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Artigo – Adjudicação compulsória, promessa de compra e venda e a Súmula 239 do STJ – Por Ermiro Ferreira Neto

17-08-2018

Em 28 de julho de 2000, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, aprovou a conhecida Súmula 239 (“O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”). Foram indicados dez acórdãos como precedentes relevantes para tal entendimento, proferidos entre 1989 e 1999. A análise detida dos acórdãos, do texto do enunciado e de casos corriqueiros sobre o tema parece recomendar, quase 20 anos após sua edição, ao menos duas ressalvas na súmula.

O mais antigo precedente indicado para a formação da súmula é o mais substancioso com relação aos argumentos suscitados, podendo ser tomado como ilustrativo dos demais[1]. Na origem, o recorrido “ajuizou ação de adjudicação compulsória” contra o recorrente, alegando “ter adquirido dos réus […] imóvel, havendo sido o preço integralmente pago, […], recusando-se eles a outorgar a escritura”. O pedido fora julgado procedente, tendo sido a sentença mantida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

No recurso especial, os recorrentes alegaram que o acórdão negara vigência ao artigo 22 do Decreto-Lei 58/37. Tal norma prevê que “os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda […], desde que, inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissos direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsórianos termos dos artigos 16 desta lei” (grifou-se). Ao contrário da previsão, o contrato não havia sido inscrito no registro de imóveis.

Do voto do relator consta que a jurisprudência dominante à época, inclusive junto ao Supremo Tribunal Federal, ia no sentido de que o registro seria obrigatório para a adjudicação compulsória. O relator, no entanto, entendera que “a promessa de compra e venda tem por objeto um facere[grifo do original], constitui-se em vínculo que se traduz em direito pessoal. Seu cumprimento não se justifica esteja a depender do ingresso do título no Registro Imobiliário”.

Para o relator, em suma, a alusão no artigo 22 do decreto-lei ao registro da promessa de compra e venda “a qualquer tempo” deve ser interpretada como requisito para a constituição de “direito real oponível a terceiros”. A ausência do registro, pois, apenas teria por consequência a não constituição de direito real; mantido, no entanto, o direito a ser exercido em face do outro contratante, haveria direito pessoal à obrigação de fazer consistente na outorga da escritura pública de compra e venda, permitindo-se assim que, por sentença, se transferisse a propriedade da coisa.

Todos os demais precedentes indicados como fundamento para a Súmula 239 prendem-se substancialmente ao mesmo argumento. Mesmo em acórdão dez anos posterior ao primeiro, fez-se consignar que “o direito à adjudicação é de caráter pessoal, restrito aos contratantes, não se condicionando a obligatio faciendi à inscrição no registro de imóveis”[2].

Assim, eis a tese central extraída dos precedentes que deram origem à Súmula 239: (i) sendo direito pessoal, a adjudicação será oponível entre promissário comprador e promitente vendedor; (ii) sendo direito real, a adjudicação será oponível também pelo promissário comprador em face de terceiros.

Tal tese, todavia, não está fielmente retratada no texto da súmula.

Ao se partir da premissa de que se trata, na hipótese, de um direito pessoal, chega-se à conclusão de que, por aplicação do princípio da relatividade contratual, tal direito somente pode ser exercido inter partes, vale dizer, pelo promissário comprador em face do promitente vendedor.

O texto da súmula não faz essa ressalva. Sua previsão é genérica. Em tais termos, o enunciado abarca hipóteses que não são compatíveis com a ratio decidendi dos precedentes invocados. Para ser fiel aos seus precedentes, a súmula deveria destacar que a adjudicação baseada em promessa de compra e venda sem registro somente pode ser exercida contra a outra parte do contrato preliminar.

A ressalva é de fundamental importância e a sua ausência, no texto da súmula, pode levar a soluções inadequadas e em alguns casos até contrárias aos seus precedentes ou colidentes com jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre outros temas. Tomem-se três hipóteses.

Em primeiro lugar, como já visto, se o imóvel que se pretende adjudicar não estiver mais na propriedade do promitente vendedor, a promessa de compra e venda sem registro não permitirá que o promissário comprador adjudique o bem em face do terceiro adquirente.

De fato, sem registro, não há direito real (artigos 1.227 e 1.245, Código Civil) e, por conseguinte, não há direito de sequela[3]. A sequela é característica dos direitos reais, de modo que o terceiro adquirente, estando de boa-fé, não poderá se tornar evicto em face de obrigação pessoal assumida exclusivamente por quem lhe vendeu o imóvel, e não por ele. Tal situação contraria o texto da súmula, pois, ao contrário de sua previsão, o promissário comprador não poderá adjudicar o imóvel.

