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ConJur – Artigo: O Fisco, as empresas aéreas e a recuperação judicial – Por Carlos Henrique Abrão

25-03-2022

1 – Aspectos gerais da reorganização societária

O conhecido brocardo francês “plus ça change, plus ça rest la même chose” é o que podemos aplicar ao espírito normativo do atual direito concursal, uma vez que a simples mudanças legislativas, ao contrário daquilo afirmado pelas autoridades, não foi capaz de propiciar ferramenta para melhorar o ambiente dos negócios, reduzir a taxa de juros, atualmente uma das mais altas de todos os tempos, e ainda evitar o fechamento de empresas.

Com razão, as Leis nº 11.101/05 e nº 14.112/2020 tinham por escopo sepultar de vez o vetusto Decreto Lei nº 7.661/45, uma vez que a modalidade da concordada, na realidade, representada o calote e, no mais das vezes, impunha o estado de insolvência ensejando a convolação da moratória em quebra.

A mais recente alteração legal sobreveio em plena pandemia, quando os agentes econômicos ainda não tinham o pulso da situação e muito menos dados estatísticos relevantes e agora tudo se transforma mais rapidamente com a mais recente guerra surgida no leste europeu provocando consequências imprevisíveis em toda a economia globalizada.

Nada obstante alguns pontos positivos do diploma legal, o intuito do escrito é demonstrar que a posição privilegiada do Fisco, na contramão da história, representa salvaguarda inaceitável, notadamente quando a ele se confere, inclusive, a legitimidade para requerer a quebra.

A segunda abordagem, também relevante, a qual não pode escapar de uma breve análise, diz respeito à inviabilidade econômico-financeira das empresas aéreas se submeterem a recuperação judicial por diversos fatores, sendo que desde o famoso caso da Panair a grande maioria das companhias aéreas veio a falir, o modelo está completamente divorciado do contexto e para isso é necessário refletir no intuito de melhor situar a aplicação da reestruturação societária para as transportadoras aéreas.

2 – O papel do Fisco na recuperação judicial

A sanha arrecadatória incomum provocou um sistema tributário anômalo, e a propalada reforma não encontra denominador comum do parlamento, razão pela qual o fisco, descontente com a flexibilização feita pela jurisprudência em atenção ao Decreto nº 11.101/05, não obrigatoriedade da apresentação de certidão negativa de débito tributário, partiu para uma reforma na qual todo e qualquer devedor, ao buscar a recuperação judicial, em primeiro lugar, deve se comportar para o saneamento da empresa e de seu endividamento tributário.

O ressignificado permite concluir que o superprivilégio do Fisco, além de reduzir o número de recuperações judiciais, dados estatísticos recentes, também, paralelamente, permite o crescimento da recuperação extrajudicial e para tanto sempre existirá a possibilidade da renegociação com todo o tipo de classe de credores, porém, a figura do Fisco constitui forte embaraço para que o instituto da recuperação judicial possa firmemente irradiar seus efeitos, inclusive sob o prisma de visão da preservação da empresa e da continuidade dos negócios.

Não andou bem o legislador, principalmente em tempo de pandemia, desaceleração da economia, diminuição do crescimento, a beira da estagflação de consolidar todo o passivo tributário, União, estados e municípios, para que o devedor propusesse um cronograma, sob pena de não fazer aprovar o plano e ficar submetido no incumprimento da obrigação tributária ao regime falimentar.

Bem por tudo isso, a imprecisão normativa é fortemente sentida pelas empresas, e isso vem corroborado pela desaceleração do parque industrial, oscilação do câmbio, dificuldade da infraestrutura e agora consubstanciada no colapso deflagrado pela guerra do leste europeu já produzindo os seus efeitos em toda a economia globalizada, principalmente o ocidente, em particular o Brasil.

3 – A visão do crédito tributário

As modernas legislações do direito comparado, em sentido diametralmente oposto àquela brasileira, disciplinam uma espécie de bônus premial para as empresas ingressantes do pedido de recuperação judicial, estando in bonis e com grande probabilidade de soerguimento, pela boa-fé do empresário e dados comprobatórios de solvabilidade.

Pretende-se, com isso, radiografado o modelo, demonstrar que muito mais inteligente teria sido o legislador se adotasse analogamente referido sistema a permitir a confissão do valor de face da dívida tributária, cujos encargos seriam classificados na espécie de credor subordinado ou quirografário, na hipótese de existir uma recuperação judicial plena e total e a empresa tivesse força suficiente para liquidar o passivo tributário de forma parcelada e renegociada.

Mas não é só.

Durante todo o período de reorganização societária, atravessando o dificultoso momento de redução de lucros, mas com aumento de custos e insumos também sairia melhor o legislador se disciplinasse a tributação ao longo de toda a recuperação judicial conforme o faturamento da empresa recuperanda.

A título de subsídio, tão somente, teríamos uma unificação bem parecida com a do modelo do simples, quando as pequenas empresas teriam alíquota única de 5%, as médias 10% e as grandes companhias de 15%, rateando entre o fisco referidos valores proporcionais às receitas liquidas obtidas pelas empresas em recuperação judicial.

A fenomenologia não representa qualquer benefício fiscal ou concorrência desleal com as demais sociedades empresárias em regular funcionamento, porém, o caos social da quebra é, proporcionalmente, bastante superior se a empresa estiver em funcionamento proporcionando recolhimento de impostos, manutenção ainda que menor de empregos, preservando clientela, fornecedores e principalmente consumidores.

A necessária repaginação da visão do crédito fiscal não pode ser vista como um privilégio das empresas em crise, muito menos o superprivilégio do credor tributário para se cercar de garantias e obrigar a renegociação do passivo, de acordo com os seus interesses, debilitando e rebaixando a capacidade de recuperação da empresa em crise.

