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Artigo – Publicidade é matéria de ordem econômica, não política – Por Adalberto Pasqualotto

10-07-2019

A Declaração de Direitos de Liberdade Econômica chegou para estabelecer garantias de livre mercado, dispondo sobre Direito Civil, Administrativo, Trabalhista, Constitucional etc. O ar proclamatório, com espírito jeffersonniano, veio soprado por medida provisória, despreocupada com a relevância e a urgência, o que mais uma vez atesta que a Constituição vale para todos, exceto para o governo.
 
Entre as diversas providências consta a criação da figura do abuso do poder regulatório consistente em “restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei”. Cumpre ressaltar, em absoluto primeiro lugar, que finalmente a lei expressamente reconheceu aquilo que alguns afirmavam, embora com pouca ressonância: que publicidade é matéria de ordem econômica, não política, afetando principalmente o exercício das atividades produtivas, não a liberdade de expressão. O seu lugar, agora autoproclamado, é o artigo 170 da Constituição, não o artigo 220. Como já defendi, o parágrafo 4º do artigo 220, que autoriza a restrição da publicidade de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias, pode ser transplantado, sem uso de anestésicos, para um segundo parágrafo do artigo 170.
 
Em segundo lugar, ainda preliminarmente, a redação do texto coloca uma dúvida: é abusivo restringir a publicidade sobre um setor econômico (produção e comercialização de tabaco, por exemplo), ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei? Em outras palavras, não será possível restringir a publicidade em casos em que a lei proíba restringi-la? Ou a intenção do presidente legislador teria sido dizer que é abusivo restringir, exceto se a restrição é autorizada em lei? Elíptico demais para um texto jurídico.
 
Em terceiro lugar, preliminarmente ainda, como se haverá de interpretar daqui em diante o artigo 220, parágrafo 3º, II, que prevê meios legais de defesa da família (instituição tão cara ao governo vigente) da programação de rádio e TV atentatória contra os valores éticos e sociais da pessoa e (mais uma vez a Constituição!) da família, “bem como [reproduzindo o texto constitucional] da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”?
 
Parece que a criação da figura do abuso do poder regulatório por restrição da publicidade está endereçada a certas medidas, como a da Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que dispõe sobre “a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente”. Como já foi dito insistentemente em meios distintos, referida resolução nada disse de novo, apenas explicitou meios de concretização da figura de publicidade abusiva que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança” (artigo 37, parágrafo 2º, do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/1990).
 
Aliás, recentemente, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pediu ao Conanda (órgão que integra a estrutura do ministério) a revisão da Resolução 163, o que foi negado pelos conselheiros. Todavia, não parece que o texto da MP atinja qualquer restrição ou vedação da publicidade dirigida às crianças, porque não se caracteriza um “setor econômico” (agradeço ao colega Fábio de Andrade a troca de ideias a esse respeito).
 
Por falar em direitos humanos, é de lembrar que relatório especial da ONU sobre os direitos culturais, de 2014 (o relatório Farida Shaheed), recomenda uma atenção especial, entre outros, aos direitos da criança, de alimentação, de saúde e de educação, setores (aqui, sim, envolvendo-os) nos quais é fácil perceber outro endereço certo da figura criada pela MP 881, qual seja, a Resolução 24/2010 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que restringe a publicidade de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional. A Anvisa está dando andamento a um novo processo regulatório que cuida da rotulagem de alimentos, matéria em que é modelar o sistema chileno (uma referência de modelo econômico para muitos), que proíbe a publicidade de alimentos industrializados que contenham advertência de excesso de açúcar, gorduras ou sódio.
 
O referido relatório da ONU também recomenda a proibição de publicidade dirigida a crianças com menos de 12 anos, assim como a prática dos embaixadores mirins de marcas (influenciadores mirins). Recomenda também a proibição de publicidade em escolas, creches e universidades, assim como em diversos outros locais de acesso público. O relatório recomenda igualmente o reforço do princípio da identificação da publicidade, advertindo sobre a chamada produção de conteúdo, que mistura informação com publicidade, o que tem constituindo um campo fértil de atuação dos influenciadores digitais.
 
A esse propósito, também é de ser recordado que países como a Inglaterra adotam regras explícitas sobre publicidade feita por influenciadores. Tais regras são compartilhadas pela autoridade pública (The Competion and Markets Authority – CMA) e pelas entidades de autorregulamentação (The Advertising Standards Authority – ASA e The Comitee of Advertising Practice – CAP).
 
O papel nocivo da publicidade foi denunciado mais uma vez em julgamento de grande repercussão ocorrido neste ano na província de Québec, no Canadá, em que três grandes empresas tabaqueiras foram condenadas a pagar 15 milhões de dólares canadenses de indenização a fumantes. Repetindo fundamentos invocados em decisões análogas nos Estados Unidos, o acórdão relatou práticas publicitárias de promoção do cigarro que vão da omissão de informações sobre o malefício do cigarro à subvenção de pesquisas científicas com o propósito expresso de confundir a opinião pública sobre a nocividade comprovada do tabaco à saúde humana. A este propósito, o STJ reconheceu a enganosidade e a abusividade da publicidade de cigarros (anterior à sua proibição no Brasil) dirigida a crianças e a adolescentes (Recurso Especial 1.101.949-DF). Diga-se de passagem, a proibição da publicidade de tabaco também não pode ser questionada em face da MP 881, porque decorre de lei expressa (artigo 3º da Lei 9.294/96, com a redação da Lei 12.546/2011).
 
 Em outras duas decisões o STJ pronunciou-se contrariamente a práticas publicitárias abusivas (recursos especiais 1.558.086-SP e 1.613.561-SP), nestes casos referentes a alimentos. Agora se sabe que a indústria de alimentos vem adotando a mesma prática da coirmã tabaqueira de patrocinar pesquisas com conflitos de interesse.
 
Liberdade econômica é saudável, mas os meios de persuasão ao consumo de produtos comercializados em ambiente de liberdade econômica não devem tolher a liberdade de escolha do consumidor. É dever da administração pública zelar pelos direitos assegurados a todos — inclusive dos consumidores de serem protegidos de publicidade enganosa e abusiva e de terem acesso a informação adequada e clara sobre a qualidade de produtos e serviços e sobre os riscos que apresentam à sua saúde e segurança.
 
Adalberto Pasqualotto é professor titular de Direito do Consumidor na PUCRS e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

 

Fonte: Conjur