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Artigo – Migalhas – Testamento vital e o necessário respeito à dignidade da pessoa humana – Por Marco Aurélio de Carvalho, Rachel Leticia Curcio Ximenes, Tiago de Lima Almeida e Gustavo Magalhães Cazuze

17-07-2020

Podemos observar que a dignidade da pessoa pode superar a própria vida, sendo aplicada inclusive à morte. Basta ter em mente que a morte é a última fase da vida, e de certa forma, o momento mais delicado pelo qual o ser humano passa. Não se pode assentir que a proteção jurídica ignore a farta relação existente entre vida e a morte

Tutelado pela Constituição Federal, o direito à vida estabelece-se como alicerce de outros direitos e garantias para o ser humano. A carta magna conserva os valores da pessoa humana, dentre outros, por meio dos princípios da dignidade, da autonomia e da liberdade. A dignidade da pessoa humana, é um dos fundamentos do Estado brasileiro e tem como propósito a tutela de todo e qualquer cidadão que venha a se sujeitar às normas brasileiras, mesmo que estrangeiro.

Deste modo, sendo impreterível o acatamento aos valores constitucionais assegurados, é indubitável que o princípio da dignidade da pessoa humana é a orientação máxima da axiologia instituída pela ordem constitucional de 1988. A incorporação aos valores constitucionalmente assegurados é tão incisivo, que possuem a prerrogativa de serem aplicados de forma direta, sem que haja a necessidade de intercessão de uma norma ordinária, sempre que essa não existir ou for de encontro com o quanto preceituado no ordenamento1.

Partindo deste entendimento, podemos observar que a dignidade da pessoa pode superar a própria vida, sendo aplicada inclusive à morte. Basta ter em mente que a morte é a última fase da vida, e de certa forma, o momento mais delicado pelo qual o ser humano passa. Não se pode assentir que a proteção jurídica ignore a farta relação existente entre vida e a morte. A partir do momento em que não se pode mais viver de maneira digna, tem o cidadão a prerrogativa de possuir uma morte que corresponda às suas expectativas, tendo a conclusão de sua jornada da forma menos dolorosa e mais íntegra possível.

O grande empecilho para a aplicação dos métodos medicinais, como eutanásia, para se pôr fim a vida de alguém, é que estes são vedados pelas normas brasileiras. Em contrapartida, e se caso o paciente demandasse a forma pela qual fosse tratado, no caso de, por exemplo, sofrer acidente ou ser atingido por uma enfermidade em que a cura fosse dubitável? Tais circunstâncias são as primícias das discussões sobre a possibilidade de implementação do testamento vital no Brasil. Esse tipo de declaração já é amplamente utilizado em país como Estados Unidos, (“living will”)2; Espanha (testamento vital)3; Itália (testamento biológico); e França (“testament de vie”)4.

Como bem preceitua Flávio Tartuce, o “testamento vital” pode ser definido a partir de um documento escrito, onde uma pessoa especifica qual a forma que deseja ser tratada, quais os tratamentos que aceita ou recusa, frente a uma doença que a impossibilite de manifestar plenamente sua vontade5. Ainda, importante ressaltar que o instituto é espécie do gênero diretivas antecipadas, que segundo Sanchéz, são um termo general que se refere a instruções feitas por uma pessoa sobre futuros cuidados médicos que ela receberá quando esteja incapaz de expressar sua vontade6.

Cumpre trazer à tela que, embora utilizado o termo testamento vital, este desassemelha-se do popularmente conhecido testamento. Isto porque, testamento é o ato pelo qual a vontade de alguém é declarada para o caso de morte, com efeitos de reconhecer, transmitir ou extinguir direitos. Caio Mário da Silva Pereira traz que o testamento é um negócio jurídico, unilateral, personalíssimo, gratuito, solene, revogável, com disposições patrimoniais e extrapatrimoniais e que produz efeitos post mortem7.

A nomenclatura “Diretivas Antecipadas de Vontade, ou DAV”, é utilizada uma vez observado que o interessado, em um único documento, dispõe sobre uma série de assuntos relacionados a tratamentos médicos (que recusa ou aceita, em qual hospital deseja se tratar, onde deseja passar os últimos dias de vida no caso de doença terminal ou irreversível, dentre outros relacionados) e também pode dar outras instruções como cláusulas de representação ordinária e empresarial, inclusive, especificar como deseja suas exéquias.

Observado o quanto disposto, é importante se atenta ao fato de que, para a elaboração das diretivas antecipadas de vontade, não é necessário que a pessoa encontre-se com doença terminal no momento da declaração; basta que disponha no documento sobre como quer ser tratada no futuro caso encontre-se inconsciente por motivo de doença sem possibilidades de cura ou por decorrência de acidente cujo trauma acarrete situação de morte iminente e irreversibilidade do quadro clínico (chamada morte encefálica).

