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Artigo – Registros sobre Registros #124 – Por Ricardo Dip

03-10-2018

(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis -Quarta parte)

  1. No entorno da celebrada asserção aristotélica –que foi fundamental para a antropologia– de o homem ser um animal naturalmente político, são muitos os sucessivos enunciados que parecem dever-lhe tributo: ad exempla, o de o homem ser naturalmente razoável, segundo Jacques Leclercq; o do homem naturalmente religioso, conforme as palavras de Louis Salleron e, mais extensamente, as de Mircea Eliade, para quem, de par com ser por natureza religioso, o homem é naturalmente faberludenssapiens; o de Tertuliano, com a observação de o homem ter anima naturaliter christiana; o do próprio Aristóteles, acrescentando que o homem é naturalmente familiar, o que completa de S.Tomás, para quem o homem é naturalmente conjugal (o que, hoje, escandaliza os adeptos do anarco-sexualismo); Lewis Mumford disse que o homem é naturalmente curioso,  e parece que de John Rupert Firth vem a afirmação de ser o homem um animal naturalmente comunicativo ou fonético; um ser naturalmente cultural (Contreras e Poole), ou, tal o afirmamos, na mesma trilha de tão solidados ensinamentos: o homem é um animal naturalmente documentante.

O documento propriamente dito, já o vimos, docet alguma coisa; representa o representado; é o nomen do numen, o dictum do actum; expressa o expressado; instrumenta o instrumentado. Esse relacionamento nomen-numendictum-actum, exige tarefas de compreensão e interpretação humanas, quer na ordem da intenção (prévia) do documentum, quer no de sua produção, quer, ao fim, no de sua ulterior utilização.

Isto reclama, por primeiro, considerar o documentum em seus elementos (enquanto, pois, titulus formalis), e, depois, estudar os fatos jurídicos (lato sensu) e sua operatividade, já aqui na perspectiva dos tituli materiales, importando, e muito, um e outro destes temas, à determinação registral do direito, assim entendida a decisão do registrador imobiliário que acolhe o pleito de inscrição –ou, mais exatamente, determina um registro ou um averbamento, certo que sem os títulos –formal e material, o dictum e o actum– não há inscrição predial possível: nulla inscriptio sine titulo.

  1. A determinação concreta do direito possui estratos de atuação (o que Vallet designou por três cortes verticais), (i) um, que considera, à partida, os princípios gerais; mas como acontece que a teorianão descende ao particular, tem-se (ii) um segundo nível de atividade, que é o da praxis, guiada pela prudência (não por menos é que se fala tanto em juris-prudência), e assim pode alcançar-se o justo concreto, que, para efetivar-se, reclama ainda (iii) a poïesis, é dizer, o emprego dos expedientes técnicos adequados para bem realizar o justo já descoberto nos estratos anteriores.

Desta maneira, segundo ainda a lição de Vallet, a determinação do direito repousa na conjunção de princípios gerais de justiça com o conhecimento dos casos singulares, tal como os considera a praxis ou prática prudencial, direito que se efetiva por meio de uma arte, a “técnica de realização”. Assim, na linha mesma desta doutrina valletiana, as principais funções jurídicas (cavereministrarerespondereagerepostulareiudicare) estão sempre nutridas do princípio geral –objeto nuclear da teoria– do suum cuique tribuere e exigem a apreciação do caso (a descoberta do justo hic et nunc), a que sucede a produção, a techné.

Também a determinação registral do direito observa estes estratos ou cortes verticais. Desde os princípios genéricos, passando pelo conhecimento prudencial, até chegar à técnica da inscrição (entre cujos expedientes possíveis estão os meios eletrônicos, que são meios de realização e não de invenção do justo concreto, não um substituinte da prudência e do saber dos princípios gerais).

Para atingir-se a determinação jurídico-registral, há um complexo percurso de inventio iuris, complexo porque o direito é propriamente objeto de saber prático e não de saber especulativo, e não se tem, no domínio jurídico, o mesmo gênero de certeza que se tem com o saber teórico. É que, versando sobre o operável –scl., coisas singulares e contingentes (res singularia et contingentia)–, as leis humanas “não podem fruir da mesma infalibilidade que têm as conclusões demonstrativas das ciências [teóricas]” (S.th., Ia.-IIæ., q. 91, art. 3, ad 3um).

Consideremos, pois, analiticamente, ainda que de modo abreviado, um aspecto do itinerário dessa determinação registral do direito, qual o do exame dos títulos inscritíveis, limitando-nos aqui, à conta de sua exemplaridade prioritária, à escritura notarial, enquanto instrumento ou veículo expressivo dos fatos jurídicos latiore sensu.

  1. É costumeiro dividir-se essa escritura em cinco partes, mas há os que apontam quatro, outros seis, sete e até oito partes: (i) comparência, (ii)  exposição, (iii) disposição (ou estipulação), (iv) outorga –p.ex., Escobar de la Riva–,(v) autorização (Pedro Ávila Alvarez, Gomá Salcedo), (vi) cabeçalho (Emérito Gonzalez), (vii) intervenção testemunhal e (viii) juízo de identidade (Giménez Arnau). A comparênciae o juízo de identidade reúnem elementos pessoais; a exposição abrange elementos materiais; a disposição ou estipulação, elementos de forma substancial; e o cabeçalho, a outorga, a autorização e a intervenção de testemunhas, elementos adjetivos (Chico Ortiz e Catalino Ramírez).

