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Artigo – Conjur – A importância do planejamento patrimonial para a família empresária – Marco Boneli

27-08-2020

Estima-se que hoje, no mundo, cerca de 80% das empresas sejam familiares [1]. Conjuntamente a tal fato, temos ainda a situação por deveras frequente na qual grande parte dos ganhos de tais famílias está concentrada no negócio por elas desenvolvido, sendo alta a dependência dos dividendos e pro labore gerados pela sociedade empresária familiar [2]. É, pois, de suma importância a implementação de medidas jurídicas legais e idôneas que visem à proteção de todo patrimônio amealhado pela família ao longo da existência sadia da sociedade empresarial a que está ligada.

A implementação de um planejamento patrimonial adequado, visando à proteção do patrimônio do sócio e, por conseguinte, resguardo da fonte do (muitas vezes único) sustento de sua família, deve ocorrer em momento oportuno e próprio. Isso porque a lei protege os credores do devedor, no sentido de tornar inócua a transferência de bens a terceiro quando já insolvente o alienante ou mesmo quando tal transferência ocorre em meio a trâmite processual de execução. Trata-se dos institutos da fraude contra credores (tratada principalmente por meio do artigo 158 e seguintes do Código Civil) e da fraude à execução (descrito no artigo 792 do Código de Processo Civil).

De nada adianta a implementação de um plano em meio à cobrança e execução de dívidas, tendo em vista que o devedor nesses casos poderá, inclusive, responder criminalmente por seus atos. A transferência de patrimônio quando já existente dívida em valor superior aos bens deixados em nome do devedor também é ineficaz e anulável via ação pauliana. As medidas de que trataremos nos parágrafos a seguir não são, assim, recomendáveis quando se verificar que poderão ensejar qualquer um dos tipos de fraude aqui expostos e lesar indevidamente credores de boa-fé.

O primeiro instituto que nos vem à mente e que poderá ser utilizado pela família empresária visando à proteção de seu patrimônio é, de longa data, conhecido pelos operadores do Direito Civil. Trata-se do instituto do bem de família. Este pode abranger, inclusive, valores mobiliários, sendo essa situação uma completa inovação trazida pelo Código Civil de 2002. Ao possibilitar a instituição de bem de família sobre valores mobiliários (ações de empresas listadas na bolsa de valores, fundos imobiliários etc), o legislador claramente teve a intenção de possibilitar e garantir a manutenção e o cuidado do imóvel utilizado como moradia pela família.

Pela análise dos artigos do Código Civil que tratam do tema (artigo 1.711 e seguintes), percebemos que os valores mobiliários não podem exceder o valor do prédio (morada da família) à época de sua instituição. E se o bem de família, de modo geral, não pode ultrapassar um terço do patrimônio líquido da família, ao tempo em que instituído, então temos que os valores mobiliários podem ser instituídos como bem de família em no máximo um sexto do patrimônio total, situação esta que equivaleria a se ter um prédio (moradia) no valor de um sexto do patrimônio líquido, mais valores mobiliários no importe de também um sexto do patrimônio líquido (total do bem de família seria igual a um terço do patrimônio líquido, conforme legislação).

Não obstante a existência e a possibilidade de instituição do bem de família, temos outro instituto do Código Civil que pode ser capaz de dar uma maior proteção ao patrimônio da família empresária se utilizado devidamente. Trata-se do instituto da doação, o qual, cominado com as cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade, pode vir a ser uma forma eficaz e idônea de planejamento patrimonial.

Especificamente sobre a doação de ascendentes a descendentes, o artigo 544 do CC, por exemplo, menciona que “a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”. Nesse caso, o bem recebido deverá ser levado, em tese, à colação quando morto o doador e, consequentemente, ocorrer a abertura do seu inventário, visando a equilibrar a legítima (artigo 2.002 do CC). Dissemos em tese, pois há, no entanto, uma forma de se afastar a necessidade da colação: o doador pode, no momento da doação, dispensar o bem de ser levado à colação. Basta determinar no ato de liberalidade que o bem está saindo da parte disponível e que seu valor não a excede (artigo 2.005 do CC).

A doação de ascendente para descendente (desde que, é claro, tal descendente, no momento de recebimento da doação, não tenha participação na sociedade familiar, pois do contrário a proteção do patrimônio restará comprometida), portanto, não necessita, no momento em que praticado o ato, de consentimento dos demais herdeiros, visto que estes possuem o instituto da colação como proteção aos seus direitos. Por outro lado, faz-se necessária a autorização do cônjuge (a não ser quando o regime de casamento for o de separação de bens. Nesses casos não haverá necessidade de referida autorização — no Direito tal autorização se denomina “outorga uxória”).

Ao transferir a propriedade de um bem em seu nome para o nome de um herdeiro/descendente, o sócio da sociedade empresária está realizando verdadeira partilha em vida da herança; não terá mais qualquer controle sobre o bem doado, que passará para as mãos de seu(s) descendente(s). Importante, assim, que o doador tenha plena confiança que o donatário não se utilizará ou mesmo disporá do bem de forma leviana.

