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Artigo: Planejar ou perder: o impacto das criptomoedas no direito sucessório – Por Marcelo Trussardi Paolini e Maria Paula Meirelles Thomaz De Aquino

30-08-2019

O Investidor precisa elaborar um plano de transmissão das criptomoedas e informar aos herdeiros onde localizá-las

É evidente que as diversas criptomoedas (Bitcoin, Bitcoin Cash, Litecoin, Ethereum, XRP, dentre outras) alcançaram grande notoriedade no mercado mundial, atraindo um crescente número de investidores.

E, embora os brasileiros não tenham escapado a essa tendência global, nota-se que os legisladores e Tribunais brasileiros ainda não se debruçaram com afinco sobre a matéria, persistindo a omissão quanto a questões legais fundamentais relacionadas a esses ativos.

Nesse contexto de insuficiência regulatória (cuja consequência é a inevitável insegurança jurídica), é de extrema importância a elaboração de um planejamento sucessório estratégico pelo titular das criptomoedas, permitindo aos seus herdeiros, no momento da abertura da sucessão, o amplo acesso às chaves e senhas de sua carteira virtual (“wallet”).

De início, vale mencionar que a principal diferença entre as criptomoedas e a moeda estatal/papel moeda, reside no fato de que sua emissão não é realizada por Bancos Centrais ou qualquer órgão similar. As criptomoedas são geradas através de sistemas computacionais, de maneira descentralizada, e funcionam sobre uma base de criptografia – a nível militar – que garante proteção e segurança a todas as informações contidas na blockchain (“cadeia de blocos”).

A blockchain, por sua vez, é uma tecnologia que, grosso modo, registra e confere segurança às transações de criptomoedas de uma pessoa a outra, tendo em vista que a moeda não possui nenhuma regulamentação cambial de bancos, como dito acima.

Diante dessas características, a blockchain é comparada a um “livro contábil”, pois todas as transações têm registros espalhados em inúmeros computadores, que validam as informações e confirmam a confiabilidade dos dados.

Dados os conceitos essenciais, passa-se à análise do seu aspecto sucessório, para destacarmos, de início, as suas principais problemáticas:

(i) A mudança constante de endereçamento dos usuários torna praticamente impossível o rastreamento das várias transações a um mesmo indivíduo, até pelos órgãos governamentais detentores das mais avançadas tecnologias;

(ii) Dificuldade na identificação dos proprietários e da plataforma utilizada para adquirir as criptomoedas, não obstante todas as transações serem abertas ao público.

(iii) O acesso aos “wallets” é obstado, caso o interessado não possua a private key. Sua sofisticada criptografia também impede a recuperação da senha de acesso.

Neste contexto, merece destaque a recente Instrução Normativa nº 1.888 publicada no dia 07.05.2019 pela Receita Federal do Brasil (“IN nº 1.888”) – e parcialmente alterada pela Instrução Normativa nº 1.899 – a qual, além de estabelecer conceitos até então vagos, como a definição de criptoativos e de exchange de criptoativos, especificou quais operações precisarão ser declaradas, sob pena de multa aos que deixarem de prestar as informações à Secretaria da Receita Federal do Brasil (“RFB”).

Independentemente de se tratar de pessoa física ou jurídica (ex.: corretoras), o artigo 6º da IN nº 1.888 exige a prestação de informações apenas nos meses em que as operações, conjunta ou isoladamente, alcançarem valores superiores a R$ 30.000,00 (trinta mil reais), o que, para fins sucessórios e de conhecimento dos herdeiros, será de grande utilidade.

Em complemento, a RFB, através de seu “Perguntas e Respostas” relativos à Declaração de Imposto de Renda de 2019, já havia estabelecido que os criptoativos deveriam ser declarados como “Outros Bens” na Ficha de “Bens e Direitos”, pelo seu valor de aquisição, sendo que ganhos mensais superiores a R$ 35.000,00 serão tributados.

Nada obstante, o tratamento jurídico brasileiro sobre o tema é, ainda, bastante escasso, o que exige de seus investidores certas condutas que visem assegurar e garantir o direito de transmissão aos herdeiros, evitando os riscos decorrentes da ausência de proteção do Estado.

A título de exemplo, e conforme amplamente divulgado pela imprensa, o caso de Gerald Cotten, fundador da prestigiada corretora canadense de criptomoedas QuadrigaCX, é interessante para ilustrar os reais problemas decorrentes da ausência de um planejamento sucessório na seara das criptomoedas.

Em dezembro de 2018, o Sr. Cotten, o único detentor da senha para acesso aos ativos digitais da empresa, faleceu repentinamente. Diante da impossibilidade de recuperação da senha através do sistema, e pela ausência de planejamento, a corretora sofreu uma perda de US$ 190 milhões armazenados, prejudicando em torno de 115 mil clientes.

Situação semelhante também ocorreu com um dos investidores pioneiros em criptomoedas, Matthew Moody, que morreu em um acidente de avião e não cedeu suas senhas de acesso à carteira digital a ninguém. Novamente, todo o investimento realizado se tornou permanentemente inacessível.

Para evitar surpresas indesejáveis, é imprescindível que o investidor elabore um plano claro e objetivo de transmissão das criptomoedas, e, especialmente, que informe aos herdeiros onde localizá-las, quais as plataformas/sistemas utilizados para o seu armazenamento e como se dará seu acesso técnico (acesso a chaves e senhas).

O plano poderá ser elaborado através de testamento ou outra ferramenta que garanta a segurança e o sigilo das informações. Outrossim, seria importante indicar terceiros da confiança do proprietário, que auxiliem os herdeiros em todo o procedimento específico para acesso às criptomoedas.

Nesse sentido e embora ainda em desenvolvimento, a empresa espanhola Mi Legado Digital apresentou uma proposta inovadora em 2018, que possibilita a transferência de ativos digitais após o falecimento do proprietário com a ajuda do chamado “testamento inteligente”, que seria passível de adoção na Espanha.

Como forma de tornar a solução efetiva, essa espécie de testamento incorporaria a tecnologia blockchain e o sistema de criptografia de chave pública, permitindo a atualização das criptomoedas em tempo real, o que dispensaria sucessivas modificações no testamento. A distribuição dos quinhões, por sua vez, seria realizada com auxílio de um tabelião local.

Não obstante seja o aludido “testamento inteligente” apenas uma proposta, fato é que a criação e desenvolvimento de tecnologias que se alinhem à própria natureza do mercado de moedas digitais será inevitável, pois as tradicionais ferramentas de sucessão, possivelmente, não serão capazes de atender a essa nova realidade patrimonial digital.

MARCELO TRUSSARDI PAOLINI – Sócio da área de Organização Patrimonial, Família e Sucessões do L.O. Baptista Advogados

MARIA PAULA MEIRELLES THOMAZ DE AQUINO – Advogada da área de Organização Patrimonial, Família e Sucessões do L.O. Baptista Advogados

Fonte: Jota