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Migalhas – Artigo: A possibilidade da usucapião de imóvel em loteamento irregular – Por Debora da Rocha e Leonardo Scholl

06-10-2022

Não restam dúvidas sobre a possibilidade jurídica que se encontra sedimentada no sentido de postular a declaração de usucapião de imóvel localizado em loteamento irregular.

A ação de usucapião é o meio pelo qual alguém que possui um imóvel pode, desde que preenchidos determinados requisitos, adquirir a sua propriedade sem que haja a necessidade de pagamento do preço através de um processo de compra e venda.

Todavia, nem sempre os interessados na usucapião têm o conhecimento acerca do preenchimento dos requisitos necessários a possibilitar o seu requerimento, seja judicial, ou extrajudicialmente.

Por mais que existam os requisitos comuns às espécies de usucapião, tais como, prazo da posse (prescrição aquisitiva), exercício da posse sem oposição e a vontade de ser proprietário do imóvel (animus domini), bem como os específicos a certas espécies, a saber: justo título, dimensão da área, utilização do imóvel como moradia, etc., cada caso possui uma circunstância particular.

Nem sempre tais circunstâncias são reguladas pela lei. Assim, o Poder Judiciário é o responsável por definir se há ou não o direito de usucapir o imóvel.

Uma dessas situações consiste na possibilidade de requerer a usucapião de um imóvel localizado em um loteamento irregular. Veja-se que nestes casos, os lotes são adquiridos, seja com a finalidade de moradia, seja com a finalidade de investimento no local. Todavia, o loteador deve cumprir com uma série de requisitos previstos na lei 6.766, bem como nas leis dos municípios, o que não sendo atendido, acaba gerando irregularidade que pode vir a impedir o adquirente do lote de transferi-lo para si.

Nesse sentido, tem-se que a inobservância dos requisitos legais, segundo as definições do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, pode tornar o loteamento irregular em sentido técnico ou jurídico:

“O loteamento é tecnicamente irregular se: a) executado sem aprovação da prefeitura municipal; b) executado sem aprovação da prefeitura municipal, mas em desacordo com o projeto; e c) executado de acordo com o projeto aprovado, mas sem obediência ao cronograma de obras.

Juridicamente, o loteamento pode ser considerado irregular se: a) não tiver sido inscrito (antes de 1976) ou registrado (depois de 1976) no registro de imóveis e houver venda a prazo ou com oferta pública; e b) não tiver sido registrado, para qualquer tipo de venda, a partir da vigência da lei 6.766/79.”1

E a sobredita irregularidade não raramente pode contribuir com o desencadeamento do denominado “loteamento clandestino”. Entretanto, não há como confundir as referidas classificações, eis que a primeira decorre da ausência de regularidade técnica ou jurídica e a segunda do fato de que o Poder Público sequer tem conhecimento, quando as obras são iniciadas sem qualquer padrão ou atendimento à legislação urbanística.

Considerando que a ocupação de imóveis irregulares pode implicar em uma série de riscos, estes não raramente acabam sendo abandonados, vindo a ser ocupados por meros possuidores que passam a exercer alguns dos poderes inerentes à propriedade, mas que com esta não se confundem.

Em decorrência do exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo transcurso do tempo que a lei exigir, o ocupante pode, apesar de o imóvel ser irregular, ao preencher os requisitos, requerer a declaração de propriedade, através da usucapião.

A usucapião de imóvel localizado em loteamento irregular

Conforme mencionando anteriormente, a irregularidade do imóvel pode ser técnica ou jurídica, sendo que em ambos os casos os imóveis são passíveis de usucapião.

O primeiro cenário diz respeito ao imóvel que possui uma irregularidade técnica, ou seja, quando o loteamento não teve seu projeto aprovado pelo município ou não respeitou tal projeto após a aprovação e o segundo, a existência de irregularidade jurídica, o que significa dizer que o imóvel não foi registrado junto ao Registro de Imóveis ou não houve a individualização de sua matrícula.

