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ConJur – Artigo: Artigo 50 da LDA e cessão dos direitos de autor – Por Bernardo Araujo Mitre

04-03-2022

Para verificar a validade ou nulidade da cessão total ou parcial dos direitos de autor, examino adiante o artigo 50 da Lei de Direitos Autorais (LDA) e, ao final, apresento uma possibilidade lícita e incomum de uso, indireto, da cessão onerosa de direitos patrimoniais autorais para compor a proteção do bem de família do cedente.

Art. 50. A cessão total ou parcial dos direitos de autor, que se fará sempre por escrito, presume-se onerosa.

  • 1º Poderá a cessão ser averbada à margem do registro a que se refere o art. 19 desta Lei, ou, não estando a obra registrada, poderá o instrumento ser registrado em Cartório de Títulos e Documentos.
  • 2º Constarão do instrumento de cessão como elementos essenciais seu objeto e as condições de exercício do direito quanto a tempo, lugar e preço.

Os direitos de autor se dividem em morais, ligados a personalidade do autor e catalogados nos artigos 24 a 27 da LDA, e patrimoniais, conectados ao proveito econômico da obra e regulados nos artigos 28 a 45 da LDA (artigo 22 da LDA). Os morais são inalienáveis e irrenunciáveis (artigo 27 da LDA), logo, são transferíveis somente os direitos patrimoniais (artigo 49, I, da LDA).

Os direitos de autor são considerados bens móveis (artigo 3° da LDA) e, portanto, suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social (artigo 82 do CC).

A determinação da forma escrita disposta no caput repete o comando do artigo 49, II, da LDA, estendendo esse rigor à cessão parcial, e não colide com o sequente inciso III, que cuida especificamente do caso de não haver estipulação contratual escrita dos direitos autorais em caráter de licenciamento, não de cessão,  estabelecendo o prazo máximo de cinco anos de utilização.

O licenciamento é uma autorização temporária de uso, sem alteração de titularidade dos direitos autorais. Na cessão dos direitos de autor sobre obras já produzidas, ocorre a transferência da respectiva titularidade, em regra, de modo definitivo.

A concessão também é listada como modalidade de transferência dos direitos de autor, mas não possui definição legal no âmbito da LDA, assim como o licenciamento (artigo 49, caput, da LDA). Porém, o conceito típico de concessão é vinculado ao direito administrativo e incerto na prática autoralista.

Pressupõe-se que haverá uma contrapartida financeira pela cessão dos direitos autorais, exceto se ela for expressamente pactuada como gratuita.

O § 1º permite a averbação da cessão à margem do registro no órgão público definido no artigo 17, caput e § 1º, da Lei n° 5.988/1973 (artigo 19 da LDA), ou, não estando a obra registrada, o instrumento poderá ser registrado em Cartório de Títulos e Documentos. Apesar de ser recomendável que a obra esteja registrada e o contrato averbado, atualmente essas inscrições não são compulsórias.

Antes da revogação do correspondente artigo 53, § 1°, da Lei n° 5.988/1973 (artigo 115 da LDA), era mandatória a averbação da cessão à margem do registro no órgão público competente, para valer perante terceiros.

O artigo 13 da Lei n° 496/1898, primeira lei brasileira sobre direitos autorais, dizia que era formalidade indispensável para gozar dos direitos de autor o registro na Bibliotheca Nacional.

O § 2º obriga que conste do instrumento de cessão como elementos essenciais:

i) seu objeto e

ii) as condições de exercício do direito quanto a tempo, lugar e preço.

O objeto só pode ser a transferência da titularidade dos direitos patrimoniais do autor e precisa detalhar o propósito negocial pretendido pelas partes, conforme exemplificado no artigo 29 da LDA.

Com relação ao tempo, é importante observar que na hipótese da cessão de obras futuras, ela abrangerá, no máximo, o período de cinco anos (artigo 51, caput, da LDA). O prazo será reduzido a cinco anos sempre que indeterminado ou superior, diminuindo-se, na devida proporção, o preço estipulado (artigo 51, parágrafo único, da LDA).

No tocante a delimitação do lugar, a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato, salvo estipulação em contrário (artigo 49, IV, da LDA).

O preço figura como elemento contratual vital na cessão dos direitos autorais desde a vigência do artigo 53, § 2 °, da Lei n° 5.988/1973, posteriormente substituído pelo artigo 50, § 2º, da LDA, reiterando a diligência do legislador infraconstitucional, estritamente alinhada ao princípio da legalidade (artigo 5°, II, da CRFB).

Se a cessão não estipular expressamente o preço de retribuição, não há previsão legal para que ele seja arbitrado, baseado nos usos e costumes, diferente do que ocorre no contrato de edição (artigo 57 da LDA), que não implica forçosamente a transferência de titularidade dos direitos autorais.

