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Artigo – O protesto extrajudicial da dívida ativa no contexto da reforma tributária e seu impacto nas procuradorias fiscais – por David Luduvice

27-09-2019

A reforma tributária, nesse momento, encontra-se no centro da mesa de discussões de juristas, economistas e empresários quanto ao sistema de tributos (em especial sob o consumo) e a efetiva capacidade de realização da Justiça Tributária eternamente buscada.

No entanto, um aspecto importante, particularmente para as Procuradorias Fiscais, acaba por ficar em segundo plano, apesar do seu potencial de sofisticar e aumentar os índices de execução do Estoque de Dívida Ativa de Municípios e Estados, bem como modificar drasticamente a estruturação organizacional dessas procuradorias. Falo do protesto extrajudicial da Dívida Ativa.

O protesto extrajudicial de um título é um instituto jurídico definido pela Lei Federal n.º 9.492/1997 e que representa não apenas a constituição em mora de um devedor (particularmente para aqueles casos em que a interpelação se faz necessária como requisito para a ação executória do título, e.g., Duplicata Mercantil sem Aceite), como ainda materializa uma forma extrajudicial de cobrança da dívida líquida, certa e exigível, evidentemente com maior eficácia e menor custo do que a propositura de uma ação judicial de execução do título.

Um crédito fiscal (tributário ou não tributário) de um ente público, desde que inscrito em sua Dívida Ativa, autoriza o ente a emitir o seu título executivo extrajudicial, que é a Certidão de Dívida Ativa – CDA (§§ 2º, 3º, 5º e 6º, do art. 5º da Lei Federal n.º 6.830/80 – Lei de Execuções Fiscais), expressa e formalmente prevista como título executivo pelo Código de Processo Civil, posto que constava do Inciso VII de seu rol taxativo do art. 585 (atualmente o Inciso IX do art. 784 do NCPC). Essa é a razão primordial pela qual a CDA pode ser levada a protesto extrajudicial.

No entanto, muito se discutiu na doutrina e jurisprudência acerca do cabimento do protesto extrajudicial da CDA, com base em três alegações: a) o ente público não precisaria constituir em mora o devedor, uma vez que seu crédito decorre diretamente de lei, o que configuraria apenas uma forma de coerção indireta e desproporcional de cobrança do crédito fiscal; b) a dívida ativa somente teria como via exclusiva de cobrança a propositura da ação de execução fiscal e c) a CDA, não obstante formalmente prevista como título executivo extrajudicial no CPC, não estava expressamente indicada na Lei de Protesto de Títulos como um dos títulos passíveis de protesto.

Entretanto, a partir da edição da Lei Federal n.º 12.767/2012, que acrescentou o § único ao art. 1º da Lei 9.492/1997, a discussão acerca da questão formal da previsão da CDA como título passível de protesto deixou de existir.

Remanesceram assim os outros dois argumentos que foram sendo paulatinamente derrubados pelo Judiciário pátrio, particularmente pelo TJ-SP, até o julgamento da Adin 5135 pelo Supremo Tribunal Federal em novembro/2016, que pacificou a questão, estabelecendo que: “O protesto das Certidões de Dívida Ativa constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política”.

Aplicado então o instituto do protesto extrajudicial à CDA, tem-se, a partir de então, os efeitos jurídicos de interpelação para pagamento em 3 dias úteis, sob pena de protesto, que é o registro permanente do nome e CPF/CNPJ do devedor no banco de dados do Tabelionato de Protestos, o qual funciona como fonte regular de pesquisa de inadimplentes por parte de todos os componentes do Sistema Financeiro Nacional.

Essa situação repercute assim na imediata imposição ao protestado de restrições de acesso a linhas de créditos, financiamentos, contratos e serviços bancários etc., bem como impactando em obstáculo a certames licitatórios nos quais venha a participar, na medida em que a certidão negativa de protesto é documento usualmente exigido na fase de habilitação pelos entes públicos.

Cabe asseverar ainda que o ato de protesto extrajudicial já induz, paralelamente e por força de convênios dos Tabelionatos de Protesto, a negativação do devedor no SPC, SERASA e outros sistemas usuais de proteção ao crédito e cadastro de inadimplentes.

Desse modo, o protesto extrajudicial, apesar de não ser uma constrição sobre o patrimônio do devedor como a penhora (objeto imediato visado pela execução fiscal na busca pela satisfação do crédito), mas sim uma medida restritiva na esfera econômica e financeira do devedor, possui eficácia muito maior na busca pela satisfação do crédito que a propositura da ação judicial de execução, posto que:

(i) além da isenção a entes públicos das custas e emolumentos para apontamento, possui custo ínfimo de manutenção da medida – não exige horas de trabalho de corpo dedicado de procuradores para impulsionamento das ações;

(ii) não demanda a máquina do Judiciário, já congestionada pelo grande volume de processos judiciais e

(iii) impede o acesso do devedor aos serviços, empréstimos financiamentos disponibilizados pelo sistema financeiro.