Tais pontos foram levados à discussão na decisão proferida no REsp 1818564 – DF (19/0163526-7), de relatoria do Ministro Moura Ribeiro. No caso, o Ministério Público do Distrito Federal expôs que os motivos elencados anteriormente são suficientes para afastar o direito de usucapião de bem imóvel localizado em loteamento irregular.

Isso porque, segundo aduz, se o imóvel não está registrado (irregularidade jurídica), sequer seria possível registrar o nome do interessado em adquirir o imóvel mediante usucapião na respectiva matrícula.

E caso o imóvel esteja em desconformidade com o projeto, não haveria a possibilidade de se abrir novas matrículas, uma vez que a irregularidade seria técnica.

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, mediante o voto do seu relator, expôs que “o direito de propriedade não se confunde com o registro dessa propriedade, isto é, a aquisição do domínio pela prescrição aquisitiva pode ser declarada e, portanto, interessa àqueles que a perseguem, independentemente de posterior registro.”

Analisando-se o entendimento exarado na decisão pela ótica jurídica, chega-se à conclusão de que a impossibilidade de registrar o imóvel não seria um impedimento à aquisição da propriedade.

Não obstante, em sentido técnico, tem-se ainda que o entendimento não foi diverso, eis que, conforme depreende-se da decisão, por mais que um imóvel se encontre em situação irregular, não há como impedir a aquisição do direito de propriedade pela usucapião. Nessa esteira, segundo a posição da Segunda Seção, a declaração da usucapião seria incapaz de causar prejuízo à ordem urbanística.

Como aponta o Relator, “eventual construção irregular, supressão de nascente ou risco à saúde pública continuarão a existir independentemente de o juiz, na sentença, deferir ou indeferir o pedido de usucapião, sendo certo que tais irregularidades devem ser corrigidas por remédios próprios, a cargo do Poder Público, pelo poder de polícia que lhe é inerente.”

No caso discutido, como se trata de um loteamento irregular por décadas, há uma clara omissão estatal, que, implicitamente, acabou contribuindo para a manter a situação. E pelo fato de o local estar ocupado, em sentido técnico, não há como impedir a possibilidade de aquisição da propriedade. Dentro desta ótica, certo que o responsável pela regularização do local é o próprio Estado, devendo, portanto, cumprir com seu papel de implementar políticas públicas de desenvolvimento urbano.

Por outro lado, a sua inércia deve chancelar a possibilidade de que ocupantes de loteamentos irregulares adquiram a propriedade dos respectivos lotes, bem como obtenham a sua regularização ao menos em sentido jurídico, uma vez que os lotes passam a ser registrados em seus nomes.

Nunca é demais lembrar, que o próprio Código Civil, em suas disposições que tratam da usucapião, em momento algum impõe como requisito a regularidade técnica ou jurídica, como se pode ver tanto no artigo 1238, que trata da usucapião extraordinária, elencando unicamente o atendimento de requisitos que consistem na posse ininterrupta, mansa, pacífica e com ânimo de dono, o que não é diferente na usucapião ordinária disposta no artigo 1242, acenando apenas para a necessidade de que o ocupante possua o imóvel incontestada e continuamente por dez anos, com justo título e boa-fé

É certo, ainda, que garantir a possibilidade de usucapião nestes casos permite que o imóvel preencha a sua função social, “reconhece a prevalência da posse adequadamente exercida sobre a propriedade desprovida de utilidade social, permitindo, assim, a redistribuição de riquezas com base no interesse público.”

Ou seja, como consiste em responsabilidade do Estado regularizar a propriedade, alegar que a usucapião de uma área irregular seria um atentado contra o interesse público ou contra a ordem urbanística seria no mínimo, para não se dizer mais, um argumento muito insípido.