Para resguardo do doador, interessante o aconselhamento de Priscila M. P. Corrêa da Fonseca, que, em sua obra sobre o tema do planejamento sucessório, menciona: “(…) É possível estabelecer, como condição da doação, procuração irretratável e irrevogável dos donatários em favor do doador para que ele possa não apenas administrar os bens doados, como também alienar ou onerá-los (CC, artigo 684)” [3].

Importante sobre o assunto ressaltar que a doação também pode ser feita com cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. Por certo, tais cláusulas têm grande importância no que diz respeito à manutenção do bem objeto da doação na posse e propriedade de quem a está recebendo, evitando que o bem se dissipe por atos irrefletidos da pessoa beneficiada com o ato.

Partindo agora para institutos do Direito Comercial, há também ali formas jurídicas aptas a possibilitar um planejamento e proteção do patrimônio. Uma holding familiar, por exemplo, pode servir de base para tal objetivo e, inclusive, para um planejamento sucessório, muito embora esse último não seja escopo essencial do presente artigo.

No caso da holding imobiliária, em específico, uma das vantagens da sua criação é a possibilidade de separação do patrimônio pessoal dos acionistas/quotistas do patrimônio operacional de sociedade empresária. De um lado se mantém a propriedade das quotas de sociedade em operação mercantil, de outro se mantém a propriedade de quotas de holding imobiliária. Com a sua criação, o quotisa/acionista, em si, passa a não ser mais proprietário direto de nenhum bem imóvel (é de bom grado, contudo, que em um planejamento visando à proteção do patrimônio, a casa onde resida permaneça em seu nome, tendo em vista ser ela bem de família e, portanto, impenhorável).

Com a criação de uma holding imobiliária, faz-se a alienação (por meio da integralização do capital) dos bens da pessoa física (no caso, podem ser os bens de propriedade do patriarca e/ou da matriarca da família empresária) para “dentro” da holding então criada. Com isso — e desde que tal transferência não se dê em fraude a credores ou à execução, como já exposto anteriormente neste artigo —, tem-se uma total segregação do patrimônio, ficando ele de certa forma protegido contra eventuais problemas de ordem econômica, advindos da sociedade operacional da qual o patriarca/matriarca detenha participação.

Vale destacar que a integralização de bens imóveis para formação do capital social de holding imobiliária poderá gerar a incidência do imposto denominado ITBI (Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis). Isso porque tanto a Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 156, §2º, inciso I, quanto o artigo 37, caput e parágrafos, do Código Tributário Nacional preveem a cobrança de referido imposto quando comprovada, nas situações ali descritas a preponderância da atividade de holding patrimonial, ou seja, venda ou locação de bens imóveis.

Contudo, mesmo se considerarmos a incidência desse tributo (ITBI), a integralização dos bens na holding imobiliária tende a compensar não só financeiramente, mas também ao se considerar a ideia e o planejamento por trás da sua criação, qual seja, a da proteção e segregação do patrimônio do quotista de sociedades empresárias ditas operacionais.

Sobre o tipo societário da holding imobiliária (se sociedade simples, limitada ou anônima, por exemplo), acreditamos que a sua escolha dependerá do montante do patrimônio envolvido e da quantidade de herdeiros vinculados ao planejamento. De qualquer forma, para a esmagadora maioria dos casos tanto a sociedade limitada quanto a sociedade anônima fechada poderão servir adequadamente ao planejamento.

Outro ponto: se as quotas da holding imobiliária forem doadas aos herdeiros, importante mencionar que o ideal é que se faça referida doação também com as cláusulas de praxe comentadas anteriormente, a saber: incomunicabilidade, impenhorabilidade e reversão.

Por sua vez, o mercado financeiro possui certos “produtos” que também podem auxiliar na proteção do patrimônio. Cabe lembrar aqui, por exemplo, que valores de até 40 salários mínimos depositados em caderneta de poupança são impenhoráveis em razão do quanto disposto no artigo 833, inciso X, do Código de Processo Civil.

Finalmente, ressaltamos que há inovações tecnológicas ocorridas nos últimos tempos pertinentes à criação dos chamados criptoativos (v.g. bitcoin), os quais, por certo, possibilitam uma maior diversificação do patrimônio e, no futuro, terão papel importante no seu planejamento e proteção. Mas esse tema deixaremos para um próximo artigo.

[1] SEBRAE. Empresas Familiares. Disponível em <https://bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/1a5d95208c89363622e79ce58427f2dc/$File/7599.pdf> Acesso em 10 de agosto de 2020.

[2] MURAYAMA, Christian. Transformando Famílias Empreendedoras em Famílias Empresárias. TMA Brasil. Disponível em <http://www.tmabrasil.org/blog-tma-brasil/artigos/transformando-familias-empreendedoras-em-familias-empresarias> Acesso em 10 de agosto de 2020.

[3] FONSECA, Priscila M. P. Corrêa. Manual do Planejamento Patrimonial das Relações Afetivas e Sucessórias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, pág. 267.

Fonte: Conjur