Outro aspecto determinante para que o protesto extrajudicial assuma a posição de principal ferramenta na régua de cobrança da Dívida Ativa é o atual cenário de fomento de seu uso em grande escala pelo CNJ e pelos Tribunais de Justiça e TRFs, com o objetivo de desafogar o Judiciário, justamente pelo fato de que as Fazendas Públicas (seja em qualquer esfera) são os usuários do serviço público jurisdicional que, individualmente considerados, possuem mais ações judiciais em curso em todas as instâncias.

Some-se a isso que que as câmaras de conciliação instituídas pelo novo CPC em 2015 (arts. 165 e 174) com o fito de viabilizar soluções amigáveis de demandas, naturalmente apresentam uma baixa eficiência com relação a lides em questões tributárias. Isso porque não há margem para as Fazenda Públicas negociarem em mesa descontos ou reduções nos créditos fiscais, ressalvadas as permissões temporárias previstas em leis especiais de incentivo a parcelamentos fiscais (e.g. Refis, PPI), nas quais as margens de negociação são previamente tabelecidas aos devedores, com prévia justificativa técnica orçamentária de impacto que demonstre não resultar em renúncia de receita, vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ocorre que, não obstante todas as vantagens acima elencadas, remanesce um único ponto de eficácia exclusiva e imprescindível da execução fiscal que o protesto extrajudicial não consegue oferecer quanto aos créditos tributários (os mais relevantes no estoque de Dívida Ativa de qualquer ente público), no caso, o imprescindível efeito jurídico de interrupção da prescrição tributária.

Ou seja, no presente momento, o ato de protestar extrajudicialmente o crédito tributário não afeta o curso do prazo prescricional de 5 anos, que continua assim normalmente desde a constituição definitiva do crédito (art. 174 CTN) e que, caso não haja o ajuizamento da execução fiscal, restará extinto quando alcançado o termo final aludido.

Isso porque, em se tratando da matéria prescrição tributária, a Constituição da República (art. 146, III, b) determina a reserva de seu trato à lei complementar e isso está feito, quanto às causas interruptivas do lapso prescricional, nos estritos limites do rol taxativo dos incisos do art. 174 do CTN (Norma que, não obstante originalmente editada sob a forma de Lei ordinária n.º 5.172/66, foi recepcionada pela Constituição em 1988 com status de lei complementar, diante de seu conteúdo normativo).

Justamente nesse ponto é que, no contexto da reforma tributária que bate à porta de nossa sociedade, apresenta-se a proposta de inclusão do protesto extrajudicial no rol art. 174 do CTN. Esse é o objeto do PLP 459/2017, em trâmite no Congresso Nacional e atualmente a espera de deliberação no Plenário da Câmara dos Deputados, sob regime de urgência.

A introdução dessa novidade representará, caso se confirme, um momento disruptivo para a atuação das Fazenda Públicas, repercutindo na completa modificação da régua de cobrança da dívida ativa e reorganização funcional das próprias Procuradorias Fiscais.

Isso porque, na prática e conforme a conveniência da política fiscal do ente específico, um dado crédito tributário somente precisará ser levado ao Judiciário (por meio da propositura da ação de execução fiscal) próximo de completar 10 anos da sua constituição definitiva.

Exemplificando, um crédito constituído em janeiro de 2019, pode ser submetido a variadas ferramentas amigáveis e administrativas de cobrança extrajudicial (carta convite, call center, mensagem eletrônica, negativação em órgãos de proteção ao crédito), a parcelamentos incentivados com descontos, até que se utilize o protesto extrajudicial do crédito antes de completados 5 anos, interrompendo assim pela primeira vez o curso da prescrição tributária.

Como no direito tributário a prescrição é matéria de reserva de lei complementar (como já dito) e por isso não se submete aos preceitos da prescrição de direitos/créditos civis, admite-se a interrupção da prescrição tributária mais de uma vez (enquanto no Código Civil apenas uma única vez – vide seu art. 202), de modo que, após interrompido o lapso prescricional pelo protesto da Certidão de Dívida Ativa, reinicia-se o prazo de 5 anos, que pode vir a ser novamente interrompido pela propositura da execução fiscal e seu despacho inicial pelo juízo (Inciso I, art. 174 CTN), ou pela confissão de dívida que precede um parcelamento (Inciso IV do mesmo dispositivo), ou mesmo pelas raríssimas e não usuais hipóteses dos incisos II e III do artigo referido (protesto/interpelação judicial e ato/decisão judicial em demanda anulatória/declaratória proposta pelo sujeito passivo contra o crédito tributário).

Esse cenário descrito, caso confirmado, ensejará a efetiva inversão da lógica de provocação do Judiciário nas demandas fiscais. Isso porque não mais será a Fazenda Pública a primeira a buscar a Justiça mediante a propositura das execuções fiscais para satisfação dos créditos inscritos em Dívida Ativa, mas sim será o contribuinte/administrado protestado que irá propor ação contra o ato de protesto e desconstituição do crédito fiscal.