A interpretação restritiva dada aos negócios jurídicos sobre os direitos autorais pelo artigo 4° da LDA não se limita a utilização disciplinada no artigo 49, VI, da LDA, aplicando-se também no controle dos critérios de validade da cessão, que deve preencher, cumulativamente, a forma escrita e todos os requisitos do artigo 50, § 2º, da LDA (artigo 107, parte final, do CC), sob pena de nulidade (artigo 166, IV e V, do CC).

Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos pelo Código Civil para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. (artigo 2.035, parágrafo único, do CC).

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça entende que: “A cessão de direitos autorais, a teor do que expressamente dispõe o artigo 50 da Lei nº 9.610/1998, deve se dar sempre pela forma escrita e, além disso, ser interpretada restritivamente”. (item 4 do REsp n° 1.520.978/DF).

Percebe-se claramente a preocupação da legislação, interpretada pelo STJ com a fidelidade de praxe, em resguardar o patrimônio autoralista para que ele não seja cedido/abdicado sem o pleno cumprimento das cautelas exigidas.

A descrição de preço e condição de pagamento constitui matéria de ordem pública na cessão de direitos autorais, transcendendo o interesse das partes para garantir segurança jurídica e coibir, dentre outras ilicitudes, as seguintes situações:

a) Fraude à legítima cabível aos herdeiros necessários do cedente (artigos 549 e 1.846 do CC).

b) Violência patrimonial/financeira contra o cedente idoso (artigo 102 da Lei n° 10.741/2003).

c) Simulação de ato oneroso solenizado de maneira precária para esconder ato gratuito e omitir o fato gerador do imposto estadual incidente sobre doações (artigo 155, I, da CRFB).

d) Se o ato for efetivamente oneroso e celebrado entre pessoas físicas, a falta de preço pode ocultar ou reduzir, propositalmente, o rendimento recebido pelo cedente que deve ser oferecido à tributação do imposto sobre a renda das pessoas físicas (artigos 38, VII, ou 44, IV, do RIR/2018), e, omitir total ou parcialmente o pagamento efetuado pelo cessionário (artigo 13, § 1º, “b” e § 2°, do Decreto-lei nº 2.396/1987 e artigo 975 do RIR/2018), ensejando a caracterização do crime de sonegação fiscal (artigo 1º, II, da Lei n° 8.137/1990).

No julgamento da Apelação Cível n° 0064819-92.2014.8.16.0014, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná decidiu, equivocadamente, que na cessão onerosa de direitos autorais, a mera falta de indicação de preço não é suficiente para anular a cessão sob o fundamento de conservação do contrato e respeito a real intenção dos contratantes, em observância aos artigos 112 e 113 do CC.

Diante disso, esclareço que o rol de exigências do artigo 50 da LDA é taxativo e não pode ser mitigado pelo CC, que é norma geral e posterior, aplicável apenas, subsidiariamente, para complementar a LDA (artigo 2°, § 2º, do Decreto-lei nº 4.657/1942).

Mesmo que a cessão fosse realizada por meio de negócio jurídico empresarial paritário, nem a livre manifestação de vontade das partes poderia flexibilizar a norma de ordem pública elencada no artigo 50 da LDA (art. 3º, VIII, parte final, da Lei n° 13.874/2019).

Embora o referido acórdão conclua que a cedente tenha dado quitação ao contrato, reservado para si o pertinente direito de usufruto vitalício, não haja demonstração de prejuízo suportado pela cedente e ela tivesse pleno conhecimento jurídico por ser advogada, tudo isso é irrelevante para afastar o vício de nulidade constatado (artigo 169 do CC).

As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes (artigo 168, parágrafo único, do CC).

Considerando que a exploração econômica dos direitos autorais objetiva constituir fonte de remuneração passiva similar a alocação de recursos financeiros em valores mobiliários, destaco a possibilidade de instituir bem de família sobre o imóvel de domicílio familiar junto com valores mobiliários, desde que atendidas certas obrigações.

A cessão de direitos autorais, formalizada corretamente, que resulte na aquisição de valores mobiliários, por meio ou não de fundos de investimento, associando-os ao imóvel destinado a residência familiar do cedente, serve para compor a proteção do patrimônio familiar desse, mediante escritura pública ou testamento a ser registrado no competente Registro de Imóveis.

É imperioso que o bem de família não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial, os valores mobiliários designados não excedam o valor do imóvel instituído em bem de família, à época de sua instituição, e a respectiva renda seja aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família (artigo 2°, I a IX,  da Lei n° 6.385/1976 e artigos 1.711 a 1.722 do CC).

O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel e, os eventuais valores mobiliários convencionalmente relacionados, pertencentes a pessoas solteiras, separadas e viúvas (Súmula n° 364 do STJ  e artigo 1.712 do CC).

*Bernardo Araujo Mitre é consultor jurídico e parecerista nas áreas de Direito Civil, Empresarial e Tributário.

Fonte: ConJur