Não é desnecessário afirmar que mantemos um sistema tributário absolutamente insano, em torno de 38,5% do produto interno bruto, sem qualquer contrapartida ou retorno em benefício para o contribuinte na educação, transporte, saúde etc.

Destarte, sem uma mudança de mentalidade do fisco na percepção do recebimento do seu crédito, a mudança da lei de 2005 para aquela de 2020 foi da água pro vinho e certamente o posicionamento da jurisprudência muito influenciou a radicalização do legislador em querer se tornar o primeiro da fila e ainda fazer exigências buscando maior leque de garantias reais e fidejussórias, ficando a empresa dependente nas mãos do Fisco para o passo seguinte de renegociação e apresentação do plano.

4 – A crônica crise das empresas aéreas

Problemas de infraestrutura, num país no qual é prevalente o transporte ferroviário, com tantos aeroportos ociosos, alguns deles sendo relicitados, é impensável que toda a malha aérea esteja nas mãos de apenas três empresas e a própria Latam encontra-se submetida à legislação americana, não tendo solicitado, portanto, como reorganização societária no Brasil.

Dezenas de empresas aéreas, no último meio século, foram liquidadas e faliram, por diversos fatores, principalmente a irracional tributação, o custo do querosene aéreo, os preços dos bilhetes com o recrudescimento do estado de crise ao tempo da pandemia e também já sentido na guerra do leste europeu.

Compota reafirmar, portanto, que é improvável, quase impossível, uma empresa aérea no Brasil se submeter exitosamente a recuperação judicial, porquanto é imprescindível a injeção de dinheiro novo, readequação da malha, revisão dos slots e ainda as aeronaves são arrendadas, cujos pagamentos são feitos em moeda estrangeira, de tal sorte que talvez uma recuperação extrajudicial alcançasse seu desiderato ou, supletivamente, uma intervenção do órgão regulador, no máximo por 180 dias, e se o saneamento não fosse conseguido, não haveria outra alternativa exceto da liquidação da empresa insolvente.

O recente exemplo da empresa Itapemirim bem ilustra a realidade diagnosticada, uma vez que em pouco tempo referida empresa aérea sofreu solução de continuidade, trouxe enormes prejuízos para os seus consumidores e, o pior dos mundos, não pagou seus empregados, agindo o Ministério Público na esfera criminal para bloquear os bens do controlador e também administrar medidas protetivas, uma vez que, segundo consta, o grupo em recuperação judicial teria internado recursos em paraíso fiscal.

A autofalência da empresa aérea Oceanair também evidencia que a transportadora continua a funcionar em outros países, porém, preferiu a insolvência do que propriamente o instituto da recuperação judicial, o que evidencia que o trato normativo dispensado é falho e insuficiente para a solução do impasse da crise econômica das empresas aéreas.

E a dificultosa travessia da pandemia revelou o fim de muitas empresas aéreas e a maciça injeção de recursos do governo, tornando-se acionista minoritário até que paulatinamente a empresa em crise pudesse voltar à normalidade e auferir receita para liquidar os empréstimos e os aportes provenientes do poder público.

A recuperação judicial, pois, não é o melhor remédio para as empresas aéreas, ao longo de décadas comprovou ser ineficiente, absolutamente ineficaz, e o plano de recuperação sempre dependerá do fluxo de caixa, nenhuma restrição para os voos nacional e internacional, além, é claro, do poder aquisitivo do consumidor frente ao repasse dos insumos nos preços dos bilhetes aéreos.

5 – O contexto da crise e seus reflexos

Procuramos analisar, em rápidas pinceladas, que as mudanças legislativas introduzidas pela Lei nº 14.112/2020, especificamente em relação ao crédito tributário, representa grande retrocesso considerando o fator tributação, sua repercussão nas empresas e a máxima dificuldade em renegociar o passivo e continuar a pagar, durante o procedimento de reorganização societária, o valor cheio do tributo.

Uma revisão do modelo é inadiável, e a camisa de força imposta à empresa em crise resultará, no mais das vezes, no estado de insolvência, a ensejar a liquidação, encerramento irregular ou mesmo sua quebra.

Fundamental na mesma linha de raciocínio compreender que a submissão de empresas aéreas à recuperação judicial, a história comprova, não funciona, exige-se um prévio saneamento e o ingresso de dinheiro novo para suprir o caixa, evitando contratempo e também a imprevisibilidade do momento decorrente da pandemia e dos reflexos da guerra do leste europeu.

A capilaridade estudada autoriza dizer e concluir que o superprivilégio do fisco da recuperação judicial não se justifica, e as turbulências das empresas aéreas serão cada vez mais fortes se as autoridades governamentais regulatórias e legislativas não encontrarem fórmulas capazes de reduzir os tempos de incerteza traduzidos nas crises crônicas, cuja solução única tem sido a extinção da empresa aérea ou propriamente a decretação de sua falência.

Ficam aqui as nossas breves sugestões a título de reflexão e revisão do modelo para o encontro de alternativas e soluções adequadas ao momento de crise, de escassez de recursos financeiros e do alto endividamento fiscal das empresas nacionais.

O recrudescimento do Fisco e a inoportunidade do enquadramento das empresas aéreas, ambos tonificam interrogação para a mudança de rumo, de curso, e o aproveitamento de subsídio na confiabilidade no modelo de restauração da confiança dos credores e da par condictio creditorum.

*Carlos Henrique Abrão é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, doutor em Direito Comercial pela USP com especialização em Paris, professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg e autor de obras e artigos.

Fonte: ConJur