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Clipping – Carta Capital – Os direitos LGBTI+ correm risco com o próximo governo?

05-12-2018

Especialistas explicam como direitos garantidos pelo Supremo podem ser ameaçados na gestão Bolsonaro  

Desde que a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições desse ano tornou-se algo palpável, o número de casamentos da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais e outras identidades de gênero e sexualidade) cresceu significativamente. De setembro a outubro, os casamentos homoafetivos aumentaram 36%, segundo a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), que reúne dados dos registros civis feitos em cartórios do país.

A razão? Casais têm antecipado seus planos com medo de perder direitos no próximo ano. É o caso das namoradas Flávia Pontes e Nathalia Pompeu. Elas tinham planos de se casar em junho do ano que vem, quando completariam dois anos juntas. Mas resolveram apressar a data. Nas semana seguinte àquela que elegeu Jair Bolsonaro, elas deram entrada no cartório. A cerimônia está marcada para o dia 5 de janeiro. 

Os amigos entenderam a decisão, mas o casal encontrou resistência na família. Alguns parentes acharam a escolha precipitada. “Minha mãe achou um exagero. A mãe da Nathalia também. Elas entenderam o medo, mas acham que estamos nos deixando levar pelo terrorismo das falas dele. Acham que é excesso de zelo nosso”, conta Flávia.

As incertezas do casal são muitas, mas fundamentadas. Ainda candidato, Bolsonaro assinou um compromisso com uma entidade religiosa no qual se comprometeu a promover ‘o verdadeiro sentido do Matrimônio, como união entre homem e mulher’. 

No Brasil, o casamento homoafetivo, assim como a adoção, não são direitos garantidos por lei, mas por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Além disso, Flávia teme não ter os mesmos direitos dos casais heterossexuais. 

“Em julho meu pai faleceu e foi uma correria por causa de testamento e de toda a documentação. Aí eu pensei que para um LGBTI+ deve ser mais difícil. Tem que provar que não são colegas de quarto e sim um casal. Sou funcionária pública e, se eu morrer, ela tem direito a pensão. Se tiver um documento, alguma coisa formal, uma união estável, um casamento, ela fica mais protegida e não ficaria desamparada”, explica.

“Sei que a gente está garantindo nossos direitos porque depois do casamento, não tem como “descasar” a gente. Mas, e os nossos amigos que namoram e que um dia tem esse sonho de casar? Eu temo por eles.”

O sentimento expresso pelo casal passa longe de ser exagero. De acordo com os especialistas ouvidos por CartaCapital, os direitos LGBTI+ no País são, de fato, frágeis por não serem respaldados por leis. 

“As iniciativas Supremo trouxeram interpretação constitucional aos direitos dessa comunidade, justamente pela dificuldade de aprovação dessas iniciativas através de projetos de lei. Isso mostra que, se dependesse do Congresso, não teríamos estes direitos”, explica a advogada Ananda Puchta, coordenadora de organismos internacionais do Grupo Dignidade.

 Casamento e adoção

Segundo Ana Paula Braga, advogada e integrante da Rede Feminista de Juristas, tanto a Constituição quanto o Código Civil, afirmam que o casamento e a união estável se dão exclusivamente entre um homem e uma mulher. A interpretação do Supremo entendeu que essa restrição é inconstitucional.

Além dos direitos conquistados no STF (união estável, casamento e adoção), uma resolução do Conselho Nacional de Justiça, direcionada aos cartórios, proíbe que eles se omitam de fazer certidões de união estável e de casamento. 

“Qualquer alteração legislativa ou mudança de governo, pode retroagir com esses direitos. Esse é o problema do ativismo judicial, quando o judiciário tenta assumir uma tarefa que seria do Congresso. Quando a gente tem leis é muito mais difícil derrubar, tem todo um trâmite legislativo”, explica Braga.

“Se o Bolsonaro conseguir indicar novos ministros para o Supremo com viés mais conservador, cenário do STF, que hoje em dia é bastante progressista em termos de direitos civis, pode mudar”, complementa Gabriel Mantelli, membro da Acode – Política sem discriminação e pesquisador do Direito da FGV.

Entretanto, um presidente não tem o poder para, sozinho, tornar ilegais o casamento homoafetivo e o direito à adoção. De acordo com os especialistas, ele não tem competência constitucional para alterar uma decisão judicial do Supremo.

Isso, contudo, não torna tais direitos menos ameaçados. “O risco que essas conquistas sofrem é de uma alteração legislativa por meio de Emenda Constitucional, que não pode ser realizada apenas por lei federal, mas pela mudança do texto constitucional”, explica Puchta. 

De acordo com os advogados, a figura simbólica  do Executivo e o avanço conservador pode propiciar o surgimento e a aprovação de projetos de lei e outras formas de intervenção nos direitos da comunidade LGBTI+. 

Para a advogada Braga, o perigo está em um avanço do Estatuto da Família, em trâmite há alguns anos no Congresso. Caso aprovado, o documento proibiria por lei o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

“A gente tem, sim, um risco de perder o direito ao casamento gay. Se esse estatuto passar, ele pode ser contestado, mas até que seja derrubado, vai estar valendo. Entendo que seria inconstitucional, mas até que isso fosse julgado as pessoas ficariam sem direitos e não sabemos qual seria a posição do Supremo no futuro”, explica ela.

Definição de gênero e direitos trans

Pouco antes do segundo turno das eleições no Brasil, o presidente dos EUA Donald Trump anunciou que pode alterar a definição de gênero para uma condição biológica e imutável, definida a partir do nascimento. Tal ação retiraria direitos de transsexuais, travestis e transgêneros.

Ainda que uma ação parecida não tem sido citada por Bolsonaro, ele e seus apoiadores atacam o que chamam de “ideologia de gênero” e o projeto Escola Sem Partido tenta proibir o ensino do conceito de gênero nas escolas. 

“Hoje existe o direito à mudança de gênero. Uma pessoa pode mudar seu registro civil independentemente de  fazer uma cirurgia. Se a gente tiver uma lei que proíba distinguir sexo de gênero, a população trans será muito afetada”, explica Braga. 

“Uma alteração na definição de gênero causaria alterações em políticas públicas para a população LGBT, principalmente os transsexuais. Algumas delas são específicas para essa comunidade, como a mudança do nome social e alteração de sexo por meio do SUS”, explica Mantelli. “A depender do cenário legislativo, ou até mesmo do executivo, pode ser que essas políticas deixem de existir, o que é bastante perigoso.”

Braga explica que, caso norte-americano inspirasse uma medida do presidente eleito no Brasil, ela não estaria de acordo com a Constituição Federal ou com a interpretação constitucional realizada pelo STF. “Apesar da inconstitucionalidade, as pessoas ficariam desamparadas até que um julgamento contra dessa medida ocorresse”, afirma. 

 

Fonte: Carta Capital