Submetida a escritura notarial ao registro imobiliário, a correspondente qualificação registrária, superado algum controle formal da eficácia sintética, devota-se à compreensão analítica do dictum e do actum notariais, daquele para descobrir este: examinam-se palavras para compreender conceitos e juízos. Desta maneira, ao registrador muito importa a adequada compreensão dos nomina ou verba (nomes, palavras) expressados no e pelo título em sentido formal, porque é deles que se apreendem os numina –os conceitos que devem ser inscritos e constituem o titulus materialis.

  1. cabeçalhoou encabeçamento da escritura notarial consiste em sua enunciação inaugural, que não tem fórmula fixa, mas visa, de comum, a facilitar a busca do instrumento e sua indexação (cf. Emérito González). Frequente, embora não sem variação, é, por agora, encontrarem-se no cabeçalho:

–     a natureza do actum ali instrumentado (já antes se lia na Aurora de Rolandino Passageri: instrumentum simplicis inter vivos donationis -cap. XX),

–     o lugar e data da elaboração notarial (é exemplo antigo, também da Aurora: Anno Ejusdem millesimo ducentesimo quinauqgesimo quinto, …, die XVI, intrante decembri; em vernáculo: no ano do Senhor de 1255, dia 16 do entrante dezembro),

–     o valor econômico objeto,

–     o livro do protocolo e a página em que lavrado (vidē, a propósito, os modelos sugeridos por Sérgio Manica, Direito notarial, e Carlos Brasil Chaves e Afonso Celso Rezende, Tabelionato de notas e o notário perfeito).

Antigamente, p.ex., na Espanha, os encabeçamentos das escrituras notariais compunham-se de três partes: a invocação, um lábaro monogramático de Cristo (o Crismón) e o preâmbulo. A invocação dirigia-se à proteção de Deus: exemplifica-os Fernández Casado: in nomine Dei, amen; ou in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti, qui est in Trinitae colendus et adorandus; também se encontra, v.g., na Aurorain nomine Domini Amen (cap. I).  A tendencial laicização política da civilização do Ocidente foi, nos países direta e indiretamente românicos, acarretando o abandono destas fórmulas invocatórias, mas, para o caso brasileiro, não nos olvidemos de que a Constituição de 1988 foi promulgada com a cláusula explícita, por igual presente na Constituição de 1946, de que a promulgação se fazia “sob a proteção de Deus” (na Constituição brasileira de 1934 constou a fórmula “pondo a nossa confiança em Deus”; na de 1967: “invocando a proteção de Deus” –enunciado mantido com a Emenda constitucional n. 1, de 1969; da Constituição de 1824 não consta esse gênero de invocação, por um motivo manifesto, qual o de logo, em seu art. 5º, esse Código político afirmar que “a Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”).  Consistia o lábaro monogramático das antigas escrituras notariais –que também podia entender-se ao modo de uma invocação implícita da proteção de Deus– na indicação gráfica do nome de Cristo, p.ex., mediante o signo X –letra latina xis, ou grega, khi–  frequentemente enlaçadas com as letras gregas α e ω (cf. Fernández Casado). E o preâmbulo, enfim, era, de comum, um aforismo de caráter moral (p.ex., dubium quidem non est…: para que não haja dúvida).

Eventuais lapsos do cabeçalho da escritura (ad exemplum, dizer que se trata de uma “doação”, mas o actum ser o de uma venda; ou que é caso de “comodato”, quando o é, na verdade, de “locação”) não a invalidam, e deve, pois, o registrador, tanto que se assegure da significatio verdadeira do actum (o que ele extrairá da exposição e da estipulação da escritura), superar a irregularidade textual.

Sem embargo, se o erro for de omissão de data, deve distinguir-se. Haverá nulidade formal absoluta se essa omissão for total (diversamente, a datação pode encontrar-se, acaso, em meio ou ao fim do texto documentado). Total é a omissão dessa data quando a lacuna for impossível de determinar-se indiretamente (vidē Giménez Arnau).

A data da escritura é um seu requisito indispensável (cf. inc. I do § 1º do art. 215 do Cód.civ. brasileiro), elemento “necessário à produção de seus efeitos” (Vitor Kümpel e Carla Ferrari), exigível “con vigoroso valor para la validez y prueba del documento” (Emérito González).  Ressalve-se, entretanto, a possibilidade de que se averigue essa data por meio supletório (é o que pode chamar-se de “data indireta”), sem perder de vista, embora, a importância já historicamente conferida à datação dos instrumentos públicos, a ponto de que, nas Ordenações filipinas, estatuía-se o perdimento do ofíciose houvesse omissão de “dia, mez e anno” nas cartas, sentenças e termos (§ 16 do título XXIV do livro I; cf. também, p.ex., § 7 do título LXXX do mesmo livro).

 

Fonte: Iregistradores