Ainda, pela usucapião ser uma forma originária de aquisição da propriedade, logo, desvinculada de qualquer relação jurídica anterior com o então proprietário, o imóvel é adquirido sem nenhum ônus ou gravame – fato que contribui ainda mais para a possibilidade de usucapião de imóvel localizado em loteamento irregular, pois, neste caso, a irregularidade seria irrelevante diante do direito de usucapião. E em sendo irregular, por obviedade que limitados são os mecanismos jurídicos que autorizam a regularidade, dentre os quais a usucapião.

Por todos esses motivos, além da decisão da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, diversos Tribunais do Brasil entendem pela possibilidade de utilizar a usucapião em loteamentos irregulares – e até mesmo nos clandestinos:

USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – Procedência, com declaração do domínio – Área usucapienda localizada em loteamento irregular – Possibilidade de reconhecimento da usucapião a favor do autor, independentemente da regularização do loteamento – Precedentes deste Tribunal – Decisão mantida – RECURSO DESPROVIDO (TJSP. Apelação Cível nº 1007274-68.2018.8.26.0292. Rel. Des. MIGUEL BRANDI, 7ª Câmara de Direito Privado, DJe 12/12/2019).

USUCAPIÃO. MÓDULO RURAL. ÁREA. LOTEAMENTO IRREGULAR. IRRELEVÂNCIA. O fato de o imóvel que se pretende usucapir estar localizado em loteamento irregular não é causa suficiente para rechaçar a prescrição aquisitiva. (TJMG, Apelação Cível nº 1.0142.15.003402-3/001, Rel. Des. ESTEVÃO LUCCHESI, 14ª Câmara Cível, DJe 29/6/2018).

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. ART. 1.2238 DO CC. LOTEAMENTO IRREGULAR. A circunstância de a área usucapienda integrar o que se chama de loteamento irregular não é óbice para o ajuizamento da ação de usucapião. […] APELO PROVIDO. UNÂNIME. (TJRS, Apelação Cível nº 70080653116, Rel. Des. DILSO DOMINGOS PEREIRA, Vigésima Câmara Cível, j 24/4/2019).

APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. EXTINÇÃO DO FEITO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, PELA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. FRAÇÃO DE IMÓVEL QUE SE PRETENDE USUCAPIR QUE ESTÁ INSERIDA EM SUPOSTO LOTEAMENTO IRREGULAR. REQUISITOS DO ARTIGO 1.242 DO CÓDIGO CIVIL PRESENTES. OBSERVÂNCIA DAS NORMAS DE PARCELAMENTO DO SOLO QUE NÃO SE APRESENTA COMO CONDIÇÃO PARA O RECONHECIMENTO DA USUCAPIÃO. POSSE MANSA E PACÍFICA EXERCIDA HÁ MAIS DE VINTE ANOS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS MÍNIMOS. COBRANÇA DE IPTU. APARÊNCIA DE LEGALIDADE. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação Cível nº 2014.057117-9, Rel. Des. ARTUR JENICHEN FILHO, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 17/9/2015).

Conclusão

Em suma, não restam dúvidas sobre a possibilidade jurídica que se encontra sedimentada no sentido de postular a declaração de usucapião de imóvel localizado em loteamento irregular, bastando que o interessado se preocupe em comprovar que preenche todos os requisitos das espécies de usucapião, preocupando-se, especialmente, em comprovar o prazo da posse, a ausência de oposição e o animus domini que são aqueles requisitos constantes no próprio Código Civil.

Notas

1 https://www.irib.org.br/obras/as-prefeituras-municipais-e-a-regularizacao-dos-loteamentos#:~:text=O%20loteamento%20%C3%A9%20tecnicamente%20irregular,obedi%C3%AAncia%20ao%20cronograma%20de%20obras.

Autores:

Debora de Castro da Rocha é advogada fundadora do escritório DEBORA DE CASTRO DA ROCHA ADVOCACIA, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso; Doutoranda em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba.

Leonardo Scholl é advogado do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Atua na defesa dos direitos de compradores de imóveis. É especialista no direito imobiliário consumidor e em due diligence imobiliária

Fonte: Migalhas