.

Assim, a nova norma permite às famílias recompostas que a verdade real sobre a filiação conste nos documentos do registro civil, sem a necessidade da chancela judicial, possuindo o oficial do registro civil a competência para analisar cada caso e deferir ou não o pedido de reconhecimento.

Trata-se de mais um ato de jurisdição voluntária, estendido ao registrador público do Brasil, que está presente na maioria dos municípios e é conhecedor da realidade local. Novamente o Poder Judiciário delega um ato, que antes lhe era exclusivo, visando a desjudicialização, ao registrador público, pela confiança na qualidade do serviço registral brasileiro, reconhecido como um dos mais eficientes do mundo.

O Provimento 63 do CNJ colabora com a construção de uma sociedade brasileira mais justa e fraterna, ratificando a função social do registrador público brasileiro como promotor da dignidade humana.

Fonte: Conjur