Em segundo lugar, se o imóvel que se pretende adjudicar, com base em promessa não registrada, ainda estiver na propriedade do promitente vendedor, mas, por outro lado, já na posse de outro promissário comprador de boa-fé, que com aquele firmou uma segunda promessa de compra e venda também sem registro, a posse deste último deve ser prestigiada em face do direito pessoal do primeiro contratante.

Nesta última hipótese, tem-se situação inusitada. Os dois promissários compradores são titulares de dois direitos igualmente pessoais em face do promitente vendedor e proprietário do bem. Diante desse quadro, a quem deverá ser atribuído o direito a adjudicar o imóvel?

Quer-se parecer que, no caso acima, exercendo um dos promissários compradores posse de boa-fé sobre a coisa, não será juridicamente possível perdê-la para o primeiro contratante, que não é proprietário nem é ou foi possuidor, e que somente manteve relação jurídica com o promitente vendedor. Tal conclusão resta reforçada a partir de outra orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Na forma da Súmula 84, “é admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”.

A tese de fundo constante da Súmula 84 é que a posse qualificada pela boa-fé merece maior prestígio do que a propriedade meramente registral[4]. Por esse raciocínio, o Superior Tribunal garante uma posição de preferência ao possuidor que tenha como base de sua posse uma promessa de compra e venda, quando tal direito colida com o direito do credor que, com fundamento na titularidade havida a partir do registro, pretenda executar o imóvel para saldar dívida do proprietário formal.

Pelas mesmas razões, parece possível aplicar semelhante raciocínio para afastar o direito à adjudicação do promissário comprador não possuidor, preferindo-se à tutela do promissário comprador possuidor. O descumprimento do direito do primeiro deverá se resolver em perdas e danos (artigo 389, Código Civil); o segundo, por seu turno, poderá adjudicar a coisa. Também aqui há conclusão diversa da Súmula 239, já que, ao contrário do seu texto, o promissário não possuidor não terá direito à adjudicação.

Em terceiro lugar, veja-se a situação em que, na hipótese de o proprietário ter firmado duas promessas de compra e venda, ambas sem registro, para promissários compradores distintos, nenhum dos dois tenha a posse do imóvel.

Aqui, ambos tem direitos pessoais; por outro lado, nenhum deles detém posse que mereça tutela. Nesse caso, o direito à transmissão definitiva da titularidade concedido ao primeiro promissário comprador excluirá a possibilidade do segundo pedir a adjudicação compulsória. Considerando que o direito ao contrato definitivo é indivisível, não poderia o promitente vendedor atribuir a duas pessoas o mesmo direito de obter a propriedade definitiva do mesmo bem. Apenas o primeiro terá direito à adjudicação; o segundo promissário, por sua vez, terá pretensão de perdas e danos em face de quem irregularmente lhe prometera vender o imóvel.

A primeira promessa de compra e venda é negócio válido e perfeitamente eficaz, de modo que, em condições normais, somente nova manifestação das partes poderia lhe retirar efeitos. Nesse contexto, a segunda promessa é negócio jurídico ineficaz com relação ao primeiro promitente comprador, posto que nenhum efeito poderá gerar para este último, que se tornou titular, antes do segundo promissário, do indivisível direito a obter futuramente a propriedade do bem[5].

De modo semelhante às demais hipóteses, o texto da súmula também não dá tratamento adequado a este último caso. Ao contrário do que dispõe, o segundo promissário comprador, à semelhança dos dois outros exemplos, também não terá direito à adjudicação.

Os três casos bem demonstram a importância do registro. Somente se a promessa de compra e venda for registrada é que haverá direito real. Por conseguinte, a oponibilidade será erga omnes; alcançará terceiros não abrangidos pela avença original e que se tornem titulares de direitos reais relativos ao mesmo imóvel. Se o vendedor alienar o imóvel a terceiro, e de sua matrícula constar o registro da promessa de compra e venda, o terceiro poderá sofrer a adjudicação do bem.

Assim, a se ter em vista os efeitos do registro, tem-se uma última razão para a revisão da Súmula 239: o seu texto pode levar à conclusão de que o registro da promessa de compra e venda é irrelevante.

Quem firma uma promessa de compra e venda tem como principal expectativa a obtenção futura da propriedade do imóvel. Tal se dá, na hipótese de conflito, através da adjudicação compulsória. Ao prever que a adjudicação será possível independente do registro, o Superior Tribunal de Justiça pode passar a mensagem de que o registro da promessa é desnecessário e que a adjudicação sempre será viável.