De fato, é uma significativa mudança na relação do Judiciário com a gestão da Dívida Ativa, na medida em que inevitavelmente a quantidade de devedores que buscarão exercer sua defesa pela via judicial (por ações de conhecimento – desconstitutivas) será infinitamente inferior ao volume atual de execuções fiscais que hoje são ajuizadas eletronicamente todos os dias pelos entes públicos, o que contribuirá de forma relevante para a desobstrução da máquina judiciária, em grande parte dedicada, em todas as suas esferas e instâncias, às demandas relacionadas à satisfação de créditos fiscais.

Vale observar que esse movimento não necessariamente configura cerceamento de direito de defesa do contribuinte/administrado contra a exigência fiscal que lhe é feita. Isso porque não apenas poderá se valer de ação judicial perante uma das Varas da Fazenda Pública para buscar a sustação/cancelamento do protesto e anulação do próprio crédito, como ainda, em demandas de valores contidos na alçada dos Juizados Especiais da Fazenda (a grande maioria da demanda de massa de Estados e Municiípios) poderá valer-se desse rito simplificado e sem custas e ônus sucumbenciais.

O que ocorre nesse contexto é que Procuradores Fiscais, Juízes e Desembargadores poderão se dedicar aos casos mais complexos do ponto de vista jurídico ou demandas de maiores valores (nas execuções fiscais e ações correlatas – declaratórias, anulatórias, mandados de segurança, tutelas de urgência ou de evidência etc.), enquanto as demandas de massa (créditos fiscais de menores valores e casos repetitivos) chegarão em quantidades reduzidas ao Judiciário, conforme iniciativa dos contribuintes/administrados.

Além da redução do estoque no Judiciário de execuções fiscais e suas ações conexas, permitindo o trabalho da máquina judiciária em outras demandas, dito cenário enseja também a diminuição dos custos dos Tribunais com o processamento de tais ações fazendárias (cerca de R$ 8 mil por trâmite de processo nas duas primeiras instâncias, além do fato de que os entes públicos são isentos das taxas judiciais), bem assim o custo de manutenção do acompanhamento e atuação nas demandas pelas pelas Procuradorias Fiscais.

Outro aspecto determinante para essa mudança na forma da gestão das demandas de massa das Procuradorias Fiscais é o fato de que o protesto extrajudicial é a via que apresenta a melhor simbiose com alta performance das ferramentas de inteligência artificial (inteligência analítica e jurimetria) voltadas para a cobrança da Dívida Ativa e já disponíveis no mercado.

Ditas ferramentas de T.I (tecnologia da informação) permitem a rápida integração entre sistemas de secretarias da fazenda, procuradorias e cartórios de protesto (via webservice, criptografadas etc.), gestão preparatória do apontamento dos títulos (por tributos, classe de contribuintes, localização, período, atualização monetária etc.) e também após o apontamento (relatórios diários de pagamentos e parcelamentos, emissão de cartas de anuência e ordens de sustação e cancelamentos de protestos), tudo eletronicamente e com atuação humana mínima (para a maioria dos municípios, por exemplo, apenas um profissional de T.I e outro da área jurídica).

Isso significa que haverá uma inevitável restruturação dos departamentos das Procuradorias Fiscais, com recursos humanos (procuradores e apoio) dedicados mais a núcleos estratégicos de advocacia especializada (aquela de boutique) em grandes débitos e demandas relevantes, enquanto os núcleos de gestão das demandas de massa receberam cada vez mais ferramentas de inteligência artificial, com sistemas de jurimetria autônomos e responsivos de impulsionamento de processos (também já disponíveis no mercado) que eventualmente venham a ser ajuizados em caso de não satisfação pelo protesto extrajudicial.

Observe-se, por fim, que mesmo uma eventual permissão para Securitização da Dívida Ativa pelos entes públicos, o que também é matéria objeto do PLP 459/2017, não torna obsoleta a questão em voga acerca do protesto extrajudicial. Seja porque será a primordial ferramenta a ser utilizada (ou contratualmente exigida que se use) pelas instituições financeiras securitizadoras, seja porque poderá ser usada paralela e diretamente pelo ente público (naquilo que não securitizar) ou por aqueles entes que não venham a securitizar suas Dívidas Ativas, lembrando aqui que o mercado financeiro dificilmente terá interesse na grande maioria do estoque de Dívida dos municípios brasileiros, mas sim apenas de Estados, capitais e grandes municípios.

É essa a mudança que pode advir desse ponto da reforma tributária que, não obstante fora do holofote dado ao direito material constitucional tributário, releva-se de extrema relevância, diante do seu potencial prático de realmente otimizar a cobrança do crédito fiscal e desobstruir os gargalos do Judiciário brasileiro.

Cabe-nos, então, enquanto operadores do direito na área fiscal – procuradores, advogados, gestores públicos e julgadores fazendários – atentarmos para esse princípio do movimento dessa provável e radical mudança, preparando-nos para uma nova forma de atuação.

Fonte: IEPTB/BR