Passado este ponto, ressaltamos que ainda não há uma legislação especifica no país que trate sobre o testamento vital. Mesmo com essa lacuna legislativa, o instrumento é utilizado, isto porque os particulares possuem liberdade para instituir categorias de negócios não contemplados em lei, desde que não ofenda o ordenamento jurídico. Sobre a ótica dessa liberdade, o Conselho de Justiça Federal, na V Jornada de Direito Civil, com o enunciado 527, que assim estatui: “é válida a declaração de vontade, expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’ em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”.

O Conselho Federal de Medicina também já se manifestou sobre o assunto, ao aprovar no dia 30 de agosto de 2012, a resolução 1.995/12 que permite ao paciente registrar seu testamento vital na ficha médica ou no prontuário. O mecanismos veio como um grande avanço, uma vez que vincula o médico à vontade do paciente. 

Nesse momento de fragilidade, em meio a pandemia mundial de covid-19, as palavras do médico norte americano Jeffrey Miltstein, tornaram-se publicas ao direcionar carta à população americana. Traz ela que “Além da urgência, o covid-19 transformou os cuidados no final da vida. Pacientes gravemente enfermos em hospitais sobrecarregados com menos pessoal ideal e políticas de não-visitantes podem ser excluídos do advogado que pode ter certeza de que seus desejos são realizados. Especialmente agora, o seu advogado mais seguro é o seu documento de planejamento avançado, que deve fazer parte do seu prontuário eletrônico. Você pode ter a sorte de pedir a um médico, parceiro, filho, parente ou amigo que lhe pergunte sobre seus desejos de cuidados caso você fique gravemente doente e não possa falar em seu próprio nome. Eu imploro, porém, que você aja agora, induzido ou não. As discussões sobre o fim da vida podem parecer mórbidas, quase como se você estivesse convidando um infortúnio. Na verdade, eles são uma maneira de reconhecer o modo como você vive, para que seus valores e prioridades possam ser comemorados e respeitados, mesmo que você não consiga se comunicar. Essas conversas têm maior urgência agora, enquanto o covid-19 coloca todos nós em um risco mais imprevisível de doenças graves. Iremos sair dessa pandemia de feridos, mas com maior sabedoria. Mover as conversas e diretrizes em fim de vida para o mainstream seria um presente duradouro nascido da adversidade.8”

Neste cenário, dialogar sobre a expectativa de mortes na pandemia, iria auxiliar as pessoas sobre a importância da manutenção do isolamento, bem como sobre os benefícios de um testamento vital. Pode-se, então, certificar que para ser realizado a DAV, em especial no contexto de covid-19, o cidadão necessita ter a consciência de poderá ficar em estado grave, sendo necessário abordar as expectativas/desejos para com o futuro.

A relevância do testamento vital se faz presente nesse momento, sob o entendimento do direito à autodeterminação, podendo este ser positivo ou negativo. Flávio Tartuce elucida que, a partir da autonomia privada, que decorre dos princípios constitucionais da liberdade e dignidade, admite-se a disposição de vontade no sentido de recusa a tratamentos que gerem sofrimentos físicos e psíquicos, tratando-se de exercício admissível da vontade humana9.

A fim de trazer uma maior segurança ao mecanismo, tramita junto ao Senado Federal, o projeto de lei 149/18. A proposição, de autoria do senador Lasier Martins – PSD/RS, visa estabelecer a possibilidade de toda pessoa maior e capaz declarar, antecipadamente, o seu interesse de se submeter ou não a tratamentos de saúde futuros, caso se encontre em fase terminal ou acometido de doença grave ou incurável. Nas palavras do autor, a matéria é a concretização do reconhecimento da autonomia dos pacientes, especialmente daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade – os pacientes em fase terminal de doença e que não estão em condições de expressar a própria vontade10.

Com isto, deve-se resguardar que o princípio da dignidade da pessoa humana fundamenta o direito a uma morte íntegra para qualquer pessoa. Aquele que se encontra doente e esteja em sua plena consciência pode determinar onde e como deseja passar seus últimos dias de vida. Ainda assim, a regulação do testamento vital é mais um passo para validar o entendimento de que o a autodeterminação das pessoas é inalienável e que é imperioso que as discussões acerca da declaração prévia de vontade do paciente ocorram de forma efetiva.

Assegurar a oportunidade de escolha de cada um é conferir a este o benefício de continuar a executar os valores que o mantiveram em vida, garantindo-lhe a autonomia para definir os seus padrões de uma boa transição para morte. Nesta seara, o testamento vital é fortalecedor de um mecanismo que deve urgentemente ser debatido, de modo a se tornar, junto ao mundo jurídico, uma norma eficaz, estabelecendo caminhos para lograr a almejada dignidade da pessoa humana.

Fonte: Migalhas