No entanto, é ele ainda, o registro, o mecanismo mais seguro e importante para garantir segurança nas transações imobiliárias que tenham por base uma promessa de compra e venda. Como visto, independentemente de demonstração de posse ou anterioridade do direito, somente o registro assegura ao promissário comprador nível relevante de proteção, criando um escudo contra alienações futuras e garantindo ciência de terceiros a respeito da existência da promessa de compra e venda[6].

Além disso, não se pode perder de vista que o Código Civil, que é posterior à edição da Súmula 239, outorgou expressamente à promessa de compra e venda a condição de direito real, se ocorrer o registro. A análise da legislação superveniente quanto ao tema parece relevante, especialmente porque o artigo 1.418 dispõe que “o promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros” (grifou-se) a outorga da escritura pública para transmissão da propriedade.

A referida regra sufraga o entendimento de que a adjudicação em face de terceiros somente será possível se a promessa de venda for registrada. No entanto, não é esta conclusão que se extrai de uma leitura literal da súmula, circunstância que não contribui para a estabilização de relações fundiárias tão conflituosas como ocorre no Brasil.

Revisar a Súmula 239, portanto, significaria estabelecer limites mais claros, diminuindo-se a margem para conflitos. Embora se possa dizer que é dever do intérprete dar sentido à súmula, a partir do próprio sistema jurídico e dos precedentes que a fundamentam, não faria mal o Superior Tribunal de Justiça se reduzisse o espaço para interpretações juridicamente incorretas e que se distanciam de sua própria jurisprudência — objetivo, enfim, de toda e qualquer súmula.

Por tudo isso, mais de 18 anos depois de sua edição, o referido enunciado reclama breve revisão, pelo que sugere-se o seguinte texto: “O direito à adjudicação compulsória, quando exercido pelo promitente comprador em face do promitente vendedor, não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis; somente será admitido exercer a adjudicação em face de terceiro adquirente ou desconstituir direito real constituído após a promessa de compra e venda, se esta tiver sido registrada junto a matrícula do bem imóvel, ressalvado neste último caso os direitos do promitente comprador que possuir o imóvel de boa-fé, na forma do súmula n. 84 desta Corte”.

[1] REsp 30/DF, rel. Min. Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, j. 15/08/1989.
[2] REsp 204.784/SE, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, j. 23/11/1999.
[3] “[…] Consiste em o direito real aderir à coisa, que resta afetada ao titular do direito real, perseguindo-a onde quer que ela se encontre, sem a possibilidade útil de que se lhe oponham quaisquer situações, inclusive se lastreada em direitos obrigacionais. O direito de seqüela é nota privativa dos direitos reais, não os tendo os direitos pessoais ou obrigacionais”. ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel. Confronto entre situação de direito real e de direito obrigacional. Prevalência da primeira, prévia e legitimamente constituída – salvo lei expressa em sentido contrário. In: Revista de Direito Privado, vol. 1, janeiro/março de 2000. São Paulo: RT, 2000, p. 103/106.
[4] Confira-se, nesse sentido, trecho do voto do ministro Athos Carneiro, no primeiro precedente indicado como fundamento da Súmula 84: “Tenho a impressão de que levar nosso raciocínio para o terreno do direito registral importará na aplicação das normas jurídicas dentro de um, digamos assim, tecnicismo exagerado. É certo que, num plano puramente registral, o imóvel penhorado ainda é, tecnicamente, integrante do patrimônio do promitente vendedor. […] O promitente vendedor ainda é dono do imóvel, mas o é sob aquele minus derivado das obrigações que assumiu, de outorga da escritura definitiva, em virtude do contrato quitado de promessa de compra e venda. […] Creio mais conforme com as necessidades atuais do comércio jurídico a interpretação pela qual, no choque de interesses de dois direitos eminentemente pessoais (a própria penhora não é direito real, mas ato processual executivo), tanto um quanto outro, deve prevalecer o direito daquele que está na justa posse do imóvel […]” (REsp n 188/89, rel. p/ acórdão Min. Bueno de Souza, Quarta Turma, j. 08/08/1989).
[5] Trata-se de ineficácia relativa, na medida em que a segunda promessa de compra e venda terá como efeito constituir a pretensão de perdas e danos do promissário comprador em face do promitente vendedor. Nesse sentido, ainda que por analogia: BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico – Plano da eficácia. São Paulo: Saraiva, 2010, 6. ed, p. 77; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Bolsoi, 2000, t. V, p. 104.
[6] Defendendo brilhantemente, como é próprio aos dois autores, a relação entre princípio da concentração da matrícula e a configuração de fraude à execução, confira-se o recente artigo: DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno. O princípio da concentração da matrícula e a fraude à execução: um diálogo entre a Lei n. 13.097/2015 e o CPC/2015. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 16, n. 23, p.310-330, jul./dez. 2018.

 

Fonte: Conjur